A IDENTIDADE COMO VERBO – Mostra Competitiva Brasil

por Thaynara Brito

Na Mostra Competitiva Brasil do 31º Festival Internacional de Curtas, não há destaque para a exotificação barata ou o tradicionalismo repetitivo de dramas burgueses afogados em irrelevância. Ao contrário, é aqui que narrativas relegadas à margem surgem com força em reflexão e reação à realidade política do momento nacional. “Não entenderam minha história!”, frase do menino protagonista de Jardim fantástico, é oriunda de uma brincadeira mas parece resposta direta a um momento de extrema efervescência política, quando um governo autoritário promove esquecimento histórico com o apagamento da memória brasileira preservada em seu cinema, rompantes de brutalismo que ameaçam a Cinemateca de São Paulo e a própria realização fílmica. Mas no filme de Fábio Baldo e Tico Dias acompanhamos uma visão indígena fantástica e sincera, que tensiona a realidade com a precisão técnica de sua forma e o estranhamento de suas atuações, da espera por não se sabe o quê e de sua direção de arte curiosa, que relaciona figuras mágicas da floresta a dispositivos tecnológicos.

Recorrente nesta edição da mostra e tradição latina em resposta a regimes autoritários, o gênero fantástico aparece como reflexo dos medos e anseios individuais e coletivos, usa do estranhamento e da realocação para reagir a uma realidade incompreensível em sua tendência retrógrada e assustadora. É o caso do pernambucano Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho. Partindo da busca por Roberta, somos deixados com um objeto misterioso e inexplicável que une as mulheres e indica uma rede de segurança afetiva e revolucionária que se opõe à violência do país que mais mata pessoas trans no mundo. Roberta retorna ao fim, como heroína intergaláctica, e na poética deste desfecho inesperado começa o paralelo com outro curta de nome parecido, Inabitáveis.

Se naquele um mundo intolerante é inabitável, neste quase ensaio é com grande sensibilidade que Anderson Bardot se inspira no espetáculo de mesmo título para questionar o lugar e a visão que diminuem os corpos e existências fora do padrão, no primeiro plano já revelando sua potência ao filmar uma coreografia em meio a um tenso jogo de luz e sonoridade pontuais. A conexão que o realizador faz entre afetividade e resistência pela existência é gradual. Está na leitura de arquivos do período escravagista; na dança que questiona presenças colonialistas na paisagem urbana da cidade de Vitória; e numa personagem que surge em tela vulnerável frente a seus agressores, mas que encerra o filme com uma performance ao som da chuva que é dor, liberdade e grito.

Similar afetividade identitária existe em Perifericu. Feito de maneira coletiva em São Paulo – direção e outras funções compartilhadas – por quem vive e sente as questões retratadas, carrega em si um trânsito acurado entre o ficcional e o documentário, talvez um irmão mais maduro de Bonde, filme também paulista exibido na 30ª edição do festival. Sobre estes dois e outros que têm se alinhado numa tendência a realizações vibrantes e relevantes: que respiro bem-vindo, e que os favela movies da burguesia não retornem nunca mais.

Com narrativa linear, Receita de caranguejo, de Issis Valenzuela, apresenta em longos planos estáticos uma mãe e sua filha lidando com perda e descoberta. No meio de grandes quadros abertos do céu cinzento e do mar da Baixada Santista, as duas se destacam da realidade, entre o desenho de som elaborado, esquisito e furtivo. A mãe é fala, a filha é silêncio. Um jogo de atuação que transborda afetividade compartilhada e aponta a grande presença de Preta Ferreira, atriz que é uma das lideranças do movimento de luta por moradia em São Paulo.

Numa potência das questões sociais que permeiam toda a curadoria, está a viagem angustiante proposta por A morte branca do feiticeiro negro. O filme constrói através de imagem de arquivo a ambientação para um relato que não se ouve, mas se lê na tela, e nessa obrigatoriedade do olhar em associar imagens e palavras se aprofunda o choque à medida em que a carta de Timóteo vai sendo exposta. O filme de Rodrigo Ribeiro possui qualquer coisa de indizível. Em paralelo com o conceito de punctum cunhado por Roland Barthes, atinge, transpassa, desperta e fere. A ele não se assiste, se experimenta.

Ao fim, a curadoria desta edição nos apresenta diversidade de realizações que dialogam principalmente na união identitária e afetiva como grande forma de reação política. Por um lado, assegura ruptura, com filmes poéticos e alguns processos de produção fora da curva; por outro, ainda mantém uma predominância viciada na metade mais chuvosa do eixo Rio-São Paulo, com sete dos 12 filmes selecionados sendo paulistas.

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