OS ÁSPEROS TEMPOS NA AMÉRICA LATINA – Mostra Latino-Americana

por Jade Louisie Felippe

A América Latina sonha em ser livre. Este sentimento tem se tornado cada vez mais febril em nossos corpos cujas veias sempre correram sangue ardente. Estamos em busca das nossas identidades colonizadas e não acreditamos mais no perdão de nossos colonizadores, tamanhas são as desgraças sofridas pela nossa tão amada, rica e chuvosa América, que só pode contar com o seu povo e nada mais.

Como está o povo, enquanto o que podemos fazer é apenas sonhar com a real ideia de liberdade? O povo está mal, muito mal, e aí entram os homens maus. O povo latino sofre com a maldade humana, e nós ainda não acertamos as contas com os caras. Essa onda de movimentos, artísticos e políticos, que clama por justiça pelo que aconteceu no passado e permanece impune e sem explicações até hoje, ecoa por toda o continente, tanto na cena musical quanto no cinema. Pudemos sentir o impacto desta onda vanguardista em três filmes que questionam os diversos e brutais crimes cometidos pelas ditaturas militares, em diferentes formatos.

La Mamita, de Laura Donoso (Chile), nos avisa logo no início: nunca confie em alguém que achava que as coisas eram boas nos tempos da ditadura. Este engenhoso filme, feminino e feminista, conjuga a própria tortura, aquela praticada durante a ditadura de Pinochet, com a perversidade humana, transformando-as no seu elemento de terror. Afinal, o espectador sabe do que aquela enfermeira é capaz de fazer. Os anéis da serpente, de Edison Cájas (Chile), se passa em 1991, um ano após o término da ditadura, e inova ao mostrar um drama “do outro lado”, tomando cuidado para mostrar a visão humanizada que a personagem tem si de própria sem confundi-la com o pensamento do próprio filme. É um suspense que nos faz refletir sobre as fugas e os enfrentamentos deste passado que não pode ser apagado com uma mera borracha. Já o documentário HH, de Julian Setton (Argentina), é um reencontro com o que restou do passado: apenas memórias. No presente, sobram saudades e perguntas.

A maldade do homem é objeto nas suas mais variadas formas de expressão e de representação nas telas. Ultimamente, parece não haver senão somente uma visão pessimista sobre o futuro da humanidade. O latino ainda sonha, sabe que isso é ousadia, e mesmo assim segue. Nestas três sessões, fez-se valer o notável número de filmes de terror exibidos, que ganharam uma sessão especial, reafirmando a ótima qualidade dos filmes latinos de gênero.

El remanso, de Sebastián Valencia Muñoz (Colômbia), é um dos filmes que mais questiona a violência cometida pelo homem – este homem do sexo masculino, criador das armas, da bomba atômica, que mata por dinheiro. A fazenda não é mal assombrada por fantasmas; são os homens que a deixam assustadora e perigosa. A origem da violência cometida na nova moradia da família é o suspense que permeia aquele lugar. Apesar de indefinido, nós sabemos quem é o sujeito do crime. Todos os homens são capazes da maldade, inclusive o marido quando olha maliciosamente para a enteada adolescente. O homem é o próprio terror.

Apesar de todo o pessimismo, reflexo dos fantasmas do passado que ainda nos assombram e desse presente tão desesperançoso que vivemos, há quem ainda consiga enxergar poesia no ser humano. Afinal, precisamos de alguma beleza para continuarmos a sonhar. Mãe chuva, de Alberto Flores Vilca (Peru, Bolívia, Argentina), é a bonita e triste poética dos esquecidos. Uma homenagem a uma mulher que, segundo o filho, inexiste para o mundo, mas é a responsável por encher os rios com suas lágrimas. Solitária desde o dia do seu nascimento, acostumou-se à invisibilidade e às injustiças sociais. Onde encontrar a poesia quando na vida acumulam-se histórias tristes? Para isso, fez-se necessário ser antes filho que diretor.

Mãe chuva se junta aos filmes da primeira sessão e levanta uma reflexão sobre a questão da vida durante a terceira idade, tema que já vem sido discutido, aos poucos, pelos festivais. A principal reflexão se dá quanto à estrutura familiar após a velhice, e as diversas formas de abandono familiar do idoso, que acontece nas camas de hospitais, como em S.O.S., de Ángela Tobón Ospina (Colômbia), ou nos vazios de suas próprias casas, como no mais interessante Kini, de Hernán Olivera (Uruguai), comédia ácida que também critica a tradicional família uruguaia.

Mesmo com toda esta densidade dos filmes e das bandeiras defendidas, a Mostra Latina segue fluida. As sessões nos guiam sabiamente por esta América de gente criadora e inovadora, mas que também não se esquece e quer acertar as dívidas com o passado.

Os tempos são ásperos, mas o cinema latino continua a sonhar.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *