O RIO GRANDE DAS AUSÊNCIAS – Construção, de Leonardo Santos Rosa (RS)

por Guilherme Novello

No que é difundido como a “cultura gaúcha” do sul do Brasil, ecoa sempre esse personagem patriarcal criado por Simões Lopes Neto no livro Contos gauchescos (1912); uma mistura do gaúcho argentino com o cowboy sul-americano, uma inegável celebração aos personagens da guerra separatista dos farrapos. Não é por acaso que, em Construção, é justamente essa figura que se ausenta. Pois muito além das lendas do gaúcho rancheiro, o Rio Grande do Sul é um lugar construído por mães solteiras – e isso tem a ver com diversos sintomas expostos pelo curta, e com o impulso cultural do estado em definir esse personagem paterno como figura central.

Falamos de um dos estados recordistas nos números da violência doméstica no Brasil, um dos lugares onde mais se comete feminicídio, seguido de suicídio, pela não aceitação do fim de um relacionamento, e outras razões similares; no tocante à paternidade ausente, os números estão na alarmante média brasileira. O fantasma desse personagem patriarcal popular, que gera identificação no rio-grandense médio, que o faz sonhar com a glória da guerra, acaba tornando-o incapaz de lidar com os dramas que envolvem a própria existência como pai, namorado, profissional, ou cidadão. Cria-se uma aflição, uma angústia que envolve a expectativa de uma performance do masculino rígida e irredutível, onde não cabem fragilidades e vulnerabilidades.

Este curta realizado na Universidade Federal de Pelotas coloca o tempo todo essa questão em cena. Esse personagem está presente através de sua ausência e de como esta ecoa sobre aqueles que a sofrem. Enquanto Andréia conta com a ajuda das vizinhas para construir uma nova casa para a família após o despejo, os filhos brincam com suas armas de brinquedo, montam em suas motos imaginárias, vivem numa realidade lúdica tomada pela performance desse gaúcho patriarcal, de maneira completamente alheia às feridas deixadas pelos episódios de violência doméstica que marcaram tão drasticamente o destino da família.

Andréia chega a explicitar que, após ser ameaçada pelo marido, ainda teve de “convencer” os filhos: “…vocês estão vendo?”; no que fica subentendido como uma extrema dificuldade em desconstruir a figura do pai no imaginário dos filhos, mesmo após um episódio que condensa anos de uma conduta abusiva e violenta no ambiente familiar. Aliás, é justamente nesse jogo semântico entre construção e desconstrução que o filme muitas vezes se apoia, e isso se evidencia quando o título aparece junto à uma imagem em que os personagens desmancham a antiga casa. Seu material será aproveitado; a partir da velha casa constrói-se um novo lar.

Temos o momento em que o garoto diz à mãe que quer ser policial quando crescer para defender a família, e recebe como resposta a última cena do curta, em que a movimentação das vizinhas no whatsapp é suficiente para conter a ameaça dos assaltantes que assustam a comunidade. Aos poucos, os garotos ajudam a mãe na cozinha, colhem algumas folhas de couve, e de repente toda uma cultura, uma literatura, um cinema que passou séculos na garupa desse gaúcho patriarcal agora encontra um lar nessa nova construção, onde sua ausência é uma espécie de pedra fundadora.

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