O ESVAZIAMENTO DA EXISTÊNCIA E A BELEZA DA DIVERSIDADE – Catiorros, de Halima Ouardiri (Marrocos)

por Gustavo Furtuoso

Eles entram em filas, comem, brincam, tomam sol, fazem sexo, dormem, vivem. O paralelismo criado entre a situação de 750 cães de rua resgatados no Marrocos e aquela dos milhões de refugiados que sofrem com a crise de imigração mundial é feito de forma sutil e alegórica em Catiorros. O filme torna nítidas as semelhanças entre o comportamento dos animais e de nossas próprias ações enquanto indivíduos que tentam conviver em meio a um coletivo, sob condições momentâneas que de repente passam a definir seu modo de vida.

Os planos longos despertam nossa curiosidade para desvendar mais sobre aquele lugar do qual não temos nenhum contexto. Acompanhamos como é a vida desses cães, como se adaptaram a um local novo, superlotado, com limitações e hierarquias impostas e sem previsão ou garantia de mudança. O olhar contemplativo empregado por Halima Ouardini nos faz perceber o tempo do filme como um tempo de espera. Por um lar, pela comida, pelo banho de sol.

Mas essa espera dos cães é apenas símbolo para uma espera muito mais dolorosa, por ser consciente. Enquanto os animais vivem no instante presente, o ser humano tem a capacidade de acessar o passado pela memória e fazer projeções para o futuro, criar expectativas, alimentar esperanças. Seja por estar fugindo da guerra, de perseguições políticas ou de condições precárias de vida, o drama dos refugiados se intensifica ao entrar nesse estado suspenso, dependente de forças externas e submetido a elas. Lá, ficam alienados de suas vidas, pessoas e paisagens e em contato com pessoas de diferentes locais, culturas e que de repente se vêem compartilhando um mesmo espaço.

A primeira e única vez em que ouvimos uma voz humana acontece já ao final do filme, através de um aparelho de rádio. Os dados enunciados por um representante das Nações Unidas sobre estatísticas de refugiados ancoram a situação mostrada na realidade, explicitando as relações da alegoria representada. Fora isso, a presença humana é mínima. Não mais que gestos protocolares de manutenção do espaço, com os funcionários trocando a comida dos cães ou os levando de uma ala à outra.

Antes mesmo de articular qualquer desses argumentos, entretanto, Catiorros opta por mostrar a beleza desses cães, dos quais todos são – como chamamos no Brasil –  “vira-latas”, resultados da mistura de pelo menos duas raças distintas. As formas, cores, pelagens e tamanhos inundam a tela desde o primeiro plano, numa diversidade que se faz presente de maneira central.

A existência suspensa dos cães no abrigo reflete o não pertencimento vivenciado pelos refugiados, impedidos de fazer planos ou projetar um futuro até que possam ser repatriados. O olhar paciente do filme cria momentos de contemplação, enquanto a rotina dos animais pode proporcionar identificações e reflexões acerca do comportamento do homem imerso em sociedades com regras e valores que determinam suas ações e, sobretudo, o espaço que ele pode ocupar.

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