Caos familiar

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por Pither Lopes –

As obsessões nascidas das relações humanas é um terreno que sempre inspirou a produção cinematográfica. Na obra de arte, adentrar o ambiente conflituoso das emoções e investigar a capacidade destrutiva dos indivíduos pode ser desafio árduo e perigoso. No cinema, arte que carece compor mundos sensíveis, a investigação da complexidade dos nossos impulsos se transforma numa linha tênue entre o verossímil e o ridículo.

Cloro, curta-metragem do diretor Marcelo Grabowsky, tenta explorar o drama de uma família abastada a partir de suas incompletudes e frustrações. É na piscina de uma mansão, em um ambiente aparentemente familiar e feliz, que os sentimentos afloram e o conflito é estabelecido. Um pai corrupto e uma mãe ausente, protagonistas de um casamento fracassado, influenciam o turbilhão sentimental de uma garota prestes a completar 15 anos.

Grabowsky quer mostrar como as relações familiares podem ser destrutivas a partir de um contraponto entre as aparências e aquilo que as famílias realmente são quando olhadas mais de perto. Apesar de criar planos poderosos e fazer boas escolhas com a câmera, o diretor não consegue o mesmo quando escreve seus personagens. Com personalidades e dramas corriqueiros nas novelas brasileiras, o conflito de Grabowsky se torna inconsistente e por vezes excessivo.

O ambiente complexo das obsessões humanas sempre foi prato cheio para Ingmar Bergman. A família, substrato social preferido do cineasta sueco, era retratada com sutileza, diálogos certeiros e momentos de puro silêncio poético. Para não cair nos estereótipos de um folhetim das nove, que também se apropria constantemente dos dramas familiares, o curta Cloro talvez precisasse trabalhar mais as sutilezas de seu roteiro e podar os excessos para não cair em um ambiente tão melodramático.

Com um longa-metragem no currículo, o documentário Testemunha 4, o jovem diretor acerta ao utilizar a luz do sol para compor bem sua fotografia. A inexistência de uma trilha sonora também foi essencial para explorar e valorizar os sons do lugar paradisíaco em que se passa o filme. A interpretação afetada do elenco, principalmente quando mãe e filha duelam na piscina e são separadas pelo pai, é consequência dos clichês inseridos no drama de cada personagem.

O diretor franco-suíço Jean-Luc Godard disse certa vez que para se tornar um grande diretor basta pegar uma câmera. Talvez seja importante pensar em uma declaração de Martin Scorsese como resposta. Ao falar sobre o ofício da direção para os jovens diretores, ele disse: “Tudo se resume a uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos: ‘Você tem algo a dizer?’”.

Cloro está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Tensões internas no quadro

nina

É difícil “separar” o trabalho dos departamentos em um filme pronto, mas é nítido aqui um requinte e um domínio de técnicas de direção, amparadas por uma montagem sensível em termos de ritmo, que (me) surpreende no conjunto das mostras Cinema em Curso e no conjunto do festival. A escolha por longos planos gerais se sustenta na articulação de tensões internas ao quadro entre pontos de atenção central e periférica que criam um dinamismo interno ao quadro fixo. E o plano-sequência em que o rapaz desenha as flores é impressionante.

E estou me referindo, claro, a virtudes narrativas. Pessoalmente, não descarto a narrativa clássica como alternativa para o cinema contemporâneo. Neste caso, apontar a relevância de um domínio e de um correto emprego dos procedimentos não deixa de ser uma perspectiva neoclássica de “arte = técnica”. Mas, convenhamos, arte não se trata simplesmente de boas ideias. Não se trata, claro, de más ideias, mas o mundo não é binário, e fora da ficção não temos a alternativa melodramática de recorrer ao desengano.

Nina, por exemplo, me deixa com um gosto estranho na boca, a despeito de sua “leveza”. O ponto delicado é se tratar de um filme profundamente alegórico.

Vejo uma metáfora sobre a arte e o trabalho artístico: o artista como bufão, a arte como uma paixão. Essa paixão, no entanto, é artificialmente produzida a partir do zero – elemento que dialoga diretamente com, pelo menos, outros dois filmes da mostra, Pracinha de Odessa e O Tradutor em que prevalece o imaginário do tradutor. A criação responde a um desejo, a uma vontade íntima de que algo exista para mediar a relação com o mundo. Ou seja, a personagem feminina é produto do imaginário da personagem masculina, produzida justamente para dar conta de um desejo interno a ele. E ela torna-se a perspectiva de superação desse universo de solidão e a centralidade do desejo dos dois, pelo qual eles lutam.

Reiterando um lugar já muito explorado pela ficção industrial, a mulher está diretamente associada a “amor” e a “felicidade”, da mesma forma que o palhaço mau repete o vilão absoluto, com relação ao qual a mocinha pode apenas se desiludir. Mesmo num ambiente alegórico, se estabelece um caminho muito claro e direto para essa “resolução” dos eventos. A relação das personagens não evolui do estado inicial de deslumbramento em que se vê a personagem. A ideia de “relação” se vê destituída de toda sua complexidade e perde seu sentido de um processo interminável de troca.

Não apenas o filme reitera um entendimento profundamente idealizado (e assim frustrante) da criação artística e da relação afetiva, como desperdiça seu minucioso trabalho de narração para afirmar um sentimento profundamente romântico e ingênuo com relação à arte. Para meu supremo desgosto, o amor e a simplicidade não dão conta das complicações contemporâneas.

João Pedone

Nina está na Mostra Cinema em Curso 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013