Sobre a impotência do ato de filmar

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Mariana Moura –

E se nossa realidade fosse televisionada? Junto com ela, todas as violências que sofremos diariamente? E se os maridos agressores filmassem os momentos “estressados” com suas mulheres? E se, a partir de agora, todo criminoso filmasse sua execução ou agressão? Como seria o mundo se tudo fosse filmado e postado no YouTube ou no Facebook?

É essa pergunta que fica na cabeça depois de sentir e é claro, assistir Este ambiente está sendo filmado?. E tudo foi filmado mesmo. O curta mostra a trajetória de três jovens, depois de um tempo de terem vivenciado um acidente em plena avenida de São Paulo: um homem morto assustou os três baladeiros, que viram o corpo no carro, antes de ir para uma balada, que não foi tão interessante naquela noite.

O curta começa com as lembranças de David e Sarah sobre o ocorrido na noite. Enquanto ouvimos os relatos dos dois, durante a própria gravação sabemos que o terceiro amigo presente na noite é quem está filmando o curta e, por mais que ele não apareça, está presente nas narrações e participa da história, mesmo sem vermos seu rosto ou ouvirmos seu depoimento.

Além da narração – algumas vezes exagerada, pois o narrador poderia falar menos que o público entenderia de qualquer forma a proposta do curta –, também vemos cenas fortes de violência, expostas em pequenos quadros espalhados pela tela, mas que já causam incômodo em alguns espectadores. A narração faz algumas relações das imagens “caseiras” com outras situações de guerra e outros vídeos disponíveis na internet. Sarah fala sobre a questão da impotência que temos diante de uma situação de perigo e logo depois desse depoimento, podemos pensar, ironicamente, sobre essa impotência, o vídeo mostra um homem sendo atacado por leões e logo em seguida, outro vídeo de uma mulher sendo atacada por um homem.

E por que continuamos nessa impotência? Parece que o fato de gravarmos um vídeo nos torna isentos da responsabilidade, já é uma denúncia. O curta fala de vários aspectos, mas um dos mais fortes é essa nossa indiferença diante de situações limite, onde apenas pegamos os celulares e filmamos. Dessa maneira, nos tornamos internautas passivos de um ato violento, porém achando que estamos fazendo um bem para a sociedade com esse registro. E se, ao invés de filmarmos, fossemos ajudar com nossas próprias mãos?

Os dois jovens que vivenciaram a história nos contam com câmera estática, o que faz com que nós, espectadores, mergulhemos em suas expressões, queremos saber o que esse acontecimento despertou em cada um. O filme investe em mostrar essas gravações caseiras: em determinados momentos estou completamente dentro do filme e, em outros momentos, me distancio por conta dos cortes que ele propõe. É como se minha mente fosse o olho da câmera que recebe o depoimento, daqui a pouco corta para o Youtube, volta a mergulhar na intensidade e sensações do David e Sarah, sai novamente e vai pra cima de um viaduto, onde um homem tenta se suicidar. Respiro, me mexo na cadeira, estou incomodada. Até que no final quero muito ver o vídeo narrado durante todo o curta e só vejo o começo dele, não vejo o corpo estirado no chão da grande avenida e isso é ótimo, a imagem fica no meu imaginário, na câmera da minha mente, em mim.

O filme nos arrebata e não apresenta nenhuma resposta ao problema, porque resposta não temos, por enquanto só temos um ponto de interrogação na testa, um aparelho que registra tudo o que não sabemos lidar, a violência, a morte, a impotência. Sempre estamos atrás do olho da câmera, filmando e registrando tudo, o tempo todo, postando e curtindo tudo, sem sentir nada.

Este Ambiente está Sendo Filmado está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Sociedades de imagens

Nos dias em que o vazamento de um vídeo íntimo registrando o ato sexual pode render até uma capa na revista Playboy, Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, de Eduardo Kishimoto, vem a calhar. A discussão sobre privacidade e suas violações não é nova. Ela aumenta a cada dia, conforme o acesso o crescimento do compartilhamento digital.

De celebridades a pessoas comuns, todos expressam algum tipo de preocupação com relação a registros íntimos, seja uma inocente foto da namorada nua, ou um vídeo inteiro contendo as piores (ou melhores) sacanagens que só quatro paredes conseguem guardar.

O curta de Kishimoto envereda por um caminho fértil e pouco explorado. A popularização de dispositivos produtores de imagens, sejam celulares, câmeras portáteis, tablets ou câmeras fotográficas profissionais, gerou um exército anônimo de fotógrafos e filmmakers. Um acidente de moto, alguém sendo abordado pela polícia, amigos numa festa etc. Nada escapa a esse olhar anônimo e constante.

Foi Kleber Mendonça Filho quem fez um filme muito interessante sobre esse fenômeno. Luz Industrial Mágica (2008) mostra os espectadores do Festival de Cannes munidos de seus dispositivos digitais prontos a capturar o pixel mais atraente do ator do momento. O último plano do filme de Kishimoto lembra o filme de Kleber Mendonça; apesar das diferenças, existe no rosto dos personagens nos dois filmes o mesmo fascínio produzido no momento do registro da imagem, seja foto ou vídeo.

No caso de Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada o vídeo surge como o perseguidor implacável de quem teve sua vida íntima divulgada e reproduzida aos milhares na internet. A garota protagonista parece se render enfim aos seus perseguidores, munidos das mais diversas câmeras, e passa a oferecer aquilo que eles querem: sua nudez despudorada.

O curta aborda um tema atual que ainda produzirá muitos debates acerca da liberdade daquele que captura a imagem e da liberdade daquele que é capturado. A opção pela gravação em diversos formatos e qualidades foi muito interessante. Estamos acostumados às imagens de qualidade baixa difundidas na internet; ver essas imagens projetadas na tela grande revela muito acerca da produção digital contemporânea.

A unidade menor, o pixel, explodindo em planos tremidos, fora de foco e mal enquadrados são parte cada vez mais constante do universo de vídeos que consumimos. Seja pelo compartilhamento de amigos, seja em canais de distribuição como YouTube ou Vimeo. Claro que muito ainda irá mudar com o avanço da banda larga no Brasil (assim esperamos), e esse processo está longe de terminar.

Vale se perguntar, e foi o filme de Kishimoto que me despertou para essa questão: o que acontece quando essa liberdade do registro é usada para o “mal”? O que vemos em Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada é um bando covarde que deixa a pobre garota sem escapatória, cercada por todos os lados por mãos que seguram algum dispositivo.

Ela não tem outra opção a não ser ceder ao triste espetáculo produzido por uma turba insaciável por registrar imagens. É como muitos que ao assistir um show passam mais tempo tentando gravar algo no celular do que gravando algo na memória.

Renato Batata

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada está na Mostra Brasil 10. Clique aqui para ver a programação do filme

Mistura de linguagens no trato à intimidade

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, de Eduardo Kishimoto, encerra a Mostra Brasil 10. Um sessão repleta de escracho, nudez e sexo.

Entre ver e ser visto, muitas câmeras revezam os olhares sobre Josie, a personagem central do filme. A câmera fotográfica de sua amiga, a câmera de vídeo do ex-namorado, a webcam da própria Josie, a tela de um site pornô, o celular de um cliente da loja onde trabalha ou da multidão da rua Santa Ifigênia, em São Paulo.

Rua não menos simbólica que o próprio quarto da personagem. Entre o privado e o público, o filme configura “fragmentos digitais da intimidade de Josie” (como define a sinopse), sejam eles registrados por ela mesma, por pessoas próximas ou por qualquer desconhecido.

Em uma confusão de câmeras e telas, um drama muito contemporâneo se passa. O site Vazou na Net publica o vídeo dela transando com o ex-namorado. Ele é repassado para outros tantos sites e visto por um cliente da loja, que a insulta. Por um espetáculo qualquer, uma multidão de celulares se configura, como um julgamento em praça pública, mas ninguém acude a menina.

Fazer um vídeo já justifica que ele seja divulgado? Qual o trato que se dá para a intimidade quando passamos a viver em rede? A partir das diversas relações que se pode estabelecer com uma câmera, formamos uma geração de jovens com virais (vídeos), presenciamos casos desde a página de Isadora Faber, Diário de Classe, até situações extremas como a da personagem Josie.

Experimental e habilidosa, no filme de Kishimoto, é a própria maneira de filmar o argumento.

Luiza Folegatti

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada está na Mostra Brasil 10. Clique aqui para ver a programação do filme