Universo: Sob a luz do cinema

universo

por Rafael Dornellas –

Pensemos nas gerações de cineastas que nasceram da cinefilia, da construção de um olhar a partir de um passado sólido do cinema, dos primeiros formados em cursos de cinema de universidades, dos maneiristas pós-modernos, pós-Nouvelle Vague. Para eles a questão não era subverter o que havia sido cimentado até então, não era questionar a mise en scène classicista e desenvolver uma nova encenação. Não era o choque. Essa questão já fora desmembrada e posta à prova por Godard, Rivette e outros “jovens turcos” na França nos anos 60. Não somente o cinema clássico já estava estabelecido, como também o moderno, o novo.

Para as gerações pós modernas, então, antes de posicionar sua câmera era necessário realizar toda uma reflexão acerca do cinema e encarar de frente o peso do passado já estabelecido. A busca pelo segundo grau da imagem, pela ressignificação de um plano, sua hipertrofia e monumentalização, deu luz a um cinema compromissado com a cena, compromissado com o próprio cinema.

No curta metragem Universo, de Nicolas Thomé Zetune, presente no programa Cinema em Curso 2, destinado a curtas universitários, a história e seus conflitos é dada de maneira direta: um encontro entre um homem e uma mulher, suas lembranças, sua paixão, seus obstáculos e sua entrega. Aqui não há preocupação com virtuosismos narrativos, sacadas de roteiro, pistas, recompensas e elucubrações abstratas. A responsabilidade é com a encenação, com a materialidade das interações em quadro. Mais do que homenagem e citação, Universo parte de um passado sólido da história do cinema e se utiliza desses elementos para construir um olhar sobre o mundo e situação que se filma.

São Paulo é filmada sem grandes simbologias e deslumbramentos. Acompanhada por uma trilha sonora operística, a cidade intercala a interação que se dá frente à câmera: seca, rígida, resultado do estranhamento desse encontro abrupto registrado a partir de uma câmera fixa, que desloca o eixo central do quadro em momentos de aproximação do casal, descentralizando a ação e materializando o já citado estranhamento.

Há na interação do casal protagonista o afastamento de um naturalismo que buscaria alguma empatia sentimental com o espectador. A relação é exposta nas falas de forma dura e construída a partir de ações que residem nos gestos – como no momento de suspensão que precede o ato sexual no qual vemos a mão de uma das personagens lentamente se direcionando ao corpo de seu companheiro –, trazendo como pano de fundo a trilha musical intensa que produz um choque à imagem e a circunstância dada.

O rigor formal, o plano fixo e os choques construídos nas elipses apontam para um caminho sintetizador de uma reflexão necessária acerca do próprio cinema, para uma consciência de se encarar o peso de seu passado, lidar com a crise proveniente desse peso e resultar na síntese desses elementos. Um filme na contramão, realizado em um ambiente de cinema universitário que carece de tais reflexões, de um momento atual frágil em que não há compromisso algum com a linguagem utilizada, tomado por filmes vazios, “espertos” e formalmente invadidos por uma estética publicitária estéril em que a beleza imagética se justifica nela mesma e resulta em obras purificadas por um equilíbrio asséptico.

Poderíamos evocar diversos cineastas como possíveis referências para o desenvolvimento do curta em questão. Mas a força de Universo vem justamente da absorção de referências para o desenvolvimento de um objeto específico, da supressão de fetiches baratos e citações gratuitas a favor de um todo sintetizador consciente daquilo que se filma: é a colocação assumida de se realizar um filme que carregue em suas imagens o cinema em si. É saber que se filma carregando nos ombros o seu passado estabelecido. É o compromisso com o cinema.

Universo está na mostra Cinema em Curso 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Tensões internas no quadro

nina

É difícil “separar” o trabalho dos departamentos em um filme pronto, mas é nítido aqui um requinte e um domínio de técnicas de direção, amparadas por uma montagem sensível em termos de ritmo, que (me) surpreende no conjunto das mostras Cinema em Curso e no conjunto do festival. A escolha por longos planos gerais se sustenta na articulação de tensões internas ao quadro entre pontos de atenção central e periférica que criam um dinamismo interno ao quadro fixo. E o plano-sequência em que o rapaz desenha as flores é impressionante.

E estou me referindo, claro, a virtudes narrativas. Pessoalmente, não descarto a narrativa clássica como alternativa para o cinema contemporâneo. Neste caso, apontar a relevância de um domínio e de um correto emprego dos procedimentos não deixa de ser uma perspectiva neoclássica de “arte = técnica”. Mas, convenhamos, arte não se trata simplesmente de boas ideias. Não se trata, claro, de más ideias, mas o mundo não é binário, e fora da ficção não temos a alternativa melodramática de recorrer ao desengano.

Nina, por exemplo, me deixa com um gosto estranho na boca, a despeito de sua “leveza”. O ponto delicado é se tratar de um filme profundamente alegórico.

Vejo uma metáfora sobre a arte e o trabalho artístico: o artista como bufão, a arte como uma paixão. Essa paixão, no entanto, é artificialmente produzida a partir do zero – elemento que dialoga diretamente com, pelo menos, outros dois filmes da mostra, Pracinha de Odessa e O Tradutor em que prevalece o imaginário do tradutor. A criação responde a um desejo, a uma vontade íntima de que algo exista para mediar a relação com o mundo. Ou seja, a personagem feminina é produto do imaginário da personagem masculina, produzida justamente para dar conta de um desejo interno a ele. E ela torna-se a perspectiva de superação desse universo de solidão e a centralidade do desejo dos dois, pelo qual eles lutam.

Reiterando um lugar já muito explorado pela ficção industrial, a mulher está diretamente associada a “amor” e a “felicidade”, da mesma forma que o palhaço mau repete o vilão absoluto, com relação ao qual a mocinha pode apenas se desiludir. Mesmo num ambiente alegórico, se estabelece um caminho muito claro e direto para essa “resolução” dos eventos. A relação das personagens não evolui do estado inicial de deslumbramento em que se vê a personagem. A ideia de “relação” se vê destituída de toda sua complexidade e perde seu sentido de um processo interminável de troca.

Não apenas o filme reitera um entendimento profundamente idealizado (e assim frustrante) da criação artística e da relação afetiva, como desperdiça seu minucioso trabalho de narração para afirmar um sentimento profundamente romântico e ingênuo com relação à arte. Para meu supremo desgosto, o amor e a simplicidade não dão conta das complicações contemporâneas.

João Pedone

Nina está na Mostra Cinema em Curso 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Mãe, você viu meu tripé?

no interior da minha mae

A situação não nos é estranha: uma viagem de visita a parentes distantes. Onde muitos jovens veriam apenas dias tediosos e bochechas apertadas à exaustão, Lucas Sá encontra um material valioso para a produção de um curta-metragem. No Interior da Minha Mãe é, em termos gerais, um simples registro de uma viagem de família – porém, a narrativa é habilmente conduzida pela sagacidade e irreverência de seu diretor, tornando-se um relato familiar (com o perdão do trocadilho) a todos os espectadores.

É fácil se identificar com as situações e piadas internas da família de Lucas, como se fosse possível sentir seu embaraço quando, por exemplo, sua mãe usa chicletes mascados nos puxadores do armário. Os momentos em que as personagens interagem com a câmera – mais precisamente, com o câmera – são particularmente divertidos, por mostrarem uma completa descontração nesta relação, como se as tias de Lucas já estivessem acostumadas com o “estrelato”.

Neste aspecto, pode-se discutir a ideia de privacidade. No filme, Lucas de fato expõe bastante seus familiares, em alguns momentos um tanto constrangedores. Mas, com o decorrer da história, nota-se que esse tom é próprio do autor (presente inclusive no título), porém não particularmente ofensivo. Não é como se ele usasse suas tias como fantoches abobalhados – até porque, notamos uma sintonia entre ele e os demais, como se o bom humor estivesse no sangue. Talvez esteja!

As cenas que incluem fragmentos audiovisuais da região dão um toque mais sarcástico ao curta, como o pequeno rádio de pilha tocando músicas antigas e a TV exibindo programas esdrúxulos – o inspirador monólogo da apresentadora de um programa de jogos por telefone é uma das cenas mais engraçadas (“Eu não gosto de falar isso não, mas eu vou falar!”). Outro momento interessante é a sequência de uma festa típica em que o áudio original é substituído por uma música eletrônica, de balada.

Daí, ficam claras as duas poderosas armas de Lucas: a montagem e a linguagem. A primeira faz uma verdadeira transmutação com o material capturado, dando-lhe dinamismo e tornando-o ainda mais divertido. A segunda é, talvez, a mais importante, uma vez que atribui um sentido mais profundo do que uma mera risada compartilhada: com uma linguagem bem definida, No Interior da Minha Mãe nos convida reinterpretar o conceito de família – não só como uma instituição necessária, mas com a ternura e a naturalidade que cada uma delas apresenta em seu habitat natural.

Letícia Fudissaku

No Interior da Minha Mãe está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013