MATERIALIZANDO POSSIBILIDADES HISTÓRICAS – Os anéis da serpente, de Edison Cajás (Chile)

por Suete Souza da Silva

A imersão cinematográfica nas estruturas obscuras do passado pode ser operada de muitas formas, ainda mais quando se propõe buscar reparação pela denúncia. Ao posicionar seu curta Os anéis da serpente na abertura democrática do Chile, o cineasta e pesquisador Edison Cájas articula instigantes técnicas de gênero e linguagem para reescrever os fatos e as revelações assustadoras que sucederam o período ditatorial de seu país.

Circunscrita à alvura da clínica higiênica na qual se define, Ana é questionada sobre o que sente a respeito de sua presença. Sua resposta hesitante invoca a imagem de uma serpente que pode tanto estar envolvendo-a quanto abraçando-a, aprofundando-se invasivamente nos pensamentos que ela possui pelo intermédio do olhar, não no que ela sente. De sua sutil evasiva, uma cartela contextualiza a protagonista no tempo e no espaço de sua casa: Chile, 1991.

A inflexão ao ambiente doméstico, partindo da percepção imagética e psicanalítica sobre sua privacidade, discrimina os elementos e os cenários iniciais do curta como locais de retorno circular à tomada de consciência. Seja pelas ligações não atendidas pela sua servil empregada doméstica, seja pelo rádio onipresente de sua dependente Úrsula, seja pelas notícias na televisão ou pela carta aberta com uma intimação, os meios atuam como a mensagem: Ana apresenta-se, há muito tempo, em estado de negação.

Longe do altruísmo desempenhado em torno das vulnerabilidades de sua filha, é na vida pública que a protagonista interpretada pela formidável Paulina García se concatena às posições de poder e influência no magistério. Fazendo valer sua posição de superioridade no saber e na prática, a médica forense leciona métodos pouco dialógicos – da reveladora nostalgia pela perícia sem prévia averiguação dos corpos, os métodos da docente são postos sob suspeição apática pelos jovens estudantes chilenos que farão parte da futura geração de médicos do país.

Confrontada pelos dispositivos à sua disposição ou pelas confidências ameaçadoras entrevistas nos sussurros trocados com um ex-companheiro, para revisar o que foi pactuado sobre o passado, a médica forense recusa-se a reconhecer o que guarda sob sua redoma: um segredo insidioso que paulatinamente vem à tona, em público, na medida em que ela tenta proteger-se atrás das fragilidades que compõem a infraestrutura de sua vida privada.

Do plano-detalhe eisensteiniano lançado à comida repleta de larvas até a escandalosa revolta dos estudantes durante uma prova, Os anéis da serpente consegue transitar do suspense ao thriller psicológico com uma maestria técnica repleta de referências. Uma ficção que valoriza o potencial dos meios, e da arte, para conceber uma dialética material sobre a história: “você tem o direito de saber a verdade, e a verdade está nos fatos”.

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