NÓS, OS HUMANOS – Kini, de Hernán Oliveira (Uruguai)
por Lucival Almeida
Poucas palavras de uma senhora, sons e inquietações dos filhos e a distopia de um representante do movimento da extinção humana no rádio. A memória de um pai em fotografia e um elemento primordial para o desfecho de uma mentira confortável, a família original. Uma vela e longos segundos de enquadramento enquanto ouvimos: “do mesmo jeito que a raça humana tem uma principal causa de morte, nosso planeta sofre da sua própria pandemia hoje. E essa pandemia somos nós, os humanos”.
Ao abrir a porta para os filhos que se acomodam em torno de uma mesa, a senhora abre a possibilidade de dividir uma notícia com aquelas criaturas humanas que outrora, identificamos, não estariam ali por vontade própria – exceto uma, a cada 15 dias –, para superar um pouco as expectativas daquela mãe que dedicou bastante da sua vida para criar os humanos que sofrem da sua própria pandemia, o descaso.
Coçar a garganta, olhar apenas o celular, pintar as unhas com cara de deboche e impaciência, observar com tédio, falar sem parar, ignorar o grupo e sair. Ações que poderiam facilmente virar uma figurinha de aplicativo são exatamente as ações de desafeto que mais causam gritaria em nossos diálogos virtuais. Depois de muito questionamento, a grande notícia: a mãe ganhou na loteria e decide que doará tudo para a reconstrução de uma praça. Com a notícia, a situação só fica mais caótica.
Após a discussão, aquela mãe que não demonstra surpresa levanta-se e vai até a cozinha, enquanto os filhos queridos e amorosos (contém ironia) decidem que não faz sentido doar um prêmio, uma vez que todos precisam do dinheiro. O mensageiro distópico nos levou exatamente ao ponto em que cada necessidade é revelada, a causa da pandemia humana: a ignorância e o pouco cuidado com o próximo. Justifica-se que não importa os valores que você impõe em uma criação; o ser humano tende a criar suas próprias ambições. Aumentamos a população todos os dias com a possibilidade de deixar um legado e não lidamos bem com o fato de que o seu legado pode acabar numa reunião familiar, num conflito de interesses e no abandono de alguém para conseguir o que deseja.
Kini não faz referência apenas às relações moldadas no oportunismo, como também à busca por preencher o vazio que um ser humano carrega porque seu maior prêmio, o amor, é posto de lado. Todos temos uma história de juventude, conquistas e relacionamentos, mas esquecemos que a melhor idade também passou por tudo isso e seu fim é acordar cedo, passar um café e esperar que o dia se repita até que tudo acabe. Esquecidos, ansiosos pelos encontros das ramificações familiares, e do reconhecimento de que as outras construções se estabeleceram por sacrifícios silenciados.
Talvez cair e fingir um ataque fosse a última possibilidade de descobrir que estava errada. E não estava. Com o corpo estirado na cozinha e uma discussão aquecida da divisão do dinheiro, a humana esquecida desfaz seu disfarce, liga todas as bocas do fogão e sai. Enquanto abre sua Fanta e dá um delicioso gole, sua casa explode, junto com todos os humanos que a deixaram morrer pedindo ajuda. E é isso: a gente espera por ajuda mas as urgências são outras. O vazio humano continua sem se preencher, enquanto, vazios, lutamos por dia menos solitários.