Mãe, você viu meu tripé?

no interior da minha mae

A situação não nos é estranha: uma viagem de visita a parentes distantes. Onde muitos jovens veriam apenas dias tediosos e bochechas apertadas à exaustão, Lucas Sá encontra um material valioso para a produção de um curta-metragem. No Interior da Minha Mãe é, em termos gerais, um simples registro de uma viagem de família – porém, a narrativa é habilmente conduzida pela sagacidade e irreverência de seu diretor, tornando-se um relato familiar (com o perdão do trocadilho) a todos os espectadores.

É fácil se identificar com as situações e piadas internas da família de Lucas, como se fosse possível sentir seu embaraço quando, por exemplo, sua mãe usa chicletes mascados nos puxadores do armário. Os momentos em que as personagens interagem com a câmera – mais precisamente, com o câmera – são particularmente divertidos, por mostrarem uma completa descontração nesta relação, como se as tias de Lucas já estivessem acostumadas com o “estrelato”.

Neste aspecto, pode-se discutir a ideia de privacidade. No filme, Lucas de fato expõe bastante seus familiares, em alguns momentos um tanto constrangedores. Mas, com o decorrer da história, nota-se que esse tom é próprio do autor (presente inclusive no título), porém não particularmente ofensivo. Não é como se ele usasse suas tias como fantoches abobalhados – até porque, notamos uma sintonia entre ele e os demais, como se o bom humor estivesse no sangue. Talvez esteja!

As cenas que incluem fragmentos audiovisuais da região dão um toque mais sarcástico ao curta, como o pequeno rádio de pilha tocando músicas antigas e a TV exibindo programas esdrúxulos – o inspirador monólogo da apresentadora de um programa de jogos por telefone é uma das cenas mais engraçadas (“Eu não gosto de falar isso não, mas eu vou falar!”). Outro momento interessante é a sequência de uma festa típica em que o áudio original é substituído por uma música eletrônica, de balada.

Daí, ficam claras as duas poderosas armas de Lucas: a montagem e a linguagem. A primeira faz uma verdadeira transmutação com o material capturado, dando-lhe dinamismo e tornando-o ainda mais divertido. A segunda é, talvez, a mais importante, uma vez que atribui um sentido mais profundo do que uma mera risada compartilhada: com uma linguagem bem definida, No Interior da Minha Mãe nos convida reinterpretar o conceito de família – não só como uma instituição necessária, mas com a ternura e a naturalidade que cada uma delas apresenta em seu habitat natural.

Letícia Fudissaku

No Interior da Minha Mãe está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Semelhanças documentais

realmente

Dificilmente perceptível em um primeiro momento, existe um diálogo interessante entre os curtas Realmente, do Coletivo Belterra, e Tim, vou fazer com o que tem, de Ricardo Machado. Ambos fizeram parte da Mostra Brasil 2 – na minha opinião, foram os grandes destaques – e pertencem ao gênero de documentário. De maneiras bastante distintas, cada um deles é estruturado especialmente para apresentar e desenvolver sua personagem central.

Em Realmente, temos o cativante Gê, um rapaz de Belterra que sofre preconceito por sua voz hipernasal (fanha), mas não se deixa abalar e vive feliz à sua maneira. Incluindo entrevistas de sua mãe, seus amigos e do próprio Gê, o documentário segue uma estrutura relativamente tradicional. A “magia” do curta, por assim dizer, está centrada no carisma do protagonista, que efetua suas tarefas diárias com vigor e tem vários sonhos e planos para o futuro, como o de ser um “grande empresário”, em suas palavras. Sua positividade é retratada de forma tocante, transmitindo uma forte lição de vida aos espectadores – sem, contudo, pender a uma carga dramática exagerada.

Já em Tim, vou fazer com o que tem, o tom da narrativa é mais investigativo do que expositivo, com o diferencial de optar por letreiros em vez de uma narração em off – uma boa escolha, que concentra a atenção do espectador na parte visual, ao mesmo tempo em que destaca a cena em que ocorre uma conversa no Skype entre diretor e personagem. A ausência de uma entrevista bem sucedida com Tim torna suas filmagens amadoras ainda mais interessantes, pois elas são o único canal de comunicação entre personagem e espectador. A montagem auxilia, mas o que realmente causa o riso do público é a excentricidade e a curiosidade quase infantil de Tim, sua vontade de compreender e ser compreendido, divertir a si e aos outros.

Apesar das diferenças de abordagem, ambos os curtas enfatizam a autenticidade de seus protagonistas e como suas características aparentemente exóticas engrandecem suas personalidades. Isso pode ser comprovado, também, na trilha musical dos curtas: em Realmente, Gê assovia uma música de sua autoria, e a única música na trilha de Tim provém de seu numeroso acervo de vídeos caseiros. Esse amadorismo na filmagem é explorado também em uma cena de Realmente, em que Gê mostra sua taberna com movimentos de câmera entusiasmados – que, no contexto, são até graciosos.

Outra semelhança entre os curtas está em seus títulos. Nos dois casos, o nome do curta provém de um diálogo entre o protagonista e o idealizador do filme – o termo “realmente” é quase um vício de linguagem do simpático Gê, e a frase “tim, vou fazer com o que tem” encerra a conversa (que tinha como assunto a entrevista nunca feita) e o curta de Machado. Vemos, temos dois ótimos exemplos de documentários: com estilos próprios, mas com a mesma relação de proximidade com seus personagens.

Letícia Fudissaku

Realmente e Tim, vou fazer com o que tem estão na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013

A memória, a infância e o Godzilla

mauro em caiena - godzilla-ed

Mauro em Caiena (Leonardo Mouramateus, 2012) é como uma carta-cinema. Não uma carta filmada, ou um filme sobre uma carta, mas as duas coisas dentro de uma só, palavra e imagem, indissociáveis. A leitura sutilmente saudosa, ficcional, divagante traz a qualidade de memória para as imagens em preto e branco. Expande-se o universo das duas dimensões justapostas, que se fazem como camadas para a leitura una do curta-metragem.

A carta é endereçada a um tio, Mauro, que está na Guiana Francesa, e saiu há um tempo considerável de Caiena, esta cidadezinha de interior de descampados e montes de terra de construção. O sobrinho lhe fala com amor, saudade, e talvez, um certo rancor por um tio que se foi e não volta, que deixa a avó sempre na esperança da volta. Talvez, também, com um pouco de inveja por ele ter ido embora deste pequeno cerco. Lembra-me o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, só que sob a visão do irmão que fica, vendo o outro que se foi, desgarrou-se e deixou mágoas na família. O irmão que, talvez, também quisesse ter ido.

Enquanto as palavras, informais como devem ser as cartas, correm, as imagens as confirmam, distanciam, embolam-se com elas. O menino que imita um cachorro e depois sobe em árvores deve lembrar o tio criança, diz a carta. Aqui, o que se fala é quase o que se vê – o menino não é um personagem construído, está ali como ilustração, é uma imagem reflexiva do lugar, das crianças que subiam e ainda sobem em árvores. O primo pequeno e o tio que se foi há tanto tempo são os mesmos, condensados nessa imagem – e assume-se o caráter de imagem, de reprodução, de ilustração.

A carta, talvez para convencer o tio a voltar, diz que o lugar continua o mesmo de sempre. O que vemos na imagem são os montes de terra de construção, são os guindastes, imagens de um lugar em constante transformação. Caiena nunca mais será a mesma da infância de Mauro, mas o modo como o realizador resgata as memórias do seu tio e as insere nas imagens atuais, faz lembrá-lo de que Caiena ainda é Caiena. Daqui falo da dimensão dolorosa da memória da imagem: um lugar nunca é o mesmo, mas o permanece nas nossas memórias, e os nossos olhos por vezes procuram na paisagem, ansiosos, aonde é que as imagens da nossa memória permaneceram. E eles permanecem, de algum jeito. Também nas imagens de um filme visto na televisão, como as cenas de Godzilla, em que as imagens ficcionais de um outrem tornam-se carregadas de memórias nossas, particulares. Memórias que são conjuntas, mas que por estarem desligadas de qualquer lastro de realidade, podem ser tomadas como nossas, de um momento que pertence a todos.

Algumas imagens atestam a triste derrocada da memória do lugar. Quando o realizador filma a árvore da infância de Mauro sendo derrubada, esta árvore que não é de seu afeto – já que ele diz que estava de ressaca e pouco interessado na árvore que ia ser cortada – não deixa a tomada toda em filme: é triste mostrar o decapitamento total desta memória. Mas está lá, como atestado dessas mudanças irrevogáveis.

A permanência parece estar na figura da avó, figura comum entre os dois, sempre citada pelo narrador da carta, com certo pesar, contando ao tio o modo como a avó o abraça achando, por vezes, que ele é Mauro. Engraçada colocação, que justifica a fixação num tio que já se foi há tanto tempo. Escrever-lhe é quase um pedido de troca de lugar; e uma carta (ou um filme) é quase sempre uma vontade de troca, estar por uns momentos em outro lugar, junto de um outro. Mas é essa avó, a verdadeira árvore no quintal, que fincada com suas raízes no mesmo lugar, está em tela e em vida como uma presença divina, matrona da infância de todos os meninos, recipiente das saudades, das memórias. É o elo da ligação, não de um lugar, passível de transformação, mas de gente comum, que aparece em tela picando legumes para pular ali um gato e comer os restos.

E nessas indas e vindas dolorosas sobre a memória, a saudade, os lugares que já não podem ser os mesmos (se o tio voltasse ele reconheceria Caiena como o narrador da carta parece tanto insistir?), o realizador termina o filme voltando a si mesmo. É preciso deixar Guiana Francesa e a vontade de ser Mauro, de estar longe, é preciso deixar de filmar aquilo que deve ter sido a infância de Mauro – resgatado pelas memórias da avó – para constituir-se, também, como alguém; e não mero observador desse processo. E dessa forma, não poderia ser tão emocionante a longa tomada de uma menina em uma balada, um universo exclusivo ao realizador. A menina é filmada com carinho e a narração que já se calou. É preciso voltar a vida, e a vida do que há por vir. A imagem da menina olhando para a câmera não é, como outras, a ilustração de um passado, a reconstituição de uma memória, mas sim atestado do presente.

Mariana Vieira

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Fantástico documental

Leonardo Sette é daqueles realizadores que colocam em xeque o gênero cinematográfico ao questionar a relação entre ficção e documentário. Já em Ocidente (2008), seu primeiro filme, o diretor põe em crise essa dualidade ao nos apresentar um filme que não se define nem por ficção, nem por documentário, nos termos tradicionalmente conhecidos.

Em Porcos Raivosos (dirigido por Leonardo Sette em conjunto com Isabel Penoni), selecionado neste ano para a Quinzena dos Realizadores em Cannes, as mulheres da tribo Kuikuro encenam um mito indígena em que os homens se transformam em porcos raivosos. Tudo é filmado dentro de uma oca, exceto o plano final. E, dentro dessa oca, as mulheres da tribo se preparam para se defender dos homens, agora transformados em porcos raivosos.

A encenação do rito se torna a história do filme, ao mesmo tempo em que poderia ser considerada como um arquivo documental. Acredito que essa dualidade intencional existe não porque o diretor queira colocar em crise esses estatutos (crise já bastante explorada), mas sim porque não acredita nessa divisão. É muito interessante ver um rito indígena ser encenado em frente à câmera, para a câmera, e ao mesmo tempo servir como registro documental.

A interpretação das atrizes e seu empenho são surpreendentes, fruto de um bom trabalho na direção de atores. Em muitos filmes indígenas que vi (filmados por eles, ou com atores indígenas), é notável o desconforto que a câmera causa. Em Porcos Raivosos, as mulheres da tribo executam seu ritual com uma veracidade notável; ao apontar suas estacas em direção à câmera, parece que é o espectador que está sendo mirado.

É bom relatar que essas são as impressões de alguém que nunca presenciou um ritual indígena ao vivo. Posso estar redondamente enganado. Fiquei muito curioso para saber o que elas cantam durante o ritual.

O curta de Leonardo e Isabel encena um mito e o representa dentro do espaço de uma oca, que, ao final, se mostra incompleta. Apenas metade dela tem palha, possibilitando que seja utilizada luz natural para a gravação. É interessante que nunca vemos os porcos raivosos e o único homem da história é o índio que entra na oca para dar a notícia terrível.

Porcos Raivosos conta uma história fantástica (sobrenatural) sem utilizar nenhum recurso mirabolante, apenas uma oca, um grupo de mulheres, seu rito e a luz do Xingu. O curta de Leonardo e Isabel faz muito com pouco.

Renato Batata

Porcos Raivosos está na Mostra Brasil 4. Clique aqui para ver a programação do filme

A história não importa

Cowboy é um daqueles curtas que logo de cara você já sabe o que está por vir, mas não, não é nada daquilo que você está pensando. O filme surpreende no segundo ato, quando percebemos toda a complexidade da história.

O documentário de Tarcisio Lara Puiati traz uma mensagem além das histórias e das imagens. Subjetivamente, estão descritos todos os preconceitos que temos com as pessoas que possuem alguma deficiência física.

Cowboy é um sujeito que não possui um braço. Ao acompanhar o personagem pela cidade, vamos escutando as histórias, que não sabemos se são reais ou fictícias. Mas, por trás de cada uma delas, está toda a intenção do diretor em nos mostrar que, para apreciarmos plenamente o curta, não importa qual delas é a verdadeira. Todas trazem a mesma mensagem, porém de um ponto de vista diferente.

Muitos dos curtas produzidos atualmente caem na obviedade, porém, em Cowboy o diretor usou uma forma incomum para nos trazer uma reflexão sobre um tema que já foi muito utilizado; não fosse pela precisão de Tarcisio, seria muito fácil cair no clichê. Ótimo filme que merece ser apreciado.

Rodrigo Ferro

Cowboy está na “Mostra Brasil 7”. Clique aqui para ver a programação do filme

Uma ética de cumplicidade

A Cidade começa com um plano de ambientação, o bastante para saber que existe uma certa “ironia inevitável” no seu título. O que um espectador urbano pode fazer é chamar o local, no máximo, de “vilarejo”. Até o som do vento, que certamente não encontra prédios em seu caminho, é perceptível.

Uma mulher idosa dirige um Fusca, por caminhos de terra, e depois parcialmente asfaltados. A dinâmica de montagem parece acompanhar o movimento do veículo, com cortes em planos de detalhe da mão da personagem passando as marchas, ou seu pé pisando no acelerador, antes de adentrarmos o ambiente da narrativa.

Esse é o único momento do filme em que existe de fato alguma referência ao que pode ser veloz. Daí para a frente sobram tempos, esperas e memórias.

Todos os indivíduos colocados diante da câmera nesse documentário têm mais de 60 anos. Aparecem principalmente em suas casas, falando sobre doenças, entre outras coisas. Não seria exagero dizer que as próprias paredes das construções parecem filmá-los. A abordagem do filme com relação aos espaços e às pessoas que encontra é a de observação paciente. Os próprios idosos, que são apenas 35 no total, dizem claramente esperar, entre conversas e jogos de bocha, “que algo aconteça”.

Algo acontece. Vemos pessoas trabalhando em uma cozinha industrial, único vestígio de “progresso técnico” que o filme mostra para além do carro do início. Há um grande bolo sendo preparado, uma fanfarra juvenil aparece e toca. Um salão com algumas mesas preparadas… E tudo acaba, com  pucos comentários residuais posteriores.

Sequência com sete personagens na praia. Falam de suas memórias afetivas, casamentos, namoros. Aqui, pode-se pensar que a fotografia corrobora uma sensação geral que permeia o filme como um todo, mas recebe ênfase nesse  trecho: a luz solar ganha tons marrons, quase sépias, num momento em que se tem a plena certeza de que o presente daqueles que falam é construído de “remontagem dos cacos” do passado. Até o agora já passou.

A sequência da praia se encerra com uma senhora que canta “Quem Sabe”, que ganhou o status de emblema do século XIX e da primeira metade do XX no cinema historiográfico brasileiro. Não posso dizer com certeza se o ato de cantar foi totalmente espontâneo (o que a lógica “observacional” assumida pelo curta-metragem quer supor) ou pré-combinada (o que minha consciência sobre as “encenações negociadas” do documentário presume). O fato é que a letra da música parece constatar a relação entre o tempo, as lembranças e os seres humanos aí envolvidos (“Tão longe/De mim distante”…) e do próprio filme para com essas pessoas (“Onde irá/Onde Irá/Teu Pensamento?”).

Uma possível resposta ao perguntado na canção: imagens de arquivo do surgimento dessa cidade de Itapuã (RS), acompanhadas de cartelas de texto, explicando a condição extraordinária de surgimento do local: era uma colônia de isolamento compulsório para acometidos de hanseníase, popularmente conhecida como lepra, nos idos de 1940. Três décadas depois acaba o isolamento, mas quem não tem relações externas, mesmo curado, fica.

A pergunta que fica ecoando nos personagens: o que fazer lá fora?

Voltamos aos olhares para dentro das casas, agora se entende uma certa “claustrofobia aceitável” atuando no próprio método do filme. O isolamento, antes forçado, agora é desejado. E A Cidade assume uma ética de cumplicidade com os que lá estão, e que atinge e conquista o público.

Rafael Marcelino

A Cidade está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme