A FORÇA BRUTA DA MATÉRIA – Mostra Limite 1: Brutalismo

por David Terao

A primeira sessão da Mostra Limite é um estudo sobre a matéria, tanto em seu processo de formação quanto no que ela compõe do nosso imaginário, seja numa paisagem à qual um corpo se funde num mergulho, seja em blocos de pedra que podem projetar utopias arquitetônicas ou monumentos em honra às barbáries que formaram a identidade nacional de um povo.

Em Travessia, um homem cruza um rio, mas ao filme não interessam motivações dramáticas para além da ação física de remar de uma margem à outra. Mesmo a visão de um rosto marcado com o nome “delinquente” parece ser mais um componente da paisagem, como um corpo-pedra que é atingido pela chuva e que seguimos em um percurso de contemplação das formas naturais. O talento plástico de Otávio Almeida, no entanto, parece se limitar à mera observação do real como ontologia do fotográfico na beleza da composição do que em propor sensações que perturbem o lugar-comum de fluxo de imagens, numa experiência tão plana quanto o rio sem correnteza filmado.

Após emergir de águas rasas, no entanto, o que nos aguarda é o duro golpe da pedra. A maior massa de granito do mundo faz um movimento inverso ao de Travessia, ao decupar narrativamente a pedra – no caso, as diversas figuras do Monumento às Bandeiras – em um filme-ensaio perturbador e de brilhante potência crítica sobre o que se escolhe louvar e festejar em uma nação. A arte pode servir aos mais abjetos usos políticos e ainda assim se manifestar em primor formal. E é no que preza pela forma que o filme de Luis Felipe Labaki observa na impassibilidade dos transeuntes do tempo presente e no júbilo das autoridades do passado o sintoma da nossa patologia social autoritária, fruto da violência colonial que fundou o Brasil.

Se os rostos de granito testemunham o presente e o passado que ora ignora, ora glamouriza a barbárie por trás de nossa identidade nacional conservadora, a narração da diretora Adina Cahmy em Mensch Machine ou Reunindo as peças lança uma questão: as máquinas têm gênero? E se não têm, por que tecnologias igualmente desenvolvidas no militarismo masculinizado são ora alçadas ao lugar vanguardista da criação de arte e outras apenas relegadas à mera reprodução de papéis de gênero na cozinha? Em um remix de imagens e sons, um eletrodoméstico e um sintetizador são unidos pela mesma ideia de progresso tecnológico anunciada pelo Kraftwerk, numa obra de proposições estéticas limitadas a uma compilação de curta duração.

Essa linguagem de remix também se faz presente em Serial Parallels, de Max Hattler, que inventivamente transforma a uniformidade dura da arquitetura de Hong Kong no melhor cinema experimental que associa os prédios à película cinematográfica em movimento. Neste filme concretista que flerta diretamente com o cinema de instalação, o movimento dos prédios ganha ritmo, musicalidade, o concreto sobe e desce, os ideogramas dançam. O cinema enquanto resultado do movimento do celuloide que sobe e desce, reproduzido na reimaginação de formas estáticas. O filme olha para si mesmo em espelhos digitais, e estas formas que sufocam o céu respiram.

Fechando a sessão, Formas Concretas de Resistência, de Nick Jordan, expressa a amarga ironia de um espaço permanente para exposições em Trípoli, no Líbano, que resulta do design futurista de Niemeyer, mas que é largado ao abandono diante dos horrores da guerra. O brutalismo do projeto, que espelhava a utopia comunista de seu arquiteto, converte-se na brutalidade da ausência de futuro, na agridoce resistência de uma cultura de artesãos diante do fluxo do grande capital nos centros urbanos do país. A montagem criativa do filme busca de certa maneira habitar aquele lugar com as vozes que narram a promessa não cumprida de integração dos povos.

Este brutalismo que dá nome à sessão cria um senso de unidade entre os filmes, principalmente a partir de suas paisagens sonoras que emolduram ou dissipam as configurações espaciais apresentadas e criam um senso de perturbação por ritmos frenéticos, choques com a imagem ou com as próprias contradições de futuros anunciados em canções tecno ou discursos ufanistas. Seja por um senso de materialismo histórico ou de formalismo inventivo, os filmes revelam a força matéria que envolve o mundo de seus realizadores, da qual sua identidade criativa não pode se dissociar.

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