OLHOS ABERTOS À ÁFRICA – Mostra Novas Áfricas

por Cacá Espindola

O uso de estereótipos em narrativas cinematográficas tem por objetivo, segundo a teoria de Stuart Hall, ser uma estratégia discursiva do colonialismo. Trata-se de um padrão estabelecido pelo senso comum e baseado na ausência de conhecimento sobre o discurso para manutenção da posição de poder. O que o Programa Novas Áfricas do 31° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo nos prova é o quanto podemos ganhar ao abrir os olhos e expandir nossa visão limitada pelo colonialismo, para além dos estereótipos.

A mostra apresenta uma ebulição de sons, idiomas, cores e genêros, que ocupam nossas telas e nos levam à explosão de afetos. A cultura de um continente em movimento se apresenta aos olhos do espectador, que não consegue e nem deseja fechá-los, perante as muitas formas e sentimentos proporcionados pelas novas Áfricas. O espaço da tela se torna pequeno – principalmente no contexto online – para tamanha pluralidade de conhecimento, disposto em imagens a serem assimiladas em questão de minutos.

A cultura do continente africano passa por nossos olhos no programa Rebelião, tomando a forma da ação política cotidiana, seu impacto subjetivo em diferentes países, para distintas gerações e nas mais diversas proporções. Se em Dia Negro (Senegal) assistimos a pacata e dedicada vida de Ngor se transformar em caos sem motivo aparente, em questão de minutos, no filme Altas Horas (Congo) a dura resiliência de uma população que luta por seu direito à energia elétrica parece não ter fim. Ao repartir a tela em três, a fotografia limita o campo de visão e direciona nosso olhar ao esforço de luzes escassas, conquistadas a muito custo, em iluminar adultos, idosos e crianças reféns de um governo que os retém na escuridão. O diretor não nos deixa outra opção à não ser enxergá-los.

Somos então introduzidos ao programa Música e Cinema, o espaço aberto ao imaginário, as formas da criação em um contexto de livre experimentação. Nunca olhe para o sol (Congo, França) é uma narrativa que nos explica, em meio a figurinos e maquiagens dignos de passarela, a poesia que abriga os diferentes tons da pele. A cada nova combinação estética que o curta desfila na tela, desapegamos de nossas tendências e modelos e mergulhamos na propulsão da beleza visual. Mas não só de imagens se forma o que é belo. É o que mostra Um toque de Kora (Senegal), que encanta com os poucos sons que emite Salma, ao enfrentar as limitações de sua cultura entre notas e silêncios. O saber também é música, ouvidos abertos para a África.

Quando a expansão da cultura parece ter atingido os limites dos sentidos, chega o programa Mulheres Africanas, plural em narrativas e afetos, nos conduzindo por novos territórios e transcendendo os padrões. Por meio da história de Mama Bobo (Senegal), teremos apego a um ponto de ônibus e, antes que o tempo do filme se esgote, sentiremos forte saudades de Mama. O feminino ganha ainda outros traços. O conceito de sororidade, tão comum no atual contexto cultural, já não nos parece suficiente para descrever a convivência entre as mulheres de Minha amada coesposa (Senegal), que partilham uma mesma casa, ou ainda aquelas de Além do muro (Marrocos), que dividem uma construção. O aprendizado provém da afeição, corações abertos para a África.

Claire Diao e a Sudu Connexion, em parceria com a Kinoforum, partem da premissa de que “um filme é feito para ser visto”. Não deveria nos espantar que a sua seleção chegasse ao fim deixando a sensação de que é tarefa necessária revisitar todos os curtas, de todas as mostras, do programa Novas Áfricas. O abrir de olhos se torna um caminho sem volta, trazendo com ele uma compreensão: se em questão de minutos os estereótipos já nos parecem pura perda de informação, existe um continente de saber sobre o qual não temos nenhum conhecimento – e quem perde com isso somos todos nós.

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