A PROPRIEDADE DE SI E A OBJETIFICAÇÃO DO SUJEITO – Lugar Algum, de Gabriel Amaral

por Mariana Peixoto Alves

Exibido na mostra Brasil 1 – Fabulações do Agora no primeiro dia do festival, Lugar Algum é um filme que nos faz pensar sobre o quanto o agora é uma consequência direta do ontem. O curta é o primeiro filme em língua portuguesa e ambientado no Brasil feito pelo britânico-brasileiro Gabriel Amaral. Conta a história de Nego, personagem de Flávio Bauraqui, caseiro de um sítio que vai ser vendido. É a partir dessa premissa que o filme nos leva a questionar as raízes da relação empregado-empregador no Brasil.

A objetificação do corpo negro aparece como central no curta, e encaminha o pensamento direto para uma das partes mais vergonhosas da nossa história: a escravidão. O filme não trata diretamente de uma relação escravo-senhor, afinal, Nego recebe para trabalhar na fazenda de Rafael, personagem de Sérgio Siviero, e a relação entre eles parece de amizade. É algo muito mais sutil, os reflexos que a escravidão deixou nas relações de trabalho, especialmente nos rincões de “lugares alguns” espalhados pelo interior do país. Nego se torna tão objeto quanto a fazenda, se tornando inclusive parte das negociações de venda. Não é mais uma pessoa, com desejos e vontades próprias, apenas o trabalhador que viria junto com a roça.

É a noção de propriedade que entra em questão, não só a propriedade do próprio corpo e da força de trabalho de Nego, mas também do espaço, do “lugar algum”. Quem é, de verdade, dono daquele sítio? O proprietário que adquiriu tudo aquilo com dinheiro, mas que nunca viveu ali, não conhece nada; ou a pessoa que construiu uma vida ali, deixando inclusive a vida que tinha antes para trás? A resposta que o sistema vigente nos leva a considerar como certa é óbvia. Mas rende bons 22 minutos de reflexão sobre o que significa a propriedade da terra.

Os grandes planos gerais que não nos dão nenhuma indicação precisa de lugar e reforçam a idéia de lugar nenhum, o silêncio dos primeiros minutos do filme e a maneira como a fotografia faz com que Nego se misture com o ambiente ao seu redor também reforçam a posição de objeto a qual ele é submetido. Nego questiona a sua posição enquanto objeto-propriedade e aos poucos vai reconquistando sua subjetividade, junto com a vida que havia deixado para trás quando decidiu se tornar parte da propriedade de outra pessoa.

Essas são questões tão pungentes na forma com que lidamos com o trabalho e os trabalhadores, e que nos últimos anos vieram se tornando mais e mais urgentes conforme foram sendo esvaziadas as políticas públicas que poderiam amparar as pessoas que se sentem obrigadas a se submeter a esse tipo de relação de trabalho objetificante, que vêem na posição de propriedade de alguém a possibilidade de existência, consequência da estrutura econômica que associa o “ser” ao “ter”. Uma questão que não aflige só o Brasil, um problema do capitalismo nos países subdesenvolvidos, num filme que acerta ao tocar em tantas feridas abertas que carregamos.

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