A FABULAÇÃO COMO GESTO – Mostra Brasil 1: Fabulações do agora

Por Amanda Soares

Fabulações do Agora é o primeiro programa da Mostra Brasil do 31º Festival de Curtas Kinoforum. Numa conjugação entre passado e presente, o exercício de imaginação se apresenta para além da representação, na construção de novas realidades possíveis. Com linguagens e estéticas distintas, os curtas abordam processos de opressão e apagamentos, relações entre colonizador e colonizado, ao mesmo tempo em que propõem novas formas de existência. Entre humor, metalinguagem, terror, drama e performance, a busca por novas narrativas e formas de realização se impõe nos quatro títulos.

Uma das proposições da fábula no cinema contemporâneo é a possibilidade de contar histórias atravessadas por opressões que não se restrinjam apenas à representação identitária. Ao se debruçar sobre a fabulação no cinema negro, a crítica e pesquisadora Kênia Freitas articula o pensamento do crítico Tavia Nyong’o e o da escritora Saidiya Hartman. Nyong’o propõe aos realizadores novas formas de performance e produção que os libertem de modos de representação esperados tradicionalmente, por meio da afrofabulação. Hartman, diante da constatação da impossibilidade de se representar a violência sofrida pelos africanos no processo de escravidão, delimita o conceito de fabulação crítica. A escritora se debruça sobre a abordagem da história sem reproduzir a violência e define a fabulação da narrativa como possibilidade. A fabulação crítica aqui pode ser aplicada ao cinema feito sobre e por indivíduos marginalizados, como o cinema negro e indígena.

Em Alfazema, de Sabrina Fidalgo, a narrativa se aproxima do conceito de fábula tradicional. Após uma noite de carnaval, Flaviana, atormentada pela culpa por ter levado um desconhecido para casa, precisa lidar com o moralismo cristão. As figuras de diabo e anjo da guarda, interpretadas por atrizes brancas, alimentam os conflitos internos da personagem. Ao operar a metalinguagem, o filme aborda os atravessamentos da mulher negra pela ironia e pelo humor. Já em O Verbo se fez Carne, de Ziel Karapotó, a performance é a linguagem primordial para a fabulação. Por meio de um ritual, o indígena Ziel Karapotó se liberta da língua e da palavra cristã. Em um gesto duplo, a linguagem é tanto forma quanto tema, enquanto se constitui como denúncia ao processo colonizador.

Além da linguagem, que se manifesta com elementos de terror em Egum, de Yuri Costa, os filmes conjugam uma forte tensão entre os sujeitos opostos no processo de colonização. Em Egum, o inimigo que bate à porta de casa não hesita em invadir seu território doméstico. “Deve ter sido difícil chegar onde você chegou. Os tempos realmente estão mudando”, diz o homem branco ao jovem negro que se tornou jornalista e escritor. Já Lugar Algum, de Gabriel Amaral, é um filme que se constitui nessa tensão. Nego vive na fazenda de seu patrão, Rafael. Por promessas e o sonho de uma vida, o personagem abdica de sua dimensão pessoal. O conflito entre os dois é exposto quando Rafael decide vender a fazenda, já que a venda inclui também o corpo e a existência de Nego.

As nuances da fabulação nos curtas são também permeadas pela religião. A performance de Ziel Karapató é um ritual sincrético, com elementos cristãos e indígenas. Alfazema subverte os símbolos cristãos. Além das figuras de anjo e diabo, uma deusa negra é interpretada por Elisa Lucinda. A deusa, que bebe gim e fuma baseado, recrimina Flaviana apenas por tomar um ácido de procedência duvidosa. Em Egum, a religião de matriz africana é extremamente importante. Ela é alegoria para o sofrimento das inúmeras mães de jovens vítimas do genocídio negro. A ancestralidade é construída na figura da avó, que reforça a importância da sabedoria da oralidade numa família atravessada pelos traumas de opressão e violência. A roda de gira como processo de cura é também experimentada enquanto linguagem e compreensão de um passado que está sempre presente: “Nossos antepassados estão aqui. Seu irmão está aqui”.

Do oceano como abismo em Egum à reflexão sobre a liberdade que se adquire em Lugar Algum, esses filmes não pretendem apenas abordar as consequências dos processos coloniais e racistas nos corpos marginalizados. Da fabulação de novas existências, destaco o trecho de Alfazema em que a diretora Sabrina Fidalgo e Elisa Lucinda são as detentoras do poder em cena e no set de filmagem, ordenando e reconduzindo os corpos ao Carnaval.

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