REPRESA

Debaixo dos panos

 

A produção pernambucana “Represa” é um triller psicológico, que não se contenta em apenas sê-lo. O filme de Milena Times, exibido na Mostra Brasil 10, conta a história de um personagem (interpretado por Sebastião Formiga) que vive só e que percebe que alguém (Verônica Cavalcanti) invade sua casa em busca de comida. Poderia ser só isso e, da maneira como é realizado, já seria bom o bastante.

Mas a premissa de que há algo errado, cria um estado de tensão no filme e, por extensão, em nós, que ficamos completamente envolvidos no suspense da narrativa. Elementos como o café e a Coca-Cola tornam impossível não associar o filme à tragédia recente de Mariana, a toda a lama política e social que se transformou em negligência e que, até agora, encontra dificuldades para responsabilizar as grandes empresas envolvidas na tragédia.

O filme “Represa” fala das coisas que insistimos em colocar debaixo dos panos, em esconder dos outros e muitas vezes de nós mesmos: o nosso lado mais obscuro, até que a verdade explode e somos obrigados a olhar para o feio, para o monstruoso e assustador.

O elemento água doce funciona como um estado de pureza que precisa ser destruído, para que possamos encarar as agruras de nós mesmos. A economia de recursos, a concisão da narrativa e o final em aberto mostram o domínio de uma cineasta que sabe contar uma história com o mínimo. Econômico na edição e até na quantidade de planos, o filme mantém a atenção do espectador sobre um personagem que é comum, até ordinário em sua rotina metódica.

Anti-herói em sua essência, o personagem trabalha em uma loja de conveniência dentro de um posto de gasolina. Uma de suas funções é justamente vigiar os clientes para que não roubem mercadorias. Morador de uma casa/fortaleza como a maioria de nós nas grandes cidades, pretensamente protegido pelas grades que protegem, mas também afastam de qualquer contato mais humano, o personagem vive uma existência vazia e solitária.

Pode-se associar o filme ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) e, mais especificamente, ao livro “Confiança e Medo na Cidade”, em que discute as relações entre os seres que habitam a cidade. Segundo ele, nos últimos anos, o medo e a obsessão por segurança ganharam espaço mas, paradoxalmente, apesar de vivermos nas sociedades mais seguras que jamais existiram, nos sentimos cada vez mais “ameaçados, inseguros e assustados”.

É essa a sensação que o filme nos passa, quando começamos a antever as marcas deixadas pelo invasor. Nossa segurança é também tão ilusória quanto o ambiente artificial do aquário, nossa vida tão fake quanto as algas artificiais, nossa percepção do outro tão embaçada quanto um aquário revirado.

Em um mundo líquido, escorregadio nas relações pessoais e profissionais, Bauman vincula essa situação ao individualismo contemporâneo, pois, ao eliminarmos a importância das comunidades e corporações, obrigamos os homens a cuidarem apenas de si mesmos, o que gera incertezas e medo.

Segundo Bauman, esse sentimento de insegurança surge devido a dois fenômenos típicos da modernidade: por um lado, a supervalorização do indivíduo, ao libertá-lo do “peso” imposto pelas redes e laços sociais em demasia; por outro, a exacerbação dessa liberdade levou esse mesmo indivíduo a se sentir frágil e vulnerável. O filme, de maneira muito simples, trata de todas essas questões.

(Adriana Gaeta Braga)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *