Lampejos de vida

quinze

por João Gabriel Villar da Cruz

Embora o cinema mais popular entre os cinéfilos brasileiros atualmente, especialmente entre os curtas-metragens, pareça ser aquele baseado no afeto, na identificação fácil e, em termos mais abrangentes, na “fofura”, uma das tendências mais interessantes que se mostram com força festivais afora vai justamente na contramão. Não por serem filmes menos fofos, mas por abdicarem da arquitetura dos mecanismos dessa fofura construída, pedida e, muitas vezes, padronizada – Gabriel dançando em contraluz ao som de Belle e Sebastian em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho não me deixa mentir. Ao invés de montar com precisão as peças de um mundo fértil para o cultivo de corações pueris, esse cinema se contenta em olhar para qualquer lugar e depositar no olhar sua potência. Um cinema de olhar, não um de construção.

Embora o de construção tenha sido, desde Griffith, o mais popular, devido justamente à sua fácil absorção, é no olhar que vários cineastas, desde os primeiros passos do cinema moderno, foram encontrar a verdadeira potência cinematográfica que estava se dissipando por entre discursos. Desde então, diretores como Godard e Rivette foram seguir esse caminho pelo resto de suas carreiras. Vale lembrar, aliás, que os primeiros filmes a serem feitos, pelos irmãos Lumière, eram puro olhar.

Quinze, de Maurílio Martins, começa com o rosto expressivo de uma mulher vestida casualmente. Pode-se ouvir o som baixo que parece vir de um rádio ou televisão, frisando a impressão de trivialidade da cena. Não difere muito do que estamos por ver. Logo o choque do sexo (homossexual ainda!) com a banalidade do cotidiano arranca risadas da plateia, abrindo mão da estilização, vemos a tela de cinema transformada num agradável espelho, e daí logo surge a graça. Diálogos corriqueiros se desenrolando em uma composição arejada (ótimo uso do Cinemascope) proporcionam o singelo deleite de estar vendo a vida se desenrolando calmamente, um plano de cada vez. Menos um filme sobre um rito de passagem e mais uma coleção de recortes de tempo e espaço tirados por trás da cortina, o backstage de um filme inexistente que mostraria o espetáculo em si, a festa de quinze anos.

No lugar da construção, a lapidação, sendo que esta acontece diante dos nossos olhos. Quando se espera ver o material final da lapidação – pela primeira vez aparece uma música não diegética e vemos a preparação do que parece ser um momento mágico enquanto duas mulheres começam a dançar no meio da rua, com direito até a chuva de pedaços de papel colorido que não existem –, somos negados essa possibilidade: o foco some e volta, a câmera se perde, o material da vida se funde num momento que, pela primeira vez, é nosso, foi tirado do terreno do cotidiano para se instalar em nossa visão de plateia de cinema, de beleza, de…. fofura. A lapidação está pronta? Esperemos que não, e enquanto as duas mulheres se afastam e o filme volta ao seu lugar, o papel salpicado pelo chão é tão real quanto a rua. O som volta a ser o da cena. O que fica são pequenas impressões de um mundo que estava lá antes do filme começar e continuará estando após o fim dos créditos. E filmar é o ato de transformar esse mundo fugidio em… Cinema?

É bom poder se aprofundar nesse tipo de filme e, mais do que isso, ter um bom exemplo para guiar o caminho. Melhor ainda é poder colocá-lo frente a outro que, ao olhar para o mundo, não o lapida, nos apresenta um olhar frontal para o mundo em estado bruto, onde, mais uma vez, os sons fora de quadro dão relevo à imagem. Vailamideus, de Ticiana Augusto Lima, aponta sua câmera estática para uma senhora em volta da qual a família se junta para tirar fotos. Em off, ouvimos os sons da festa. As raras ações da senhora às vezes parecem ser reações ao externo, às vezes parecem ser completamente alheias ao mundo. Em meio a tanta agitação da festa, ela é certamente um oásis, mas não há como saber de quê (Tranquilidade? Cansaço? Tristeza? Felicidade contida?). À sua volta, a vida acontece: Em um momento marcante, um menino corre de sunga e, agitado, posa para a foto. Para estar de sunga, devia estar bem ocupado em suas brincadeiras – tinha piscina na festa? O menino estava seco, a sunga era para lhe dar mais liberdade? – assim como todos lá, vindos de outra coisa que faziam para participar daquela pausa. Pausa para a foto. Chegam a pedir para o Tio Antônio deixar de comer para ir tirar foto. Jovens aparecem, sorriem e vão embora. Pode-se falar de pessoas e acontecimentos porque é isso que o filme nos dá: um plano único, estático, contínuo, um olhar direto, simples, mas também não menos significativo, pesado – por que não olhar para as crianças, as mesas, a mulher que fala ao microfone, o Tio Antônio comendo? Ao contrário de Quinze, onde existem movimentos de câmera, mesmo que raros, que possuem mais valor de estilo do que de olhar, aqui se deposita potência no estado bruto da vida, que só foi passar por um esforço de lapidação agora que este texto está sendo escrito – se desconsiderarmos, claro, a montagem do filme em si.

O único movimento do quadro é o corte, corte que nos leva de vez para dentro da senhora, deixando de lado qualquer presença do mundo externo na imagem. No som tem gente, tem comemoração, tem uma interpretação bem caseira de Onde você mora?, mas os sons logo se misturam numa massa que a rodeia, ela, Vovó Myrthes. Linda, cansada, velha, ora parada, ora mexendo a mão no ritmo da música ou aplaudindo com a ajuda da mulher ao seu lado. Deixando-nos sozinho com esse olhar perdido, o filme nos dá a temível oportunidade de pensar, de habitar o mesmo lugar que o olhar da senhora, alheio a tudo – até mesmo à mulher que ajuda a vovó a bater palmas –, onde habita a melancolia, a alegria, a família, a velhice que veio e a que virá. Será? Ou esse sou só eu viajando? Certamente. E o mérito do cinema do olhar é esse: dentro dele, pode-se viajar.

Quinze e Vailamideus estão na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2014