Algumas tendências do cinema universitário

noite perdida

No texto de apresentação da mostra Cinema em Curso (voltada a filmes realizados em cursos de graduação em audiovisual de escolas do estado de São Paulo), que consta no catálogo do 24º Festival Internacional de Curta-metragens de São Paulo, aponta-se para uma vontade, por parte da curadoria, de se estabelecer um debate acerca do ensino em audiovisual, bem como das características particulares de cada uma das escolas participantes. Partindo dos filmes presentes na mostra (que, vale frisar, foi constituída a partir de filmes indicados pelas próprias escolas), bem como por alguns também realizados dentro de faculdades, porém, espalhados por outras mostras (Brasil e Panorama Paulista), gostaria de contribuir para o debate proposto, a partir da identificação algumas tendências em comum apresentadas por esses filmes. Tendências estas que sugerem, a meu ver, uma problematização de como esses filmes olham para o mundo ao seu redor, e, portanto, como se portam perante a ele.

Filme sobre cinema

Um primeiro ponto que chama a atenção dentro da produção universitária é a constante presença de temáticas relativas ao fazer artístico e ao aparato cinematográfico, configurando, em alguns momentos, uma obsessão pela metalinguagem. Dois filmes do programa evidenciam essa questão: Estátuas vivas e Redoma.

No primeiro, um documentário, pretende-se um relato acerca da profissão informal exercida nas ruas da cidade e que cede seu nome ao filme. O grande problema reside justamente no olhar que o filme lança sobre o objeto tratado. Assim, reveste-se a profissão com uma aura de “poder da arte e do artista” que parece muito mais querer respaldar o fazer artístico supostamente presente no próprio filme. Elimina-se qualquer olhar que aponte para uma problemática acerca da condição de trabalho dessas “estátuas vivas” em prol de um olhar lírico, pré-fabricado, que encontra nas “estátuas vivas” somente um álibi para despejar seus conceitos acerca da beleza da arte, “salvadora do mundo”.

No segundo, também documentário, aborda-se a vida de três artistas que lidam com a timidez. Constrói-se um dispositivo para tentar traduzir o problema vivenciado pelos retratados: a timidez diante do aparato cinematográfico montado nas entrevistas. Aqui dois movimentos convergem. O primeiro é a predominância do deleite acerca do aparto cinematográfico: aproveitam-se momentos da entrevista, que tradicionalmente seriam descartados (os silêncios e hesitações diante da câmera), filma-se a situação de constrangimento sendo filmada – deleite puro do aparato. Isso contribui para um segundo movimento: sustentar o discurso de que tais artistas tímidos se libertam desse mal que os acomete quando atuam em seus respectivos campos artísticos. Novamente, a pregação do poder, da beleza e da liberdade conferida pela arte – novamente um discurso que pode muito bem servir ao próprio fazer do filme em questão. Mas afinal: que poder, que beleza e que liberdade se reivindica aqui?

Quando o crítico Jairo Ferreira falava em seu livro Cinema de Invenção que “faz-se filmes SOBRE cinema e não DE cinema”, sua justificativa estava calcada em um posicionamento político diante da impossibilidade de se fazer filmes inocentes e inofensivos dentro de uma condição de subdesenvolvimento – falar sobre o aparato era se posicionar agressivamente perante a hostil situação vivida pelo homem em seu processo histórico marcado pela falência.

O que se vê na metalinguagem, discurso sobre o aparato e discurso sobre o fazer cinematográfico empregado pelos filmes universitários acima citados é um discurso ensimesmado. Aborda-se o aparato numa chave quase fetichista, em uma tentativa de se legitimar. Falamos de cinema porque não sabemos falar de outra coisa, porque não olhamos para o mundo e seus problemas, somente para o universo particular de quem estuda cinema e por conseguinte de todas as “maravilhas”, “beleza”, “poder” e “liberdade” (num sentido extremamente vago e evasivo) que tal arte pode proporcionar.

Cinema de gênero

Outro ponto em comum entre alguns filmes universitários é a opção pelo cinema de gênero. Que existe uma classificação das obras em gêneros não é nenhuma novidade (Aristóteles já fazia isso). Que a indústria cinematográfica se utilizou disso como forma de codificar ao extremo e tornar palatáveis os produtos ao grande público também não. A novidade reside em como alguns filmes recentes lidam com a questão do cinema de gênero ao se defrontarem com um vasto imaginário, construído ao longo do século XX (principalmente pelo cinema industrial norte-americano), hoje imerso em um contexto de crise de representações, portanto, crise de modelos consagrados a serem perpetuados eternamente. Novamente, dois filmes universitários apontam para uma mesma tomada de posição perante essa problemática, são eles: Noite perdida e Preto ou branco.

No primeiro caso, ocorre uma opção pela comédia escrachada de cunho adolescente. Elimina-se qualquer traço anárquico potencialmente presente no gênero em prol de uma comédia calcada na sátira de eventos cotidianos da classe média que somente engrossa as fileiras das recentes comédias brasileiras sucessos de bilheteria.

No segundo caso, ocorre uma opção pelo gênero de ação. Dessa forma realiza-se uma revisão histórica do período da ditadura militar brasileira através da estilização gráfica. Reduz-se brutalmente toda a discussão de como o cinema olha para a história e problematiza esse processo histórico truncado do país a um mero desfile da técnica como forma de deslumbre visual. A última cena, inclusive, faz rememorar as observações de Jacques Rivette acerca do travelling de Kapò em sua crítica ao filme de Pontecorvo, intitulada Da abjeção. Assim como em Kapò ocorre uma estetização da morte (apontada por Rivette), em Preto ou branco tem-se uma plasticidade da tortura e do sofrimento contidas no movimento de câmera final.

Nesse contexto, observa-se a opção pelo cinema de gênero principalmente como forma de tentativa de inserção mercadológica e de isenção de responsabilidades nas escolhas do olhar: engrossa-se a fileira da mesmice representada pelas grosseiras comédias hegemônicas no cinema nacional atual e transforma-se um processo histórico traumático e truncado em índice de realidade capaz de corroborar uma estilização condizente com o gênero ação.

Afeto: idosos, crianças e circo

Nina, A nobre e breve história do beijo e Lembranças de Maura lidam com figuras em comum: idosos, crianças e o circo. O trato com essas figuras perpassa por duas formas de posicionamento perante uma pergunta muito frequente em escolas de cinema: por que fazer um filme?

Geralmente, no contexto escolar, em que tais filmes se inserem a resposta é: necessidade – seja de um exercício curricular, seja de um projeto de conclusão de curso. Contudo, a presença massiva de idosos, crianças e do circo no cinema universitário sugere outras respostas para essa pergunta: a possibilidade de falar de si e o afeto como elemento mediador.

A mediação realizada por essas figuras tendem a configurar um olhar estável e conciliador sobre o mundo. Cria-se o afeto, o sentimento, a abordagem do mundo através de uma experiência muito pessoal – o filme como um divã ou um livro de auto-ajuda. Nesse contexto, idosos, crianças e o circo surgem como elementos capazes de suscitar um sentimentalismo promotor desse afeto: carregam em si a inocência perdida e cristalizam a nostalgia como outro dado fundamental. Mais uma vez, ninguém é obrigado a se posicionar, afinal, tudo se justifica pela necessidade em causar uma breve e ligeira emoção, e todos podem sair felizes da sessão, como se nada tivesse acontecido.

Ato de resistência

Volto ao ponto inicial: o que essas características apresentadas pelos filmes tem a nos dizer ou a contribuir acerca de um possível debate sobre as escolas e os cursos de audiovisual, tal como proposto pelo texto de apresentação da mostra no catálogo?

Numa conferência realizada com alunos de cinema da FEMIS em 1987, Gilles Deleuze apontou a seguinte ideia: “Qual é a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a menor informação. Por outro lado, em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Tem algo a ver com a informação e a comunicação, a título de ato de resistência”.

Creio que as tendências apresentadas nos filmes apontam para uma crise da ideia do cinema (da arte) como um ato de resistência, tal como sugere Deleuze. As implicações disso é que cada vez mais se instaura um desligamento do mundo e das questões que o circundam – predomínio do discurso ensimesmado e das ideias inofensivas. Portanto, predomínio do sentimentalismo e falência do debate crítico.

Guilherme Maggi Savioli

A identidade no outro

menino peixe

Em Menino Peixe a diretora Eva Randolph retoma alguns pontos já trabalhados em seu curta Dez Elefantes (2008): família comandada pela figura matriarcal, relação de cumplicidade e embate entre irmãos.

No novo curta as figuras femininas são centrais, nos papéis da mãe grávida e da filha pequena. O homem está sempre por vir, seja o bebê que a mãe espera e o pai trabalhador em uma plataforma em algum lugar do oceano. A aguá, aliás, possui importância capital na narrativa como aquela que acolhe as figuras masculinas e as mantém longe do convívio familiar – o filho dentro da barriga, o homem no trabalho rodeado pelo mar.

No início do curta, a mãe conta para a filha que no princípio todos éramos peixe, até que se tornaram como são hoje em dia, o bebê em seu ventre é um peixe que nada em seu líquido. É o bastante para que a menina comece a divagar sobre a identidade do novo membro da família, o rosto daquele que vem dividir com ela as atenções da figura protetora e que pela proximidade do parto recebe cada vez mais atenção.

Novamente o mar aparece como figura preponderante. Em seus sonhos a menina se imagina na praia à noite, no breu, com o mar revolto, e seu irmão, da mesma idade que ela, se revela um menino-peixe, cheio de escamas. A relação a princípio é tão tensa quanto o mar, não se entendem, brigam. A diretora, como em seu primeiro curta, se vale de maneira muito feliz do artifício do esconde-esconde, brincadeira favorita infantil, para revelar o jogo de achar no outro sua identidade, de encontrar eco. A brincadeira no escuro, no espaço violento de ondas quebrando vai se tornando mais intensa ao longo da narrativa, conforme o parto vai se aproximando cada vez mais, assim como o ciúmes da menina em relação à mãe.

Eva consegue de maneira satisfatória criar um paralelo simbólico entre vida e a água, através do mar, bravio, misterioso, forte, imenso, como potência de criação e nascimento e através das cenas nas quais a filha aparece nadando na água represada e calma das piscinas, recurso artificial que não possui a mesma força do oceano, um simulacro apenas, como desejo da menina em retornar ao útero materno.

A cena final amarra de maneira muito interessante este jogo de procurar a si mesmo, a construção de identidade no outro. Após a ida da mãe abruptamente para o hospital e a chegada atrasada do pai para o parto corta para a mãe dormindo calmamente numa cama na praia onde os irmãos se encontram à noite, o mar furioso, mas a figura materna está lá calma e adormecida, os dois sempre no breu, sempre apenas contornos. Possuem lanternas, o garoto aponta sua lanterna para o rosto da irmã, ela se ilumina e aparece finalmente na escuridão. Ela sorri.

Malu Andrade

Menino Peixe está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Essa tela (não) é pequena demais para nós dois

malaria-ed

Malária é um filme que narra o encontro da Morte com um homem que quer impedi-la de fazer seu trabalho. Situado numa mesa de bar, com a tensão ao redor de uma pistola que ameaça a vida dos dois, segue a linha de um tradicional western. O que há de inovador é a linguagem que Edson Oda adota para contar essa história, unindo a HQ ao cinema de uma maneira muito divertida e inteligente, chegando ao sentido intencionado para sua história e fazendo referências a estilos já consolidados. São dignas de destaque a construção sonora, cujos efeitos e músicas preenchem perfeitamente os espaços do quadrinho, e as vozes dos personagens, que são interpretadas com maestria por Antonio Moreno e Rodrigo Araújo, dando vida aos desenhos.

Dentro de um plano-sequência de quase cinco minutos existe uma decupagem detalhada. A história é desenhada em quadrinhos, que têm variação entre planos gerais, médios e closes, e são manuseados por uma mão que cumpre a função de montador do filme. Os momentos de quebra da quarta parede – num filme que possui cinco delas – em que elementos externos ao desenho interagem com a história são bem divertidos.

Além dos objetos que fazem intervenções pontuais, como o livro, o sangue, o rolo fotográfico de lembranças e o fogo, toda a direção de arte do espaço, com detalhes como a mesa de madeira, a vela e a faca que abre os balões de fala, contribui com a tensão e o clima de perigo e ameaça da história, casando perfeitamente com o gênero.

Diante do recurso utilizado por Oda, é interessante pensar sobre a influência da arte na própria arte. As histórias em quadrinho foram uma grande influência para os filmes exploitation dos anos 80, com a decupagem rápida e as cenas de ação sangrentas, adaptando o que os quadrinistas faziam através de variações no tamanho da margem e no “zoom” da imagem. E agora, em 2013, o quadrinho é colocado dentro do cinema e isso é considerado original e criativo, o que demonstra que na arte “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E o que temos aqui é uma transformação surpreendente e inteligente.

Marina Moretti

Malária está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Sobre a delicadeza e o amor profundo

na sua companhia

Complicado falar sobre o que um filme é ou deixa de ser. Na sua companhia foi exibido como parte de um programa intitulado LiberCine, de temática LGBTTT, mas se destacava muito das outras produções pela obliquidade com que se refere a esse universo. Diferentemente dos outros filmes do programa, a sexualidade não é um ponto em questão, e sua afirmação não se faz por meios tradicionais ou simplistas.

O filme se insere numa tendência contemporânea de ausência de confronto, e vai além, eliminando o conflito dramático. Forçosamente nada acontece em cena. Na sua Companhia é uma série de tableaux – o bar, a casa, a cama, a rua, o churrasco, o encontro – que dialogam entre si, mas que (por definição) tem pouca ou nenhuma transformação interna. A história se conta nas comutações, em uma constante reavaliação do estado em que se encontra a relação dos dois.

Esses tableaux são – principalmente no começo – marcados por códigos visuais muito expressivos e que acabam sendo fundamentais nessa narrata épica. O melhor exemplo é a primeira cena do filme, que estabelece uma relação ambígua de poder e voyeurismo/exibicionismo a qual nos remete a um certo tipo de filme de terror (Bruxa de blair, REC, The Poughkeepsie Tapes). Esse código visual cria em nós uma expectativa de que “alguma coisa dará errado”. Mais que isso, ela codifica nossa primeira leitura do protagonista como sendo um perverso (provavelmente, um vilão), distanciando-nos dele. Existe ao longo de grande parte do filme uma expectativa de que algo de ruim irá acontecer porque na primeira cena nossa relação com o protagonista foi formatada através de uma série de artifícios de linguagem – não se trata de uma característica da personagem, mas um determinado conjunto de expectativas que estão associadas a sua representação. Com o tempo, o filme vai adotando outros códigos de linguagem que vão transformando nossa relação com o protagonista branco sem que exista uma transformação da personagem. O contraponto entre esses códigos visuais muito diversos é parte do mecanismo de ‘contar a história’.

Não há propriamente drama, ainda que haja algo ‘acontecendo’. As quebras de expectativa existem a nível estrutural: coisas que, no início, estão postas como questão perdem arbitrariamente esse estatuto; aquilo que parecia essencial revela-se banal. Por exemplo, do código de terror do começo sombrio, o homem mais velho tem uma relação complicada com essa câmera e ele mesmo diz não querer que lhe filmem. De repente, sem pestanejar, ele cede ao pedido do amante e se deixa ser filmado.

Não obstante essa complexidade formal, o filme é sobre duas personagens e sobre uma relação que tem um arco muito claro. Ao contrário do que se pode dizer de grande parte da ficção recente, os protagonistas de Na sua Companhia são ativos e isso não é banal. A relação dos dois evolui a partir de concessões: um que topa o convite para o jantar, outro que topa ser filmado. O rapaz negro é o vetor fundamental das mudanças, e o fato de ele tomar a câmera em mãos, arrebatando o ponto de vista e o próprio protagonismo do filme indica a conquista do direito à própria representação. Essas personagens que no início estão à mercê dos códigos do narrador no final estão produzindo sua própria imagem; e esse é o grande turning point da narrativa.

E, ainda assim, em nenhum momento olhamos de frente para esse casal. Somos dados a conhecer recortes específicos de sua trajetória, fragmentos de uma história da qual o espectador tem grandes lacunas a preencher, ao contrário de uma ficção contemporânea onde a mais banal das coisas é passível de ser artificialmente trabalhada para ser impactante e chamativa. O exemplo paroxístico é o filme de Sam Raimi, onde Oz não é senão uma paródia da realidade: tudo lá é maior e mais colorido e as flores abrem-se ao passar do protagonista, numa tentativa de dar conta de uma sensibilidade amortecida.

Em Na sua companhia somos convidados a contemplar uma relação cujo momento apoteótico é um abraço e a frase “Você é o máximo”. Há uma pequenez nesse gesto que carrega algo de (neo?) realista e que dá conta de uma relação que não precisa gritar para se afirmar. Quem assistir a esse filme na expectativa de que o filme lhe “entretenha” ou lhe “diga algo” sairá frustrado porque o filme de Marcelo Caetano é a representação de uma conjuntura complexa e chego ao fim na certeza de que estou muito longe de dar conta do filme como um todo, mas muito grato a Rubens Rewald e a Heitor Augusto por sensibilizarem meu olhar para este filme.

Por fim, a temática homossexual é indispensável ao enredo deste filme. O filme iniciar em código de suspense não é ingênuo na medida em que o universo gay é tradicionalmente associado a “perversidade”. A narrativa de uma relação que começa num ambiente tenso e obscuro e termina solar só poderia ser o arco de uma relação cuja afetividade vem carregada de pré-conceituação social. A obra lida, entre muitas outras coisas, com essa não superada marginalização da homoafetividade, afirmando-a ao trata-la todo o tempo como premissa e não como dilema fundamental do relacionamento.

Na sua companhia, para felicidade geral da nação, é um filme de amor com final feliz.

João Pedone

Na sua Companhia está na Mostra Libercine. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Django indígena

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Na época de seu lançamento, o longa Django Livre de Quentin Tarantino, que transforma o período escravista dos Estados Unidos num western spaghetti, foi categoricamente criticado pelo também cineasta Spike Lee. “Tudo o que posso dizer é que o filme é desrepeitoso com meus ancestrais”, disse o cineasta engajado. Existem muitas similaridades entre o último filme do cultuado diretor e O Homem Que Matou Deus, do diretor francês Noé Vitoux. Semelhanças que não se limitam à temática das obras, já que o curta de Vitoux parece muito inspirado na estética tarantinesca.

A proposta do filme é extremamente interessante: utilizar um humor ácido e irônico para construir uma crítica política aos crimes cometidos contra a população indígena no país. Ou seja, fazer com índios o que o Django de Tarantino fez com os escravos negros e o que o Machete de Robert Rodriguez fez com os imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. O resultado atingido é, inevitavelmente, tão controverso quanto o das duas obras citadas.

Em formato de falso documentário, a produção acompanha o cotidiano do índio Wem Tom, o melhor caçador de homens brancos da região. Nesse ponto o curta se difere dos filmes já citados: o nosso protagonista não vê no ato da caça um exercício de vingança, pois ele, como qualquer caçador, caça por prazer. Não pretendo de forma alguma por em debate os pilares do politicamente correto e taxar esse humor como ofensivo a moral e aos bons costumes. Sou entusiasta desse tipo de abordagem, e acho que vários filmes tiveram um êxito estrondoso nesse setor, como é o caso de Borat, personagem estrelado por Sacha Baron Cohen, que incomodou muita gente lá por meados dos anos 2000.

Compreendo muito bem a intenção do diretor, que fica bem clara através de um dos monólogos do personagem, de nos mostrar o quão desumano são os homícidios de indígenas que acontecem sem qualquer razão por diversas áreas do país e, de um modo geral, terminam impunes, através de uma inversão de papéis para ressaltar o absurdo da situação.Ora, se o homem branco mata um indígena por prazer, por que o contrário seria tão abominável? E é aqui que nasce o meu desconforto. Nesse processo, acho que de certa forma o autor causa um efeito reverso e acaba por desumanizar um pouco o protagonista. Na tentativa – fundamental para esse tipo de filme de protesto – de chocar o espectador constantemente, o discurso as vezes acaba sendo um pouco brutal demais. Ainda não encontrei a necessidade de se ter uma cena em que a tribo faz churrasco de um bebê.

Além dessas questões, o diretor também peca por não saber que rumo seguir, já que o roteiro abrange um excesso de recursos narrativos, esforçando-se desesperadamente em ter um aspecto cult. Narrativa não-linear, fotografia que alterna entre preto e branco e colorida, trilha sonora cheia de batidas eletrônicas contrastando com o bucólico das imagens, tipografia estilizada em cores neônicas e, até mesmo, uma desnecessária metalinguagem: tem de tudo um pouco nos míseros 18 minutos de duração do curta. São tantos apelos estéticos que o assunto central acaba perdendo um pouco de sua força, em meio a esse carnaval de referências a cultura pop.

No entanto, alguns méritos precisam ser dados a produção franco-brasileira. A iniciativa de tirar o indígena do papel de coadjuvante, quase sempre vítima ou marginal – ponto que o próprio Wem Tom menciona em determinado trecho – e colocá-lo não só como protagonista mas também como um anti-herói, é um grande passo, ainda mais quando se leva em consideração que não faz muito tempo que o primeiro ator negro protagonizou uma novela e o primeiro beijo entre pessoas do mesmo sexo aconteceu em um canal aberto.

É importante lembrar do papel intrínseco as obras audiovisuais na tarefa de quebrar preconceitos, e o melhor jeito de fazer isso ainda é através do desmitificação de estereótipos. Em meio a tantas boas intenções, é nesse pequeno detalhe que o filme nos mostra seu argumento mais incisivo.

Henrique Rodrigues Marques

O Homem que Matou Deus está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Aquele cara que ia mudar o mundo

aquele cara

Aquele cara é o cearense Jonnata Doll. O próprio título do filme já revela muito sobre o que ele trata. Um documentário pautado na simplicidade de uma câmera filmando uma pessoa, sem grandes produções, sem mudar muito de locação, sem se preocupar em mostrar a vida ao redor dele. Simplesmente mostrando o cara. Ele e sua história de vida.

A autora que vos escreve tem um gosto pessoal por documentários que se limitam a mostrar alguém falando sobre sua vida. Ouvir uma pessoa contando algo é de uma riqueza incrível. Um relato é capaz de criar mil imagens na cabeça do espectador, que jamais poderiam ter sido captadas. Além disso, nesse caso, a escolha da simplicidade na maneira de filmar reflete a simplicidade de Jonnata Doll de falar da vida. O compositor e cantor fala de questões importantes e profundas com muita despretensão e bom humor. Suas letras são bastante críticas, falando de incoerências sociais, consumismo e drogas, entre outras questões que recebem menos atenção do que merecem.

Em seu discurso, Doll fala, à sua maneira informal e lânguida, de temas que dizem respeito à grande maioria dos jovens: sua relação com o amor, a religião e a música, sobre como se sente livre (e confere às drogas créditos por isso) e inadequado à sociedade por sentir-se assim. Com maior talento para escrever do que para cantar, o comportamento crítico e a relação íntima com as drogas, faz lembrar – com o perdão da blasfêmia aos que discordam – Cazuza.

A despretensão e simplicidade que o curta adota para abordar as inquietudes da juventude são enfatizadas pela escolha do local da entrevista, que se dá na maior parte do tempo, à beira do mar. Doll foi o caminho adotado por Dellani Lima para tratar desses assuntos, e atinge o público com seu jeito cativante e descontraído. Parece estar muito à vontade, frente ao oceano, que simboliza liberdade, longe das garras da leis e da hipocrisia. Nesse contexto, Jonnata Doll se põe como só mais um que tem inquietudes e reclamações a fazer, só um cara que poderia ser tantos outros que também andam pelas ruas de Fortaleza, de todo o Brasil e de todo o mundo.

Marina Moretti

Aquele Cara está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Degustação na casa ao lado

o sol pode cegar

O filme O sol pode cegar, de Toti Loureiro, retrata de maneira cativante alguns temas de grande importância nas discussões sociais contemporâneas. Cativante no sentido de conseguir prender a atenção do espectador e despertar sentimentos – não necessariamente bons.

O enredo se dá em torno de Paulo, um garoto que perde a virgindade com sua empregada doméstica e conta para seus amigos, que interpretam aquilo como um “convite para uma degustação”. A forma como os garotos encaram o corpo de Maria é absolutamente desprezível e o roteiro se desenvolve de modo a passar para o espectador todo o asco, agonia e ódio que aquela situação merece. O espectador percebe o que vai acontecer antes de ver na tela e isso só aumenta o sentimento de aflição e raiva.

A escolha dos atores e das locações foi muito apropriada para dar verossimilhança à história e escancarar para o público quão plausível é essa situação, como aqueles garotos poderiam perfeitamente ser filhos ou amigos dos espectadores. O comportamento deles reflete toda uma lógica de total discriminação de classe social, raça e gênero que permeia as cabeças de muita gente. E a naturalidade com que eles agem demonstra como esse tipo de coisa acontece muito mais perto e com muito mais frequência do que aparece no jornal ou que as pessoas ficam sabendo.

As cenas do parque, em que os amigos conversam, são o ponto fraco do filme. A linguagem do jovem é muito dinâmica e coloquial, as gírias entram nas frases com uma naturalidade que se perde facilmente quando escrita num roteiro. Com falas ditas de maneira forçada e pouco realista, os atores – à exceção de Vinícius Tardio – deixam a desejar na interpretação, perdendo o timing das piadas e provocações. Melissa Arievo, por sua vez, está muito bem, interpretando com verdade e vivacidade, e fazendo Tardio crescer nas cenas que têm juntos.

O desfecho da história também poderia ter sido diferente. O encontro de Maria e Paulo no final do filme merecia mais dramaticidade e uma reação muito maior da moça diante daquilo a que ele a submeteu permitindo que seus amigos fossem até sua casa falar com ela. Talvez Loureiro tenha falhado no que diz respeito à abordagem desse tema tão delicado, que é tratado por Maria com mais naturalidade do que deveria, mas o diretor foi muito feliz na maneira como conduziu a narrativa, sem que o filme se tornasse cansativo e fosse apenas um pretexto para dar uma lição de moral no espectador.

Marina Moretti

Tensões internas no quadro

nina

É difícil “separar” o trabalho dos departamentos em um filme pronto, mas é nítido aqui um requinte e um domínio de técnicas de direção, amparadas por uma montagem sensível em termos de ritmo, que (me) surpreende no conjunto das mostras Cinema em Curso e no conjunto do festival. A escolha por longos planos gerais se sustenta na articulação de tensões internas ao quadro entre pontos de atenção central e periférica que criam um dinamismo interno ao quadro fixo. E o plano-sequência em que o rapaz desenha as flores é impressionante.

E estou me referindo, claro, a virtudes narrativas. Pessoalmente, não descarto a narrativa clássica como alternativa para o cinema contemporâneo. Neste caso, apontar a relevância de um domínio e de um correto emprego dos procedimentos não deixa de ser uma perspectiva neoclássica de “arte = técnica”. Mas, convenhamos, arte não se trata simplesmente de boas ideias. Não se trata, claro, de más ideias, mas o mundo não é binário, e fora da ficção não temos a alternativa melodramática de recorrer ao desengano.

Nina, por exemplo, me deixa com um gosto estranho na boca, a despeito de sua “leveza”. O ponto delicado é se tratar de um filme profundamente alegórico.

Vejo uma metáfora sobre a arte e o trabalho artístico: o artista como bufão, a arte como uma paixão. Essa paixão, no entanto, é artificialmente produzida a partir do zero – elemento que dialoga diretamente com, pelo menos, outros dois filmes da mostra, Pracinha de Odessa e O Tradutor em que prevalece o imaginário do tradutor. A criação responde a um desejo, a uma vontade íntima de que algo exista para mediar a relação com o mundo. Ou seja, a personagem feminina é produto do imaginário da personagem masculina, produzida justamente para dar conta de um desejo interno a ele. E ela torna-se a perspectiva de superação desse universo de solidão e a centralidade do desejo dos dois, pelo qual eles lutam.

Reiterando um lugar já muito explorado pela ficção industrial, a mulher está diretamente associada a “amor” e a “felicidade”, da mesma forma que o palhaço mau repete o vilão absoluto, com relação ao qual a mocinha pode apenas se desiludir. Mesmo num ambiente alegórico, se estabelece um caminho muito claro e direto para essa “resolução” dos eventos. A relação das personagens não evolui do estado inicial de deslumbramento em que se vê a personagem. A ideia de “relação” se vê destituída de toda sua complexidade e perde seu sentido de um processo interminável de troca.

Não apenas o filme reitera um entendimento profundamente idealizado (e assim frustrante) da criação artística e da relação afetiva, como desperdiça seu minucioso trabalho de narração para afirmar um sentimento profundamente romântico e ingênuo com relação à arte. Para meu supremo desgosto, o amor e a simplicidade não dão conta das complicações contemporâneas.

João Pedone

Nina está na Mostra Cinema em Curso 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Memória dela, memória nossa

memoria da memoria

Assisti a esse filme e pensei (não sem uma dose de delírio, afinal, estamos falando de “desbunde”): “Está aí um caminho de encontro entre os realizadores caseiros com as possibilidades de expressão estética!”. Paula Gaitán fez, ao mesmo tempo, muito e nada além do que qualquer realizador diletante faria: reuniu as pessoas próximas dela para mostrar o que havia gravado e guardado sem rebuscamentos plásticos evidentes, contando apenas com as características físicas do suporte.

Falando como nós, os hoje como nunca, capazes materialmente de registrar tudo ao nosso redor, em certa medida ela nos supera: pelo dispositivo adotado nesse “egodocumentário”, ela mescla os interesses íntimos (muito próximos aos que nos movemos a reencontrar quando revemos os registros audiovisuais antigos de aniversários ou férias em casa) oferecendo e também construindo um prolongamento de tempos e espaços entre seus interlocutores no mundo diegético e os espectadores atrás da tela.

Seja pelas contextualizações pontuais do passado histórico, seja por comentários sobre o que envolveu os momentos de captação de imagens específicas, ela coloca o público como parte daquela apreciação familiar dos registros esparsos, nos torna unidos com as pessoas que em certo momento descobrimos serem seus filhos, uma vez que como eles parecem demonstrar, também vemos aquele material pela primeira vez, e somamos a curiosidade meramente voyeurista (inerente do cinema, mas em certa medida só possível com uma sensação de viver certo pacto implícito próprio da intimidade) ao interesse cinéfilo, de procurar por expressividades amplas, que possam estar nas imagens e sensações resultantes de sensibilidades incomuns, com algo de extraordinário, no sentido etimológico do termo: para além dos indicadores das trivialidades cotidianas, mesmo lidando com elas.

O caminho que apontei no início do texto: tanto se fala na contemporaneidade como período histórico em que as fronteiras entre imagem pública e imagem privada, se confundem, se borram ou são literalmente derrubadas, talvez o curta aponte o lado mais positivo de um cenário correntemente tratado como apocalíptico: a chance de executar uma construção de memória que é igual e sinceramente espontânea e construída, acidental e intencional, intuitiva e consciente.

Honestidades e liberdades factuais e criativas. Alternativa possível aos aficionados por gravar algo que ultrapasse os acidentes cômicos e/ou emulações televisas vistas no YouTube, se for repetida e gradualmente “distorcida”, reinterpretada, aos sabores artísticos e possibilidades técnicas de cada realizador, por ser livre sem ser negligente, deixar à mostra o que da mesma forma também podemos abraçar e abarcar: as músicas que ouvimos, os espaços que conquistamos, as pessoas às quais nos afeiçoamos.

Rafael Marcelino

A Memória da Memória está na mostra Cinema do Desbunde 2