ANTES ARTE DO QUE NUNCA – Inabitáveis, de Anderson Bardot (ES)

por pedro a duArte

Inabitáveis acompanha uma companhia de dança contemporânea sediada em Vitória, Espírito Santo, durante seus ensaios para o próximo espetáculo. Enquanto os bailarinos principais parecem ter dificuldades para encontrar seus personagens, o coreógrafo conhece Pedro, uma jovem que não se identifica com o gênero masculino.

Dessa forma, o curta irá se valer de longas sequências de dança para refletir sobre a vivência negra e transgênera, principalmente no ponto em que elas se mostram semelhantes. Após um prólogo, somos apresentados ao coreógrafo enquanto ele faz uma pesquisa para seu segundo trabalho como guia de sítios históricos: ele lê sobre quanto custava um escravo no ciclo do café – em paralelo, vemos estátuas de padres e colonizadores. Depois, somos apresentados a Pedro enquanto ela é agredida por rapazes mais velhos que cospem em seu rosto. A violência se dá presumivelmente porque a garota não performa uma cisnormatividade – a cena é crua e nos aproxima da angústia da personagem.

A obra coloca os corpos negros e transgêneros como impossíveis de serem habitados, uma vez que em toda oportunidade a sociedade se prontifica para massacrá-los. Mas Pedro é incansável, capitã de sua alma: ao conhecer o coreógrafo, ela não se contenta com o desfecho sangrento de um evento histórico sobre uma revolta de escravos e tenta propor um novo final. Se por um lado a geração do coreógrafo parece ser mais resignada, a geração de Pedro se recusa a aceitar que as injustiças sociais continuem vigentes.

A jovem participa de uma oficina na companhia, e a narrativa do curta sugere que foi ela que inspirou os bailarinos para que finalmente encontrassem seus personagens. É aí que começa a maior sequência de dança do filme: após um dos bailarinos ser abençoado por uma “rainha das fadas” (interpretada pelo mesmo ator que faz Pedro), vemos os bailarinos realizando a sequência de dança de seu espetáculo em diversos pontos da cidade de Vitória, que vão desde a laje e ruelas de uma favela até prédios históricos – a edição parece teletransportar os bailarinos durante seus movimentos. Por muito tempo, a comunidade LGBT se viu obrigada a expressar seus afetos, mesmo que gestos de carinho singelos, em ambientes fechados por conta do medo e da opressão; agora, nós os vemos povoando a cidade, se beijando seminus em frente a igrejas ao mesmo tempo em que o corpo negro sai da favela para também ocupar prédios históricos e se ressignifica. A sequência se encerra no Teatro Carlos Gomes, inaugurado em 1927, onde os bailarinos são ovacionados, aplaudidos de pé pelo público – através deste evento tão significativo, os vemos habitando um espaço que durante muito tempo lhes foi negado.

Se na primeira vez que vemos Pedro ela está sofrendo uma agressão, na última vez que a encontramos ela está mais uma vez lutando pelo futuro que sonha ter enquanto bailarina. Dançando na chuva, a garota apresenta sua coreografia aos bailarinos e coreógrafo da companhia. É como se a chuva e a dança lavassem sua alma, renovando-a, deixando-a mais forte.

Através da dança, uma forma artística que trabalha em primeira instância com o corpo, Inabitáveis traz a Arte como uma maneira de tornar possível habitar estes corpos e ocupar espaços que foram negados. Quando direitos básicos nos são violentamente retirados e nossas vidas empurradas para a margem, a ação criativa é uma forma de resistência e revolta, uma forma de propor e conquistar um novo mundo.

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