Filmar sem sujar os pés
por João Gabriel Villar da Cruz –
Já algo preocupa quando, ao assistir um documentário, a plateia ri de alguém que fala sério. Na sessão de A Cor do Fogo e a Cor da Cinza, de André Félix, o desconforto é enorme. Na tela, Wagner, um rapaz de 18 anos, abre para a câmera todo o seu mundo pessoal com a felicidade de perceber um ouvinte atento e interessado, e seu relato é ouvido por entre gargalhadas da plateia. Num momento desses, é natural que se procure a origem dessas risadas, que mecanismo pode ser culpado por transformar o depoimento sincero em fonte de escárnio. Se esse mecanismo apenas se insinuava aqui e ali, é em uma cena filmada em uma boate que ele se escancara.
Wagner trabalha como drag queen, apresentando-se em uma boate numa performance de Diva Pop. O filme que, até agora, se preocupava em explorar o universo criado por Wagner, muda, sem razão aparente, e se transfere para seu ambiente de trabalho, onde filma uma apresentação do rapaz, logo após filmar a apresentação de stand-up comedy que o precedeu. A câmera se coloca num plano estático e distanciado, apesar do zoom que permite que os dançarinos sejam vistos de perto. O enquadramento pouco elaborado tira o movimento próprio da dança para circunscrevê-la numa visão fria e externa, a lógica do filme e do diretor se sobrepõe à do ambiente filmado. A música incidental ecoa dentro da tela, distante do filme. Vemos a maquiagem do rapaz, analisamos seu rosto, vemos o mecanismo por trás de suas expressões, enxergamos seus deslizes na dublagem da música, olhamos para o rapaz como para um E.T., cada consciência de cada movimento seu está escancarada, seu rosto parece artificial. Esse mecanismo se confirma quando, na cena seguinte, Wagner assiste a uma apresentação de Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras, de Howard Hawks. Ele pausa e explica que usa do mesmo artifício que Marilyn ao levantar as sobrancelhas e nesse momento a plateia do cinema ri – o que acabamos de ser mostrados passa longe de Marilyn.
Mas uma apresentação como a de Wagner tem toda uma magia interna que não se pode ignorar. A luz, as pessoas que ali estão, a música, a dança, a embriaguez, a alegria, a relação do público: existem vários e vários fatores que aproximam, para quem está ali, a apresentação de Wagner à de Marilyn. E a câmera ali age como uma intrusa que não compreende a lógica interna do ambiente filmado e capta imagens mecânicas, sem ideia do que está acontecendo – é isso que nós vemos. Enquanto Hawks compreende e explora seu objeto filmado, dando-o corpo, glamour, atmosfera, vida – nem Marilyn Monroe consegue ser Marilyn Monroe sozinha –, André Félix poderia muito bem estar filmando um programa culinário ou um show de horrores com a mesma apatia. Tiramos um discurso do que o diretor quer ver, e o assunto em si – o rapaz, as pessoas, a apresentação – é deixado de lado para que a voz do realizador possa passar. Existe um discurso anterior à filmagem que tira do assunto a sua possibilidade de autenticidade, de originalidade, sua capacidade de movimentar o documentário em vez de ser movimentado por ele.
O diretor usa desse poder o tempo todo, de forma mais ou menos direta. Em seu modo de fazer perguntas, de filmar a representação em papel das novelas, está claro que o filme está sendo feito para que se possa mostrar o que alguém de fora vê ali, e não para realmente revelar algo ou permitir que algo se demonstre. Consequência fatal de filmar um mundo externo ao seu sem tentar adentrá-lo antes. O discurso está todo lá: o deslumbre nas novelas, o sonho, o efeito no povo, a ingenuidade do rapaz. E o personagem em si que sirva de boneco para o que o diretor tem a dizer, que se submeta inocentemente à crueldade da câmera que, sem que Wagner ouça, ri tanto dele quanto a plateia do filme. O funcionamento interno do mundo filmado perde lugar para a visão externa e preconceituosa desse mesmo mundo, baseada no que de mais imediato nele se mostra. Resta se desculpar a Wagner pela atitude escrota da qual ele foi vítima.