A emergência do silêncio
por Lucas Navarro –
Antes de tudo, claro, o impasse. A fala que tenta voltar après-coup ao gesto da irmã busca desfazer os lacres que encobrem o inefável que a sustenta. Esvaziada de significações compartilháveis, ela respira o fracasso da intenção comunicativa. Todo esforço está mobilizado para aprender a “dizer de outro jeito” aquilo que o maquinário da linguagem não consegue mais submeter em discurso assimilável (“podia ter dado certo no jornal”, lamenta a mãe) tendo que, para isso, adequar sua voz à violência da atmosfera. Aprender a dizer de outro jeito requer, porém, um trabalho rigoroso sobre corpos em cena para que, somente a partir dessa organização, a voz reconcilie o sentido original sobre o qual vacila, devolvendo a autenticidade da experiência narrada.
Dividido em datas que funcionam como uma espécie de antecâmara daquilo que ouvimos nos créditos, as cenas de Vão Livre mostram uma identificação progressiva da protagonista com a continuidade das lutas deixadas pela irmã. Contudo, essa luta é sempre prorrogada entre discussões e palpites sobre possíveis datas e possíveis pautas. Essa espera no interior dos tableaux é responsável por uma aparente passividade que, por sua vez, é antes efeito da intensificação da sensibilidade, de uma atenção excessiva, que aproxima a crítica do advento desejado. Uma variante dessa imagem está justamente na passividade produtiva da mulher que gera, em seu silêncio, o sentido da conversa. Se aquilo que conhecemos de sua irmã é pura ação, aquilo que vemos, do seu lado, é pura hesitação – detalhe que dá à personagem o peso de duas memórias conflitantes: a tranquilidade, tão cara à sua avó, e a coragem mobilizadora da irmã. Tradição e ímpeto, como soma de lembranças, são forças antagônicas que movem o filme de uma disposição não contaminada pela percepção entorpecedora do passado ao privilégio do instante como único possível de afirmar seu compromisso com o presente.
Concebido como projeto de conclusão de curso momentos antes à irrupção das manifestações de junho, a produção de Bruno Marra e Steffi Braucks atravessou o evento incorporando alguns elementos junto àqueles já existentes na ideia inicial. Isso para esclarecer que não incorro aqui afirmando a redução da obra como reação direta ao calor episódico do protesto, mas na tentativa de perceber a capacidade transitiva interiorizada no processo. Responde ao seu tempo histórico sem trai-lo ou ser seu escravo. Esse amálgama entre crítica e contexto fica ainda mais claro se notarmos as diferenças brutais entre esse filme e aqueles realizados in loco (Rio em Chamas, 20 Centavos, Junho), cuja força reside tão somente numa descrição irrefletida dos fatos acreditando, pela proximidade estabelecida, enxergá-los objetivamente. Quando revistos no momento atual suas imagens parecem esgotar um referente aflorado sob uma pressa vertiginosa pela qual experimentamos outrora o prazer de nos deixamos violentar as retinas. Vão Livre, por sua vez, evoca uma violência simbólica, e silenciosa, tão atual que poderia ter sido feito amanhã.
Se já acostumamos a ver na produção universitária uma conformidade estética (política, portanto) com tendências já consolidadas cujo preço se dá na abdicação da tradução ativa no curso da história, observo que, aqui, não é o caso. Vão Livre compõe solitariamente o panorama da mostra Cinema em Curso. Isso por que ele nos apresenta um conflito irredutível ao núcleo da família ou do indivíduo tomado como berço dos sentimentos e expressões, preferindo revelar um colapso que transborda os limites do espaço privado, dentro da qual era ainda possível reconhecer um princípio de causa. A emergência desse novo olhar está em perceber que a obra, antes de encerrar o assunto que a engendra, ascende, num movimento de luz, o impacto estético fundamentado naquilo que Rivette chamou de um “elo entre algo exterior e muito secreto, que um gesto imprevisto desvela sem explicar”.