UMA GERAÇÃO DE ZUMBIS DIGITAIS – Zumbis, de Baloji (Congo)

por Lecco França

O curta Zumbis é uma produção da República Democrática do Congo e da Bélgica, dirigida pelo músico e cineasta congolês Baloji. A obra, entre outros aspectos, reflete o contexto urbano contemporâneo de grandes cidades africanas, como Kinshasa, capital deste país africano, que transitam entre as culturas tradicionais e as influências das culturas modernas ocidentais. Este filme musical, que apresenta três canções do disco 137 Avenue Kaniama, lançado pelo artista em 2018, explora a forma como o universo tecnológico móvel (em especial os smartphones) tem afetado e conectado as sociedades de diversos lugares do mundo através da internet.

Na primeira parte, o espectador é levado para o universo das boates, onde as luzes das telas dos celulares competem com o brilho de neon na pista de dança. Ao som da canção Spolight, homens com camisas de estampa de onça dividem o espaço com outros dançarinos usando óculos de realidade virtual, além de personagens que remetem a rituais tradicionais africanos, como aquele que utiliza uma vestimenta de palha e um capacete decorado com búzios, encarnando um espírito ancestral. Há um outro rapaz dançando com um extensor de braço acoplado a um celular, reforçando o discurso de que este dispositivo se tornou, de fato, uma extensão do corpo humano, a ponto de delegarmos funções humanas naturais para ele, construindo uma relação quase carnal com esta tecnologia.

Nesse sentido, para além da energia e êxtase trazidos pelas imagens e sons, com um forte apelo audiovisual nas cores, figurinos e batidas musicais, o filme também estabelece uma crítica a esse contexto, no qual as pessoas têm abdicado de suas vivências reais para construírem narrativas e experiências fictícias no ciberespaço, em troca de seguidores e likes nas redes sociais. Essa crítica ao isolamento autoimposto e às superficialidades incentivadas pela tecnologia móvel permite associar esses sujeitos aos zumbis do título, mortos-vivos privados de vontade própria, sem personalidade e usualmente de hábitos noturnos.

Na segunda parte, há uma mudança significativa de espaço e horário, do clube de dança à noite para a rua durante o dia, com um desfile performático de interessantes personagens, que compõem uma plural e enigmática mise-en-scène, como um homem paramentado por uma vestimenta feita com tampas de garrafas plásticas, outro com uma roupa repleta de preservativos coloridos, ou um homem branco usando um terno branco e sentado num trono carregado por quatro homens negros, segurando um crucifixo na mão e jogando dinheiro para as pessoas na rua, o “Papa Bolo”, o que nos remete à imagem do europeu colonizador (capitalista e cristão) e aos políticos africanos do pós-independência que mantiveram a máquina administrativa colonizadora.

Há ainda um inusitado personagem com cauda de peixe, coroa e tridente, numa ilha coberta de lixo e cercada por um mar de esgoto, que permite uma pertinente reflexão sobre consumismo e degradação do meio ambiente, consequências do sistema capitalista. Um outro aspecto interessante do filme aparece nos créditos finais, na forma pela qual a equipe do filme é apresentada, simulando uma conversa online, onde as falas de cada interlocutor são ilustradas em balões de cores diferentes: de um lado, o nome da função exercida no filme, do outro, o nome do profissional.

O filme é mais uma amostra da efervescente, criativa e engajada produção contemporânea de curtas-metragens no continente africano.

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