Uma quase morte
Memento Mori, avisa o título. “Lembre-se da morte”, é o que quer dizer. A expressão latina, uma das divisas da literatura barroca, ecoa nessa animação coproduzida entre Bolívia e Bélgica, mantendo algumas conexões com o momento histórico em que a arte primou por lidar com fenômenos contraditórios.
Quem esperaria flertar com a própria extinção por meio da dança? Intercalar situações monocromáticas com banhos lisérgicos da cor? Sim, estamos diante de uma caixa de surpresas. Poderia predominar o tom sombrio, de escritores românticos ou expressionistas, que de fato existe aqui. Mas nos vemos diante de uma forma de expressão mais mística do que necessariamente fantasmagórica.
A menina (que guarda em si uma imagem infantil de certa forma localizada entre o século XIX e a primeira metade do XX, imagem que tem como maior exemplo, talvez, a Alice de Lewis Carroll) que executa a passagem “transcendental’ em que pode-se, em um momento acreditar estar num sonho, em outro vendo um funeral é recepcionada por uma entidade mágica, com uma aparência exótica, “étnica”, algo africana. Uma dança, em que se libertam corpos e almas.
Coreografia de movimentos que se interrompem e sobrepõem, num fluxo capaz de evocar sim algo muito caro ao imaginário cultural latino-americano: os rituais xamânicos do(s) mundo(s) possivelmente existente(s) no limiar entre matéria e abstração.
Bad trip? Vez por outra é evocada, mas não permanece. Experiência de quase morte, que eventualmente se conclui? Hipótese a se considerar, mas também reducionista. Algo que chama a morte pra exercitar a ideia de ressurreição. Lembrar da morte para viver algo de onírico. Afinal, Memento Mori.
Rafael Marcelino