A IDENTIDADE E O TEMPO – Mostra Brasil 6: Imagens do Mundo
por Angelo Pignaton
“Os filmes de cinema são documentos de historiador para guardar em arquivos”, diz uma das notas sobre o cinematógrafo do cineasta francês Robert Bresson (1901-1999). Quem diz algo muito semelhante é o também francês Eric Rohmer (1920-2010), em sua célebre frase “todo bom filme é um documento de seu tempo”. Certamente, as obras da Mostra Brasil 6 – Imagens do Mundo apresentam debates e questões muito atuais, frutos de um tempo em que identidades historicamente invisibilizadas vêm lutando e conquistando espaços que anteriormente foram negados.
No entanto, mais que documentos de seu tempo, esses filmes tematizam o tempo. São olhares direcionados ao passado e ao futuro – muito além de simples arquivos – que proporcionam um lugar de encontro com o presente, numa postura ativa diante da história. Não apenas imagens do mundo, mas também imagens ao mundo, autoconscientes de seu vigor e potência.
Há uma clara consciência desses filmes sobre a importância de seus olhares direcionados à história. Para o passado, o resgate das histórias, símbolos e tradições formadores de uma identidade. Para o futuro, o registro e a preservação dessas identidades. Para o presente, a simples e potente afirmação delas. São quatro filmes que não precisam mostrar sua força – eles simplesmente são.
Nesse sentido, talvez O tambor me chamou (SP) seja o filme em que essa essência potente por si só seja mais evidente. Em vez das imagens em movimento, o filme opta por registrar o grupo Ilú Obá de Min por meio de fotografias still, eternizando as integrantes do Ilú numa série de instantes excepcionais. O filme parece acreditar na fotografia como a forma mais adequada de documentar a ontológica força do coletivo, visto que as tradicionalíssimas 24 fotos por segundo poderiam vulgarizar e banalizar o grupo injustamente. O instante fotográfico, ao contrário, singulariza as imagens, reitera a importância do grupo ao mostrar os rostos e corpos, e reforça o resgate dos elementos constituintes da identidade histórica – ao registrar as roupas, colares, miçangas e instrumentos. Seu conteúdo é potente em sua essência, e a forma age para fazer justiça a ele. Como diz uma das integrantes em seu relato: “uma mulher tocando tambor na avenida já é um ato político”.
Algo semelhante acontece em Agahü: O sal do Xingu (SC). A direção de Takumã Kuikuro, cineasta membro da aldeia indígena Kuikuro, toca na questão relativa à força do simplesmente “ser”. O microdocumentário de pouco mais de 1 minuto registra a relação que povos indígenas do Xingu estabeleceram com o sal e o fato de um cineasta indígena documentar os ritos, tradições e, sobretudo, a cultura de sua gente é notável por si só. Além disso, o filme também possui essa presença atuante diante da história, de alguém que não se satisfez em simplesmente ser objeto das imagens e agora quer modificá-las sob a lente do seu olhar. Nesse sentido, os planos finais do filme, em que as crianças posam e olham diretamente para a câmera, são significativos e autoconscientes de sua potência – olhares que cintilam e cintilarão pela história.
Esses olhares cintilantes encontram paralelos em outros planos posados da mostra, dessa vez em Aos cuidados dela (SP). Em vez de crianças indígenas, Marcos Yoshi enquadra senhorinhas japonesas, colegas de sua avó. Esses planos tensionam ainda mais o filme, e a dramatização de uma relação tão pessoal ganha progressivamente contornos documentais. Mais uma vez, a autoconsciência da relevância histórica revela-se, potencializando a busca pela afirmação e preservação da identidade dos nipobrasileiros presente no filme.
A preservação de uma identidade é também um dos temas do filme de Sylvio Lanna. Em meio a um mundo de imagens ora projetadas em tela, ora guardadas nas gigantescas pilhas de película, Lanna busca seu filme perdido, do qual escutamos apenas seu áudio – um filme sem imagens. In memorian – O roteiro do gravador (RJ) é uma obra que aponta para a materialidade da imagem e a importância de sua preservação no processo histórico, ecoando essa ideia na conduta do restante da mostra, repleta de visões direcionadas à nossa história. Preservar as imagens do passado e “aproximar o futuro do presente, um presente de cor e harmonia”.