Mãe, você viu meu tripé?

no interior da minha mae

A situação não nos é estranha: uma viagem de visita a parentes distantes. Onde muitos jovens veriam apenas dias tediosos e bochechas apertadas à exaustão, Lucas Sá encontra um material valioso para a produção de um curta-metragem. No Interior da Minha Mãe é, em termos gerais, um simples registro de uma viagem de família – porém, a narrativa é habilmente conduzida pela sagacidade e irreverência de seu diretor, tornando-se um relato familiar (com o perdão do trocadilho) a todos os espectadores.

É fácil se identificar com as situações e piadas internas da família de Lucas, como se fosse possível sentir seu embaraço quando, por exemplo, sua mãe usa chicletes mascados nos puxadores do armário. Os momentos em que as personagens interagem com a câmera – mais precisamente, com o câmera – são particularmente divertidos, por mostrarem uma completa descontração nesta relação, como se as tias de Lucas já estivessem acostumadas com o “estrelato”.

Neste aspecto, pode-se discutir a ideia de privacidade. No filme, Lucas de fato expõe bastante seus familiares, em alguns momentos um tanto constrangedores. Mas, com o decorrer da história, nota-se que esse tom é próprio do autor (presente inclusive no título), porém não particularmente ofensivo. Não é como se ele usasse suas tias como fantoches abobalhados – até porque, notamos uma sintonia entre ele e os demais, como se o bom humor estivesse no sangue. Talvez esteja!

As cenas que incluem fragmentos audiovisuais da região dão um toque mais sarcástico ao curta, como o pequeno rádio de pilha tocando músicas antigas e a TV exibindo programas esdrúxulos – o inspirador monólogo da apresentadora de um programa de jogos por telefone é uma das cenas mais engraçadas (“Eu não gosto de falar isso não, mas eu vou falar!”). Outro momento interessante é a sequência de uma festa típica em que o áudio original é substituído por uma música eletrônica, de balada.

Daí, ficam claras as duas poderosas armas de Lucas: a montagem e a linguagem. A primeira faz uma verdadeira transmutação com o material capturado, dando-lhe dinamismo e tornando-o ainda mais divertido. A segunda é, talvez, a mais importante, uma vez que atribui um sentido mais profundo do que uma mera risada compartilhada: com uma linguagem bem definida, No Interior da Minha Mãe nos convida reinterpretar o conceito de família – não só como uma instituição necessária, mas com a ternura e a naturalidade que cada uma delas apresenta em seu habitat natural.

Letícia Fudissaku

No Interior da Minha Mãe está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Prever o futuro, lembrar o passado

mauro em caiena

Há um cinema muito particular vindo de Pernambuco, Fortaleza e Recife, nos últimos anos, e que é de rico conteúdo. Mais interessante ainda, uma boa parte dele tem se concentrado, organizadamente, no curta-metragem. A primeira vez que percebi isso foi quando vi o curta Muro (2008), de Tião, que me deixou com uma forte impressão, um turbilhão de ideias e uma inquietação grande de saber de onde tinha vindo – quem eram esses “novos” realizadores?

Fui descobrindo que havia muito mais no cinema do Nordeste do que eu conhecia; o timing para a descoberta foi ótimo porque, desde então, não é difícil encontrar ótimos filmes em festivais que tenham surgido dali – Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus, é um deles.

Como muito dos filmes que tem surgido de realizadores dessas cidades, Mauro em Caiena é um filme que sabe muito bem como observar seu redor, ou seja, entender criticamente a experiência do tempo e lugar no qual se vive, além de, no caso, saber se projetar no passado, presente e futuro desse lugar – o cineasta se entende como parte de um processo, que inclui sua família e seus vizinhos: enquanto a cidade no entorno se altera, mudam também seus sonhos, sua maneira de agir e olhar.

O primo moleque de Leonardo gosta de se fazer de dinossauro e o curta abre com uma colagem de filmes antigos do Godzilla e a performance do garoto para a câmera. Cômica e de criatividade infantil, o filme, narrado como uma carta de Leonardo ao seu tio, consegue apreender outras camadas dessa relação, criando metáforas, como a do Godzilla, que estimulam interpretações abertas a seu público – no caso, achei tanto cômica quanto angustiante a citação do monstro nuclear nesse meio (o filme se mantém no preto-e-branco das colagens), a comparação do sentimento do fortalezense frente a urbanização com a paranóia masoquista do Toquiano pós-guerra. Há uma certa depressão contida nesses filmes, que se comunica através da mais aguda consciência social, unida de formas fílmicas interessantes, densas.

Depois dessa introdução, o filme continua como uma colagem de retratos, paisagens e registros poéticos dos arredores do cineasta, através do diálogo imagem-texto; descobrimos que a carta, ou a vídeo-carta, se dirige para o tio de Leonardo, Mauro, que se exilou na Guiana Francesa, um “lugar para o qual ninguém foge”. Filma-se na impossibilidade de encontrar esse tio, de apreender e conhecer completamente a história de uma família e de conseguir prever seu futuro. Resta filmar, registrar, e projetar-se nessas memórias, nesses indivíduos e nessas trajetórias, para projetá-las numa sala de cinema e com isso, talvez, comunicar esse sentimento fugaz da simpatia. Paralelismo de coração, que se tem com a trajetória de sua família, indistinta de suas memórias, potencias e da materialidade de onde se vive, em constante transformação, lugar de inquietude, separação e transição da infância a uma vida adulta que trás novos horizontes – mas quais?

Comecei falando que, quando primeiro me deparei com um curta nordestino recente, fiquei me perguntando “como chegaram nesse resultado?” (ou seja, que trajetória cinematográfica percorreram para criar aquela obra), até descobrir que muitas dessas obras são exatamente sobre esses deslocamentos, de cidade, biografia e olhar.

Rodrigo Faustini

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Quatro filmes em um

amor cru

Minhas hipóteses sobre Amor Cru (Amor Crudo) são quatro: ou o filme tem um esquema complexo de narração que alterna memória (ou fabulação) e realidade; ou os dois meninos estavam namorando e um deles não sabia; ou então o menino mais novo levou o fora mais cretino da história e nem ligou; ou na Argentina é perfeitamente casual amigos heterossexuais dormirem juntos na mesma cama, tomarem banho juntos e masturbarem um ao outro.

A última hipótese me parece a que melhor dá conta do filme. Nesse caso, o filme é uma investigação antropológica a respeito das formas de sexualidade entre jovens argentinos: dois rapazes obtém prazer sexual um com o outro enquanto não iniciam sua vida afetiva. Isso significaria que a sociedade argentina alcançou um grau de liberdade sexual em que o prazer sai da esfera privada da relação íntima do casal e atinge uma esfera de descoberta coletiva. Sob esse prisma, o filme é sobre a incongruência dos desejos de dois rapazes: um que quer curtir e o outro que quer namorar.

Talvez o filme seja justamente sobre esse menino homossexual que aprende a se libertar de valores afetivos tradicionais. Diante da impossibilidade de concretizar a relação com seu amigo, ele precisará aprender a lidar com a inexorabilidade da vida e das relações humanas. O filme seria, então, a narrativa da frustração afetiva desse menino, a qual seria um passo em seu amadurecimento pessoal. O filme marca essa transição associando-a diretamente com o fim das aulas e o início do verão (esse horizonte desconhecido, onde o grupo de amigos pode continuar unido ou não). O menino seria, assim, um herói lunar, que conquista a felicidade assumindo uma postura resignada diante do obstáculo. É uma perspectiva que se opõe ao herói solar, estandarte masculino de um cinema narrativo clássico, e adere a um grupo de valores mais intimistas e femininos.

A bem da verdade, não acredito em nada disso. Acredito que se trata de um filme “ruim”, cuja narrativa é atravancada e cujos signos não convergem, e ponto final. Mas resolvi deixar de lado a crítica autoritária e cedi à postura de crítico generoso. Afinal, ‘gays’ é um tema tão em voga hoje em dia, e alguma discussão o filme suscita. Respostas? Nenhuma.

João Pedone

Amor Cru está na Mostra Libercine. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Caminhando por sensações

o inverno de zeljka

Panorama bem interessante da produção nacional atual, vou destacar alguns pontos de cada filme da Mostra Brasil 5 sem traçar nenhuma semelhança explicita entre eles. Foco aqui nas particularidades de cada um as semelhanças são consequência.

Os filmes selecionados são de vários locais do Brasil. Alias, não só do Brasil: temos o curta O Inverno de Zeljka, de Gustavo Beck (o quinto filme do diretor), que se passa entre Croácia, Dinamarca e Brasil; Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus (sétimo filme do jovem e experiente diretor), que se passa no Ceará; Não Estamos Sonhando, de Luiz Pretti (nono filme do diretor), de Minas Gerais; Cajamar, de Bruno Risas (belíssima estréia do diretor), se passa em São Paulo; e Nascemos Hoje, Quando o Céu estava Carregado de Ferro e Veneno, de Marco Dutra e Juliana Rojas (nono filmes dos diretores), que se passa em algum lugar da via láctea, talvez?

Começamos com O Inverno de Zeljka, curta que foi pensado num projeto de um longa com dois episódios. Nesse filme em preto e branco o que mais me chamou a atenção foi a parte sonora, ou não sonora, pois ele é completamente sem som, nem uma palavra nem um ruído, nem uma musiquinha de fundo, o que me fez imergir totalmente nas imagens, e estas eram bem lentas, frias e silenciosas, contavam em forma de documento a lenda do Inverno de Zeljka, com uma narrativa com ares de primeiro cinema. Simples, só que diferente e inovadora, tanto que a principio nem eu entendi o que estava vendo ali. Diria que é um filme difícil de digerir até cair a ficha.

Do silêncio absoluto fomos para a risada do menino sapeca, criativo e divertidíssimo Mauro em Caiena, meu curta preferido dessa sessão. Projeto bem pessoal do diretor Leonardo Mouramateus – que também participou da sessão especial Desbunde Tomada Única com Lagoa Remix, onde usou fragmentos de seu filme Europa. O documentário é sobre seu tio Mauro (como citou o diretor na apresentação de seu curta) e da saudade que ele deixou em toda família, em especial na avó e no narrador/personagem após partir para a Guiana Francesa.

Mouramateus nos conduz através da história com uma narrativa em forma de carta e poesia, as imagens são independentes da narração e ao mesmo tempo amarradas a ela. É traçado um paralelo entre as personagens do menino, de Mauro e do narrador. Em alguns momentos dos filmes as personagens se fundem, o menino brinca, sobe em arvore, pula muros, assim como Mauro que tem a “capacidade de se transformar em dinossauro ou lembranças”, assim como o narrador que quando a vó via chegar e de longe achava que era Mauro chegando, pois eles tem o caminhar parecido. Depois desses deliciosos 19 minutos até eu fiquei com saudade de Mauro e desejando que ele volte a Caiena para que eu possa ver mais histórias como essa.

O terceiro filme dessa mostra tem três pontos que eu quero destacar. Começo pela fotografia: o uso magnífico da cor branca na primeira cena de Não Estamos Sonhando dá um ar de paz e tranquilidade ao curta, que é também característica da personagem, como se de fato fosse um sonho, o que ao longo do filme vai ser totalmente desconstruído. Outro ponto que vale a pena ser destacado é a direção de arte que cumpriu seu papel majestosamente, dando muitas pistas sobre o personagem, que podemos observar ser organizado, calmo, centrado – todo o cenário reflete o personagem. E o terceiro, o som, que é também personagem dentro do curta. O som é o que interage com o outro personagem, o som é o que faz o personagem e a trama se movimentar e se modificar. “Filme sobre o que acontece perto de onde o diretor mora” disse a produtora na apresentação da sessão. Filme que consegue abordar a evolução da cidade traduzida em prédios e o impacto dessa evolução no indivíduo que tem o seu espaço invadido, nesse caso pelo barulho.

Depois de todos os ruidos do filme anterior ainda com zunidos no ouvido vamos a Cajamar e passamos da perturbação física para a perturbação mental. Diferente dos outros três filmes esse ja é bem mais colorido. A personagem sente uma dor de estômago que se manifesta externamente tanto nela quanto em quem ela encontra em sua jornada diária. A partir do momento em que é questionada “quem é você?” essa dor vai ficando cada vez mais forte e além das pessoas essas marcas começam a aparecer nos lugares e o filme começa a tomar rumos estranhos, tudo fica onírico e existencialista.

Embalados por esse clima mais lúdico terminamos com essa experiência. Além de outros estados, outros países, vamos para outro mundo! Entramos num buraco de minhoca e expandimos nossa mente para receber Nascemos Hoje, Quando o Céu Estava Carregado de Ferro e Veneno, fragmento do longa de episódios Desassossego (Filme das maravilhas), cuja proposta é uma carta-manifesto baseada em um bilhete encontrado no armário de uma adolescente. Cineastas de vários lugares responderam a carta com um fragmento de filme que compõe o longa.

O que é mais interessante no curta é a proposta estética, inspirada nos filmes em VHS o que nos remete automaticamente ao final dos anos 80 começo de 90. O filme tem cara de sátira com tons de homenagem aos musicais da época, principalmente os da Disney, e de forma bem humorada nos leva nessa viagem com os dois personagens desiludidos na Terra, a moça com sua profissão e o rapaz com o relacionamento, para lugares jamais antes habitados.

Danielly Ferreira

Luz, sombras e imaginação

carrossel merry-go-round

O prazer de ver um quadro antigo, daqueles clássicos, com figuras humanas posadas, vestidas com roupas claras, que nos permitem – quando paramos para contemplá-las – imaginar uma história ou contexto para elas. Esta sensação, de nos perguntarmos de onde vem as figuras pintadas, onde estão, porque estariam ali, como viviam, do que gostavam ou tinham medo…É um prazer visual que conquista e sugere, sem ser autoexplicativo. Assim é Carrossel (Merry-go-round), de Esther Löwe.

Fotografia contrastante, muito claro e escuro, remete às telas de Caravaggio. Um quadro sem data nem país identificado. Um universo sombrio onde duas crianças vivem, sem explicação do onde ou por quê. Simplesmente estão e dominam o espaço, uma espécie de sótão escuro e cheio de objetos sinistros. São crianças aparentemente abandonadas e sozinhas, cheias de sujeira, arranhões sem curativos e roupas antigas.

Além da própria imagem, a relação fraternal entre os dois pequenos – da irmã mais velha que brinca e é protetora do irmão mais novo – desperta tanto a atenção quanto o cenário e o jogo de luzes. Curiosidade e um certo frio na barriga surgem com o suspense presente a todo momento: o que acontecerá a seguir? Do que ou de quem eles se escondem? Alguém ou algum ser vai aparecer? Mesmo sem compreender a situação e de pouco ser revelado, uma coisa é certa: os sentimentos vividos pelos dois irmãos podem ser facilmente assimilados. Ansiedade, alegria, entusiasmo, medo. O espectador é jogado no meio desse relacionamento fraterno e fantástico.

Ouvi algumas recepções negativas ao filme, principalmente pela falta de uma explicação ou pela sensação que ele cria de que algo está para acontecer, mas não acontece, o que é decepcionante. Eu já vejo de outro jeito. Tudo pode ter acontecido ou ainda irá acontecer, como se nós tivéssemos tido a oportunidade de espiar um universo paralelo, ao qual não pertencemos, rico em detalhes e perdido no tempo e espaço, cheio de coisas para serem observadas e sentidas. Um quadro com figuras que deixam de ser estáticas por alguns minutos e te conduzem para um além quadro ainda por se construir, longe de qualquer desapontamento.

Raquel Arriola

Carrossel está na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas

Umbigo à francesa

voltamos a aleia das castanheiras

Talvez o problema seja meu: azar ou intransigência. Ou talvez seja mesmo algo entre a tradição e a fórmula: rememorando as sessões que assisti nos anos anteriores, uma constatação: filmes de perfil confessional, usando voz over, com tom de voz baixo e imagens oriundas de real ou suposto arquivo familiar, com estáticas ou tendendo ao ato de imobilização, nove em dez vezes são falados no idioma francês.

Voltamos à Aleia das castanheiras (Nous sommes revenus dans l’allée des marronniers) não escapa dessa regra, tem todos os elementos de uma forma que demonstra indisposição, fraqueza em lidar com recorrências. Se do filme ou do crítico, ainda resta saber… Ou, enfim, seja algo visto em ambos. Será a língua de Voltaire referendada como oficial da melancolia e/ou subjetivação no cinema? Na arte? Será tudo parte de um clichê que se perpetua? Ou sinal de respeito aos nomes literários de Proust, Camus, Dujardin? Ou cinematográficos de Chris Marker, Agnès Varda, Resnais e boa parte da Nouvelle Vague?

Afora uma boa recordação de Adeus Mandima em 2011, nada mais dos desdobramentos contemporâneos da subjetivação no curta-metragem francófono tem me empolgado tanto. Tenho razão em me inquietar? Existem exemplos contrários? Uma coisa é fato: tais questionamentos nublaram minha visão da volta à aleia das castanheiras, das memórias afetivas da diretora Leslie Lagier.

Há embaçamento também na paisagem outonal na tela. Espero que o filme não mereça a minha avaliação contaminada, espero que me desminta, que não tenha, como resultado emocional, realmente desperdiçado a chance de um novo enfoque. Lanço mão da possibilidade de ação interativa para que quem me leia possa me dizer se me equivoco nessas considerações.

Rafael Marcelino

Voltamos à Aleia das Castanheiras está na Mostra Internacional 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas

Cego, mas não pelo sol

o sol pode cegar

Somos amantes de estórias, devoradores insaciáveis de narrativas. Seja lendo livros, indo ao cinema, ouvindo música, navegando na internet, conversando com amigos… É difícil estarmos longe de estórias, boas ou ruins. Vemos nossa própria vida como narrativa, e nos encantamos com muitas que conhecemos. E o poder das estórias, ficcionais ou não, é inegável; é a partir delas que tiramos reflexões a respeito de nossas próprias vidas.

O Sol pode Cegar relata a iniciação sexual do adolescente Paulo com Maria, que trabalha como empregada doméstica em sua casa, e que chega ao fim após a partida dela, depois de ser violentada sexualmente pelos amigos de Paulo. Há no filme três temas que por si só renderiam um filme cada um: a iniciação sexual na adolescência; a diferença imposta a indivíduos através de uma classificação em classes sociais, delimitadas a partir do poder econômico de cada um, e como isso pode afetar as relações sociais entre esses indivíduos; e aquele que estrutura-se como o clímax do filme, o ponto final dessa relação: a violência sexual.

Meu incômodo está no que senti como uma falta de cuidado com a construção narrativa relacionando esses três pilares. Meu foco firma-se sobre o último tema. A partir do momento que os três amigos entram no apartamento de Paulo e são recebidos por Maria, sabemos exatamente o desfecho daquela cena e sente-se a angústia por aquilo que está prestes a acontecer com a personagem. Angústia essa que não é criada apenas a partir da progressão narrativa do filme que encontra seu desfecho ali, mas também por termos em nós o conhecimento do ato hediondo que é o abuso sexual, e sabermos que esse é um ato que acomete muitas mulheres, assim como Maria. E estamos ali, assistindo aquilo, presenciando tudo.

A preocupação é ver que a narrativa fica na superficialidade ao submeter sua personagem a tal violência, e termina sem que possamos sair da sala com algum pensamento ou reflexão sobre o assunto, onde o estupro de Maria está apenas como desfecho chocante para a narrativa, provocador de tensão e choque para aqueles que assistem.

Mas ao retratar em sua narrativa um tema que, por mais infeliz que seja admitir isso, está presente na sociedade e vitimiza tantas mulheres, não seria mais respeitoso, e digo até mesmo mais corajoso, criar algo que possa trabalhar de maneira mais inteligente e profunda esse assunto, e não simplesmente usá-lo para como artifício narrativo para o chocante? Afinal, já somos colocamos em estado de indignação e perplexidade ao ouvir algum outro caso semelhante.

Se as estórias têm um poder que muitas vezes não nos damos conta, a ponto de serem lugares de reflexões sobre como nós mesmos vivemos nossas vidas, é necessário em alguns momentos ter um cuidado com aquilo que estamos narrando, pois o choque pelo choque pode funcionar durante o tempo de exibição, mas após a sessão pouco fica.

Tratando-se de um tema que aflige tantas pessoas, a narrativa não se debruça sobre ele, usando-o no fim apenas de maneira espetacular, o que pode ser uma ofensa para aquelas(es) que já foram vítimas da violência sexual ou já estiveram próximos desse crime. E com uma narrativa assim logo ela é esquecida, por não trazer nada que possa nos servir como um aprendizado frente nossa própria realidade, ironicamente falando dela mesma.

Pablo Gea

O Sol Pode Cegar está na Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Rápido e rasteiro

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Temas e estilos diversos convergem para a formação do curta Malária, escrito e dirigido por Edson Oda. Provavelmente um dos curtas de menor duração de todo o festival, Malária realiza a proeza de manter o interesse do espectador do início ao fim – não utilizo o termo “de maneira constante” para não remeter à inércia ou qualquer sentimento de monotonia. Até porque, o curta é extremamente dinâmico, contendo elementos de faroeste, sobrenatural e graphic novels que, combinados de maneira tal, exprimem uma narrativa bastante jovial e moderna.

A influência do diretor Quentin Tarantino (mencionado, inclusive, na coluna de agradecimentos dos créditos finais) é quase palpável de tão expressiva e muito bem-vinda, presente também na intensa relação da trilha com o enredo. De fato, as recorrentes parcerias de Tarantino com Ennio Morricone em seus filmes faz com que músicas de western sejam rapidamente rotuladas como “tarantinescas”. Mas, a meu ver, a principal característica do curta que me remete ao diretor americano é o ritmo da narrativa – quase frenético, mas sempre envolvente.

Mais do que falar de possíveis influências ou referências, é indispensável mencionar o diferencial de Malária, que pode ser resumido em uma palavra: criatividade. Uma história relativamente simples (mas não por isso menos refinada), que ganha vida de uma forma inusitada, com a utilização de grafismos, gestos ágeis e narração em off, quase como um desenho animado. A diferença é que a mobilidade da história se dá “manualmente”, com as mãos do diretor guiado os quadros, como se passasse uma linha (narrativa) de costura ligando um ponto da história ao seguinte.

Os objetos utilizados juntamente com os quadros também são dignos de menção: em especial, a tinta vermelha representando o sangue e o negativo de filme representando um flashback. Numa época de uso desenfreado de efeitos na pós-produção, é revigorante encontrar um curta como Malária, que resgata uma linguagem mais rebuscada (que me lembra, inclusive, programas infantis como Rá-Tim-Bum), permitindo que a imaginação do espectador desfrute de sua simplicidade de maneira quase nostálgica – ao mesmo tempo em que se diverte com a temporalidade e a ironia contidas em seu desfecho.

Letícia Fudissaku

Malária está na Mostra Brasil 6 e na Mostra Infanto-Juvenil. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Da farsa do teatro à banalidade cotidiana

o casamento de mario e fia

Me reservo para falar de dois extremos. Dois curtas exibidos em sequência, o que pode ter sido o motivo que me causou certo choque entre os dois. Nesta tarde, conferi O casamento de Mário e Fia, de Paulo Halm, e Pirapora, de Charles Bicalho.

O Casamento de Mário e Fia é uma história aparentemente simples. Um começo singelo, que lembra muito um conto de fadas ou um cordel típico brasileiro. A história é apresentada por um grupo de palhaços cantores que abrem a farsa, quase narrada como um teatro, através de uma cortina vermelha e um palco. Dois personagens, tidos como loucos pelos demais, Fia e Mário, se apaixonam e são levados ao altar. A história até aí é muito singela e bonita, encanta e chega até a tirar alguns risos da plateia, com os burburinhos sobre o que acontece após o casamento, na primeira noite do casal. No entanto, no meio de todo um belo trabalho de arte e de atores muito bem marcados, a história sofre um baque e os espectadores quebram a cara: Fia, a garota ingênua, é violentada por todos os homens da vila e morta logo após sua apaixonada noite de núpcias.

Acredito que o teor da narrativa, nos conduza a um envolvimento com a teatral história e ao trágico final. O que era um conto de cordel se tornou um conto russo, sempre com duros e dramáticos desfechos. Mesmo com o véu de Fia voando pela praça, um jeito simbólico de se terminar o curta, não há como não pensar em várias pontos que se ligam ao mundo real a partir desse momento: a mulher passiva e submetida à brutalidade e violência de homens, como um objeto de desejo e uso sexual, sem necessidade de consentimento e autorização; ela está ali para ser usada. Choca. Revolta. Ainda mais se pensarmos quantas Fias existem por todo o Brasil…

Depois de começar a pensar em tudo isso e de adentrar em um assunto tão sério e ao mesmo tempo tão delicado (principalmente para ser colocado de forma superficial em um parecer sobre um curta-metragem), me deparei com o curta que veio na sequencia, Pirapora. E, talvez por ter ficado, como sempre fico em boa parte dos conteúdos que abordam a questão da mulher na sociedade, o curta de Charles Bicalho me pareceu vazio.

O diretor em sua fala de apresentação comentou que esse trabalho não tinha um gênero; acabou ficando como um drama, já que ele não foi atrás do “protagonista” para que seu curta ganhasse o status de documentário. Até aí, não é do meu gosto dividir ou categorizar filmes em gêneros. Mas ele me soou raso demais. O curta, um quase plano-sequência feito por acaso, mostra um homem atravessando um rio na cidade de Pirapora. A imagem é precária em certos momentos e vemos o homem caindo algumas vezes devido à correnteza. A trilha sonora, uma senhora cantando uma música regional, compõe a estrutura completa do curta.

De imediato pensei, o que isso difere do que as pessoas fazem hoje no Youtube? Filmam um evento cotidiano que acham curioso, quase sempre não vão atrás dele ou da pessoa filmada – isso não é muito relevante, o que é importa é só a situação do momento –, podem ou não colocar uma música de fundo que deixe o vídeo mais animado e depois postam. Não quero com isso menosprezar o trabalho do diretor ou os vídeos de canais da internet, muito menos questionar ou qualificar o conteúdo da sua obra (não sou de longe capaz disso).

O ponto a que quero chegar é que vi nesse curta o registro e a construção de um momento, a partir do olhar do diretor. Mas, me parece que as pessoas em geral já fazem isso a toda hora hoje – e sem grandes diferenças deste curta para tantos outros registros online.

Sai questionando o papel de quem segura uma câmera, e tem nisso uma profissão e não apenas um entretenimento, em um mundo em que o cinema já não cabe apenas nas salas escuras. Será que apenas a captação de um momento já não ficou pra trás, (na época da mostração tecnológica cinematográfica, por exemplo) ou cada olhar e ângulo sobre eventos cotidianos, exibidos em festivais de curtas internacionais, de fato despertam o interesse do espectador nos dias de hoje, onde tudo e todos já são continuamente gravados por alguma câmera?

Raquel Arriola

O Casamento de Mário e Fia e Pirapora estão na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja as próximas sessões dos filmes no Festival de Curtas 2013

Sobre o estatuto do curta-metragem

plateia de cinema2

Festivais de cinema são a principal (quando não a única) janela para um determinado tipo de produção contemporânea de vanguarda. O Curta Kinoforum desempenha papel singular nesse meio trazendo um formato de produções cuja vida útil (limitada, justamente, a festivais) depende unicamente do “mérito artístico”: o curta-metragem. Assim, durante todos os dias do festival, desfruto de 70 a 90 minutos de grandes méritos artísticos. Três sessões por dia.

Meu problema com isso tudo é (vocês já devem ter adivinhado) justamente esse ritmo vertiginoso de filmes, o qual não deixa espaço para uma reflexão imediata sobre as obras. Mais que isso, nos obriga a experimentar um filme enquanto ainda estamos impregnados das impressões mal digeridas do filme anterior. Essa “pesquisa estética” de que o curta-metragem tornou-se espaço faz com que as sessões do Curta Kinoforum sejam eventos esquizofrênicos que não privilegiam de forma alguma os bons filmes.

Não pretendo entrar no mérito das janelas de exibição (cinema versus Internet) e muito menos questionar o Curta Kinoforum, que, como já disse, é um espaço fundamental de socialização dessa produção.

Questionável é o parâmetro de “mérito artístico”, que acaba por transformar a realização de curtas-metragens muito menos em um exercício de pesquisa de linguagem e muito mais em um exercício publicitário de “quanto mais diferente, melhor”. Os realizadores descobriram no curta-metragem um espaço de improviso e um meio de construção e divulgação de portfólio profissional. E aí as coisas facilmente descambam para um virtuosismo da técnica e uma simplificação grotesca dos temas. Isso sem falar dos insuportáveis créditos, que muitas vezes ocupam 20 a 30% do tempo dos filmes.

Importante lembrar sempre que o festival abriga coisas ótimas. E, entre elas, materiais (e não apenas de escolas) que não atingiram uma maturidade criativa ou não apresentam relevância estética. Diante de uma oferta crescente de produção, o Curta Kinoforum se alarga e acaba por abrigar muito de uma produção incipiente.

Não que eu tenha a nostalgia de achar que em algum momento da história o grosso da produção foi melhor. Não. Sempre foi trabalho do público e da crítica descobrir o que há de permanecer. Mas me parece que as sessões do Curta Kinoforum reproduzem um modelo de fruição do audiovisual associado a uma postura capitalista (ou seja, ruim) de consumo desenfreado. A experiência das sessões do Kinoforum me dessensibiliza, me coloca em uma postura esquematizante das obras. E, em um círculo vicioso, a produção de curta-metragem vai criando mecanismos semelhantes ao da publicidade de televisão: é preciso ser impactante para ser lembrado. Ao fim do dia, com dor de cabeça e grande pesar, lembro mais daqueles filmes risivelmente ruins ou com traços visuais marcantes do que daqueles belos filmes, singelos e objetivos, como O Pracinha de Odessa, como O Proustiano de Osasco, como Na sua Companhia (sorte minha que estou sempre com o caderninho a tiracolo).

Sinto que estou assistindo filmes demais e pensando de menos e entro em um rol que termina na velha pergunta “Por que produzir mais uma imagem num mundo saturado de imagens?”. Aí eu me vejo numa discussão que não tenho envergadura para manter.

João Pedone