PANORAMA SOBRE MEDOS SOLITÁRIOS – Programa Terror na Tela

por Murilo Morais

Cinco filmes compõem o programa Terror na Tela que, este ano, se distancia um pouco  do gênero. O mote da “grande noite” dá o tom pessimista, e nesse quesito as obras não falham. Pode-se questionar se alguns dos curtas podem ser chamados de horror. De qualquer jeito, todos traduzem certas aflições e dialogam com o gênero. Ao menos quatro filmes do programa apresentam uma coesão: são obras individualistas e autocentradas. Apesar das divergências, algo vale para todos: seja através de angústias contemporâneas, medo da maternidade ou reparações históricas, o programa Terror na Tela apresenta uma seleção diversamente pessimista, com diferentes discursos apresentando um registro focado no indivíduo.

Em tons similares, Ligue depois da meia-noite, de Sabrine Tenfiche (França) e Na praça escura, de Nicolás Schujman (Argentina) se conectam pelo desencontro entre seres fabulosos e a sociedade contemporânea. Há uma clara decepção com as instituições que organizam as vidas humanas, focalizada no trecho mais fantástico do mito vampírico: a bestial transformação em morcego. A opção pela liberdade através da transmutação é sintomática: frente à incapacidade de alterar o mundo e suas idiossincrasias, a dupla escolhe o abandono da forma humana e das organizações que a acompanha. Tornar-se ser fantástico está em sintonia com uma culpa branca progressista que, decepcionada com o rumo da contemporaneidade, prefere que sua conexão com ela chegue ao fim. As notas de comédia à la Woody Allen brotam justamente da lógica dos monstros, inconciliável com a estupidez mundana.

Em outra sessão, a Mostra Brasil 1, Egum, de Yuri Costa, nos serve como contraponto: enquanto os curtas estrangeiros acham no gênero uma maneira de se descolar do mundo, o brasileiro está mais interessado em tensionar o terror sob a horrível realidade da população negra no Brasil, disputando a narrativa da sociedade a partir desse registro. Ao invés do abandono, a luta.

Deixando de lado a comédia, a desesperança em Shunkan, de Ricardo Albuquerque (São Paulo) se materializa no deus-cego, na cidade sem lei – abandonada a horrores psicóticos. Os avisos do narrador se assemelham àqueles de organizações de saúde que pretendem ajudar na prevenção de doenças. Mas aqui, a população está à sua própria sorte. Impossível não encontrar ecos da situação pandêmica atual e o descaso do governo Bolsonaro. Ainda assim, o verdadeiro terror no curta é individual, não coletivo: a protagonista se questiona se ela é ou não o vilão que ronda sua própria mente. Shunkan cansa pela excessiva exposição de sua curta trama, seja nas brincadeiras com faux raccords denotando flashbacks, seja num close na carta de tarô com a figura do Louco. Ao invés de se encerrar, a obra parece espelhar a ciclicidade da carta mencionada acima, e termina no mesmo plano que começou. Um discurso mais esclarecido, e ao mesmo tempo mais egocêntrico.

O Teste, de Philipp Christopher (Alemanha) descola do grupo por sua proporção vertical de tela e aproximação formal ao que acostumamos chamar de horror no cinema mainstream – uma escalada de suspense com pistas audiovisuais que desemboca no jumpscare – uma mudança abrupta de plano para assustar o espectador. Seu trunfo é relacionar essa fórmula à descoberta de uma gravidez. Enquanto o medo da maternidade é uma chave de leitura, o curta demonstra que um found footage (um material fílmico encontrado) vertical não traz inovação no conteúdo por si só. O filme se resigna a um término abrupto e clássico. Um aborto, afinal.

Finalizando com mais culpa branca, Deserto Estrangeiro, de Davi Pretto (Rio Grande do Sul) segue o personagem de Mauro Soares. A imigrante africana de Isabél Zuaa, como uma espécie de caronte, o leva a uma jornada ao submundo. A travessia do lago se aproxima da viagem de tantos refugiados africanos, só que no sentido oposto. Enquanto os protagonistas partem na esperança de encontrar melhores condições de uma vida na Europa, os refugiados vão para um deserto onde a dor e a morte não param de emergir. As ossadas dos povos oprimidos aparecem no parque quase como uma revolta zumbi. O filme, no entanto, termina em tom emocional de conciliação, crendo justamente na união dessas diferentes forças – o branco que não é reconhecido como europeu mas ainda assim trabalha cuidando de suas propriedades, e a mulher africana ainda em processo de sofrimento e exploração. No fim, ninguém se levanta e nenhum corpo sai da terra. A maldição continua enterrada e, mesmo que haja a reparação individual da alma, não há da matéria.

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