RETRATOS DO PRESENTE – Aos cuidados dela, de Marcos Yoshi (SP)
por Lira Kim
O neto insiste em lavar a louça enquanto sua avó empurra-o para longe da pia da cozinha – e, para fora do quadro. Assim, começa Aos cuidados dela, em que contracenam o próprio diretor Marcos Yoshi e sua avó, Mitsua Furukawa.
São breves e pontuais os diálogos bilíngues entre neto e avó. As poucas palavras trocadas entre os dois – algumas sem tradução para o português – revelam apenas o suficiente para compreender o que está contido nos gestos e nos silêncios em torno dos quais o filme se constrói. Por meio de planos vazios que intercalam os jogos de cena, o tempo flui junto com a água da chuva torrencial. Além de demarcar o ritmo e o clima, esses planos também revelam outros elementos que nos contam mais sobre a casa nipobrasileira onde se passa a maior parte do filme, dando a oportunidade de nos aproximarmos mais da história que está sendo contada.
Diluídos entre as rendas e os crochês comuns nas casas brasileiras, estão presentes pinturas e um pequeno altar, que por sua vez remetem a tradições trazidas para cá, muito tempo atrás. Parte dessa história é representada pelo retrato do avô, mas transmitida pela comida preparada pela avó, cujas receitas Marcos tenta registrar. No entanto, o objetivo inicial da visita aos poucos é frustrado, sentimento que rebate nas bordas da tela reduzida e também atinge o espectador. No lugar, reparos domésticos e telefonemas de São Paulo acabam ocupando a estadia no interior. O caderno dedicado para a ocasião acaba esquecido – mas, ao ser deixado de lado, abre espaço a novas sensações.
Dessa forma, estabelecem-se novas tensões que movem a narrativa além daquelas entre diálogos e silêncios. O mesmo quadro reduzido que restringe a nossa visão do passado emoldura e singulariza o presente. Contidos nele, os momentos compartilhados entre avó e neto, dos quais emergem outras memórias e afetos. O limite do quadro também cria relações entre espaço da tela e espaço diegético e brinca com a percepção de quem assiste. O constante tensionamento dessas arestas da imagem nos leva ao mesmo questionamento do diretor: “Vó? É isso mesmo que eu devia lembrar?” Assim, Aos cuidados dela, um híbrido de documentário e ficção, também reflete sobre o limiar entre a memória e a fabulação.
Por fim, a contraposição entre passado e presente se repete na recorrência dos retratos estáticos pendurados na parede e aqueles realizados durante o registro do filme, emoldurados pela própria tela ou pelos limites das superfícies que refletem os rostos das personagens. Então, sugere-se outro questionamento: quem conta a história e quem é lembrado por ela? Aos cuidados da avó, o neto-diretor se coloca em tela para falar de suas próprias raízes. Ele ressignifica seu próprio papel na transmissão da história da imigração japonesa, por meio deste documentário em que o essencial não está naquilo que é dito, mas no que é (ou não) mostrado.