Strange Fruit: respeito ao outro

strange fruit

por Eleonora Del Bianchi –

Southern trees bear a strange fruit/ árvores do sul produzem uma fruta estranha

Entre 1889 e 1940, mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos  EUA […] os negros eram mortos e exibidos ao público: pendurados em galhos de árvores, como  ‘frutos estranhos’… (O Globo, 2012)

Em 1939 Billie Holiday fazia pela primeira vez a performance de Strange Fruit em um  café num porão da rua Sheridan Square numa Nova York ainda segregacionista. A música começava e terminava em completa escuridão. Essa foi considerada a primeira canção explícita contra o racismo, 16 ano antes dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos e contra os linchamentos que ainda ocorriam, escancarando a situação e aflorando reações controversas.

O curta de animação israelense Strange Fruit retoma a música com uma delicadeza imensa, trazendo em seus sete minutos de duração agoniantes a história da visão de uma criança sobre o diferente e o que ele aprende com seu avô. Sem falas, o curta é extremamente expressivo. Após o contato inicial em que o menino verde deixa uma mancha no outro e corre, o primeiro estende a mão e, com um aperto no coração, apesar de inexistente (porque o aperto no coração é do espectador e não da cena), é possível ouvir sua voz dizendo: “Espera, eu não me importo, mas por que você é diferente?”. Quando a criança mostra o lenço ao menino verde após empurrá-lo e fixa a mancha verde no blanço enquanto espera o outro aparecer parece implícita sua voz: “como você ousa me contaminar e ao mundo com sua tinta verde?”.

Além do sorriso de escárnio que aparece após sua demonstração de raiva e aprovação do avô. No final, após ser confundido com um menino verde, ao invés de se colocar no lugar do outro, ele guarda ainda mais raiva: “a culpa foi do menino verde, por ter existido”. Matá-lo parece pouco, ainda com seu sorriso, maior do que nunca, ele também quer derrubar a árvore. “Aqui está a fruta para os corvos arrancarem, para a chuva recolher, para o vento sugar, para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair”.

Por mais que a trilha seja minimalista e de tensão realmente espera- se, talvez, com uma mentalidade de Disney, que por ser uma animação, com crianças, algo de bom vá acontecer. Mas a História não é assim e o curta tambem não. O ódio só gera mais ódio. E a culpa por atos e consequências recaem sobre os mais fracos. A canção Strange Fruit, que pode se relacionar a diversos contextos e momentos históricos, foi escrita por Abel Meropol, um professor judeu, e readaptada agora com o patrocínio do Fundo para Filmes e Televisão de Jerusalém, durante um período delicado no Oriente Médio.

Não é necessário ir muito longe no tempo e espaço para encontrar um exemplo de preconceito ou racismo. Mas da mesma forma como um avô pode dar exemplo, um curta, uma canção e outras formas de arte também, podem. O que faz a diferença é o que e quanto da mensagem é absorvido.

Strange Fruit está na Mostra Internacional 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Kyota e sua sabedoria precoce

kyota

por Letícia Fudissaku –

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Em meio às intensas tramas presentes na Mostra Internacional 4, o curta Kyota – O Pequeno Entregador foi como uma brisa de ar fresco. Com uma trilha tipicamente japonesa, o curta já dita seu ritmo leve e agradável. Kyota é um garotinho sagaz e carismático em sua excentricidade. Por se tratar de uma sequência, não há muito tempo para apresentar o personagem – o que não chega a incomodar, porque assim o conhecemos melhor conforme a história se desenrola. Além disso, o incidente incitante da narrativa é novidade tanto pra nós quanto para Kyota: uma pequena recém-chegada em seu bairro.

Me impressiona a habilidade dos realizadores de curtas-metragens, como um todo, de transmitir o máximo de informações visualmente, dado o tempo reduzido. Só pelo chapeuzinho de Kyota, vemos que ele é diferente dos demais e, ao ver uma garotinha de macacão e máscara, seus olhos brilham em comemoração: “Achei alguém como eu!”. Por uma coincidência, sua mãe tem de entregar uma encomenda na casa dos novos moradores. E lá vai o pequeno Kyota cumprir essa missão – a visão de um garotinho tão jovem caminhando sozinho cheio de mercadorias é quase absurda aos olhos da brasileira que sou, de tão impraticável que seria em nossa realidade…

Quando o encontro acontece, a história toma um rumo bem diferente do habitual boy meets girl. Kyota descobre que as coisas que lhe chamaram atenção na menina eram apenas ordens vindas do pai. Num diálogo simples e ao mesmo tempo profundo, ela diz “Pensei que você era igual a mim, ia te chamar pra brincar comigo”, ao que Kyota responde algo como “Nós não precisamos ser iguais para brincarmos juntos” (talvez em forma de pergunta, não me lembro bem). Unidos, os dois se libertam de seus adereços – o chapéu dele e o macacão dela – e saem juntos para brincar.

O pai da garotinha, furioso, vai correndo ao seu encontro. É até divertida a postura de Kyota, nem um pouco intimidado pelo homem – pelo contrário, chega até a elogiar sua atitude. A fala inocente de Kyota desperta o pai de seu extremismo e este se ajoelha frente à filha, pedindo-lhe perdão. No que diz respeito ao núcleo familiar, a sociedade japonesa é vista como muito rígida e ligada à disciplina. Justamente por isso, essa inversão (pais abandonando sua autoridade pelo bem dos filhos) é válida e presente em outras produções japonesas – como o longa Pais e Filhos, de Hirokazu Koreeda.

É interessante reparar no dilema de Kyota, paralelo aos acontecimentos, de largar ou não seu chapeuzinho. Não me arrisco a identificar o que ele simboliza, pois ainda quero assistir o primeiro filme da sequência. Mas é seguro dizer que, assim como seu protagonista, o curta-metragem Kyota – O Pequeno Entregador é autêntico e envolvente, retratando temas complexos em situações simples.

Kyota – O Pequeno Entregador está na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Ignorância instintiva

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por Letícia Fudissaku –

Na Mostra Internacional 4, vemos cinco situações em que as personagens tem de lidar com elementos contrastantes em seu universo. Se em O Barulho e Reunião de Condomínio o conflito tem como base a moradia dos personagens, em Deserto e Cólera temos condições um tanto diferentes – mas que, ainda assim, aproximam-se em seu subtexto.

Em Deserto, acompanhamos a trajetória de uma soldado que perdeu seu rifle e recorre à ajuda de um beduíno. Se o espectador espera uma aproximação entre essas personagens, em contraponto à inimizade dos grupos a que pertencem – a exemplo de O Menino de Pijama Listrado ou filmes infantis como O Cão e a Raposa, muito se engana: no clímax da narrativa, a protagonista não hesita ao tomar uma atitude em benefício próprio, que leva também à morte do homem momentos depois.

Vale lembrar que a soldado possuía uma conduta exemplar, até cometer o deslize de perder sua arma às vésperas de sua “formatura”. Ainda assim, suas atitudes passam longe do bom senso: ela engana o beduíno para obter sua ajuda e descarta-o friamente assim que encontra seu rifle. Ele, mesmo ao perceber que foi enganado, diz que a ajudaria do mesmo jeito se ela tivesse dito a verdade. Logo, fica claro que os dois personagens não passam por mudança alguma de valores. Mais do que isso, evidencia-se a percepção da soldado de certo e errado, priorizando o dever e ignorando a humanidade os possíveis inimigos.

Já no sagaz e intenso Cólera, temos a mesma postura impiedosa e fria dos soldados aplicada aos membros de um vilarejo, que querem acabar com o “monstro” que passou a viver nos arredores. Em ambos os casos, a força se sobrepõe à empatia, transformando quem poderia ser visto como um semelhante numa mera presa. Mas, ao final, Cólera se mostra mais espirituoso: a aberração – que é na verdade um rapaz com um estágio avançado de cólera – é alvejada e cai na represa que fornece água ao vilarejo. Num brilhante uso do karma, é justamente a investida contra o doente que disseminará a doença entre eles.

Em seus poucos minutos, Cólera transmite seu recado de forma poderosa, condenando o pensamento extremista e violento daqueles que não praticam a empatia ao contato com aqueles que são, de alguma forma, diferentes. E, se em Cólera vemos os danos da ignorância coletiva, a trama de Deserto complementa a mensagem, evidenciando o comportamento egoísta de uma personagem aparentemente íntegra, quando afasta dos seus iguais.

Deserto e Cólera estão na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2014