DAMIANA

Quase como um vírus

Exibido na sessão de abertura do Festival de Curtas e programado na Mostra Latino-Americana 5, “Damiana” mostra a força que o cinema colombiano tem. É lento e deixa o espectador suspenso numa dúvida, desnorteado: o que está acontecendo, afinal?

A obra traz uma trama simples; são garotas num acampamento. Mas então, quando se entende o motivo pelo qual elas estão lá, alguma coisa quebra. Talvez a inocência aparente que é criada para elas? Ou o conceito de “inocência” que vai sendo deturpado aos poucos? Elas são meninas, seja lá o que fizeram ainda são crianças, e até que ponto uma atitude não é, na verdade, atravessada pela sociedade?

Falando em sociedade, é importante pensar na instituição social mais importante, que é a família. Em um mundo no qual valores estão sendo fragmentados, relações chamadas de líquidas, o sujeito entra em crise, mas e o papel da família nisso tudo? Assim como Damiana, nós esperamos.

Assim como Damiana, nós esperamos por um apoio. E, quando ele não vem, machuca.

“Eu tenho duas tetas. Uma com leite e outra com merda. E eu estou cansada de dar só leite pra vocês.” O filme é um aviso. De que sim, você é autossuficiente. Na real, é um soco na boca do estômago; se você não é autossuficiente, vai aprender a ser!

A linguagem transpassa um tom de que “algo de ruim vai acontecer”, marcado pela trilha do gênero de suspense. Mas, enquanto isso, o tempo das cenas é longo, sem muita ação; não prepara para esse soco. É um desfecho simplesmente opressor. Opressor no sentido de “caraca!”.

Dirigido por Andrés Ramírez Pulido, o filme é recheado de detalhezinhos: a pulseira para o pai, a falta de fome etc. “Damiana” toca em vários pontos de forma muito sutil. Questões que ganham força na contemporaneidade. Faz refletir até mesmo no limite entre chamar a atenção e um gesto que pede ajuda. Essa é uma obra que entra quase que como um vírus na nossa subjetividade.

(Cauê Vinicius)

MINHA ÚNICA TERRA É NA LUA

Os “eus” que interpretamos

Uma atriz (Gilda Nomacce) interpreta Sergio Silva, o diretor. Mas, às vezes, o diretor interpreta ele mesmo. E, assim, respondem para Gabriel as 36 perguntas que fazem com que casais criam uma intimidade a ponto de se apaixonarem. (Sério, se você não sabe dessa matéria, pesquisa aí. Inclusive tem um casal que está casado e que se conheceu fazendo o teste com essas 36 perguntas.)

O filme, “Minha Única Terra É na Lua”, exibido na Mostra Brasil 1, poderia ser um flerte com “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho, no qual se mistura a atuação com relatos reais. Mas, aqui, fala-se de paixão; quando estamos apaixonados, nós mesmo não interpretamos outros “eus”?

O corretor automático me impede de escrever eu no plural, ele me acusa com aquela linha estranha vermelha embaixo da (não) palavra. A sintaxe não me permite. Mas a linguagem cinematográfica permite mostrar esse recorte que a obra retrata. Aquele momento em que estamos nos apaixonando, então começamos a despertar pontos da nossa personalidade que ficam adormecidos enquanto estamos sozinhos; quando estamos numa relação, a pluralidade da nossa subjetividade aflora. Quase como uma máscara feita da nossa própria matéria para parecermos mais interessante, ou algo do tipo.

Essa obra traz um voyeurismo seco. O cinema permite. E Sergio Silva explora isso. Nós vemos um casal se apaixonando e é prazerosa essa sequência. Instiga, o que torna tão real cada um desses personagens. Eu gostaria de me sentar na frente do Gabriel e do Sergio 1 e 2, e fazer 36 perguntas para eles.

Entretanto, carrego uma dúvida: por que uma atriz foi escolhida para fazer o papel de um homem? É um estímulo para levantar questões de gênero, ou representatividade, ou simplesmente porque a atriz é espetacular? Não sei.

Qualquer tentativa de destrinchar uma obra é inválida, até porque o processo criativo é atravessado por questões que nem mesmo o realizador teve intenções de tocar. Mas o dispositivo do filme me suspendeu em tantos sentimentos.

Sergio diz pra Gabriel que ele tem um espírito aventureiro. Gabriel tem um espírito aventureiro porque topou aceitar isso. Topou se sentar na frente de um desconhecido com a predisposição de se apaixonarem. Mas, afinal, ele foi aventureiro quando disse “ok, eu aceito fazer essa perguntas” ou quando ele simplesmente deixou a paixão entrar? E as lágrimas desse final…

(Cauê Vinicius)

O ANIMAL PREFERIDO DE DEUS

Injustiça e impunidade

O animal preferido de Deus tem o mundo feito pra ele e nada contra. Todos a servi-lo e a perdoá-lo pelas suas próprias misérias, o melhor de dois mundos. Esse suspense uruguaio, dirigido por Marco Betancor e Alejandro Rocchi, está na Mostra Latino-Americana 3, e tem no clímax final a grande sensação de injustiça e impunidade como consequência de uma situação extrema, mesmo quando a almejada sensação de justiça para o espectador acompanharia a consolidação de um crime de vingança pessoal.

O filme começa com um plot de suspense em uma casa isolada. Retornando para casa à noite, uma das protagonistas encontra uma chave na porta. Desconfiada, ela volta para o carro e liga para o marido/namorado. Esse início pré-título serve bem ao propósito de inserir o gênero suspense.

Apesar disso, o filme tem uma linha editorial que logo reconstrói o plot inicial. Deixamos de ter a sensação de invasão na casa para sermos conduzidos a uma possível traição do protagonista junto à estranha que entra para tomar um chá. A presença da estranha o deixa acuado e as mensagens no celular, ainda durante o chá, atestam que algo aconteceu.

Nesse momento, a personagem estranha, partindo de uma análise dramatúrgica, está com status superior, pois tem clareza do que está fazendo e possui informações que, além de desorientarem o espectador, ameaçam e acuam o único homem da trama, que passa a ser personagem de status inferior, acuado, impotente.

O desfecho é uma ação planejada, de catarse pessoal da moça. O animal preferido de Deus novamente se livra de consequências mais sérias para si, mas mostra bastante covardia e impotência logo aos 4 minutos, depois de o título anunciá-lo. Ele é o verdadeiro protagonista do curta.

Um protagonista em violência, covardia, impotência, fraqueza, machismo. A continuidade de sua vida é lamentada pelo espectador e a continuidade de sua existência na nossa memória nos agride. Pior de tudo: é uma situação extremamente real, vivida e revivida todos os dias por mulheres no mundo.

Para um suspense, há uma ambientação sonora muito competente de Gabriel Guerrero que precisa ser destacada: todas as nuances, crises, foleys e sons diegéticos estão, ora com realismo, ora com expressividade, brilhantemente bem adaptadas. Não há nenhum bom suspense que não tenha trilha sonora excelente.

Não é só técnica; é narratividade utilizar som diegético e não-diegético, e saber quando e onde utilizá-los. Gabriel Guerrero desfilou suas habilidades sonoras nesse curta que utiliza um meio não usual de fazer suspense, que não é

sobrenatural e sim real, e que projeta o debate em torno de questões muito atuais e urgentes.

(Rogério Henrique Gonçalves)

TRILHOS

Desejo que ora se esconde, ora se revela

Exibido no Panorama Paulista 2, o curta dos diretores Lucas Hossoe e Luiz Fernando Coutinho lança luz sobre o fenômeno dos encontros homossexuais nos vagões dos trilhos de trem abandonados de São Paulo. Mais do que isso, lança luz sobre privacidade conjunta e códigos informais de conduta.

Nesse aspecto me parece residir o único grande erro do filme: ele se subestima quando se nomeia “Trilhos”. Não é ou não deveria ter um título previsível, sem mistério, que não ecoa em nenhum momento a profundidade que a obra demonstra. Pode parecer preciosismo, mas não é; o curta fala mais do que apenas o local no qual acontece coisas diferentes.

O filme fala sobre como a privacidade de um grupo funciona em termos de códigos informais de conduta. Ali é um local abandonado no qual pessoas vão pra terem relações de todos os tipos, longe do olhar massivo, mas aberto àqueles que sabem como as coisas funcionam ali. É um local de certa forma protegido.

Quando o protagonista leva um homem para sua casa, enquanto este dorme o sujeito estranho encontra fotos de pessoas dos trilhos em relações; o voyeurismo do protagonista será julgado. Até então, ninguém o proibia de olhar, mas registrar algo que era para se manter escondido, sem autorização, é algo bem questionável.

A ambientação é bem feita em todos as cenas, e a fotografia sempre coerente com a profundidade de campo e as trocas conscientes de foco durante as subjetivas do personagem. A cena de sexo tem uma luz bem azul, caracterizando um ambiente noturno reservado, e contrastando com a expressão de um desejo bem ardente que pode e deve escandalizar os mais reservados.

Faz parte: a trama tem de demonstrar a força do desejo que ora se esconde e ora se revela, como um fluxo violento de um rio que acelera e se contém de acordo com o momento e a situação.

O protagonista, ao final, paga o preço por sua audácia de contrariar um código informal de conduta que protegia a todos, já que ele passa a ter a sua própria imagem exposta em fotos para todos os que frequentam os trilhos.

É algo a se pensar. Até onde podemos exercer um voyeurismo saudável que não violente também os direitos do outro, mesmo nos ambientes mais informais?

(Rogério Henrique Gonçalves)

DEMÔNIA – MELODRAMA EM 3 ATOS

Subversividade na família tradicional

O ousado roteiro de Fernanda Chicolet e a direção conjunta de Cainan Baladez trazem um humor escancarado. Exibido nos programas Humor 3 e Mostra Brasil 5, o curta paulista “Demônia – Melodrama em 3 Atos” é, provavelmente, a obra mais subversiva do festival. Tanto em técnica quanto em roteiro, o curta demonstra uma coragem e uma abordagem humorística que adentram o campo do discurso político-religioso, de sociedade e de establishment familiar.

No que concerne ao humor, há a abordagem escrachada mirando claramente um aproveitamento cômico do chamado “barraco na rua”, mas também há os pontos irônicos mais sutis que posicionam a tradição da família brasileira como canal de hipocrisia, montada pra ser algo que não se confirma na realidade diante das expectativas sociais e religiosas.

O curta-metragem ataca, pelo humor do subtexto, o modelo monogâmico e a própria noção vigente cristã de casamento. Mostra que as crises que afetam a traição de um marido que tem experiências homossexuais são, por vezes, menos traumáticas do que o discurso tradicional-religioso aponta. Uma vez que o peso individual para a traição se mostra apenas verbalizações de fundo falso, qualquer benefício não calculado oriundo dali resulta facilmente em passaporte para a aceitação plena do novo status a três.

A religiosidade cristã, inclusive, aparece bem fraca, uma vez que sua adaptação ao desfecho lucrativo e de fama é também muito fácil, contornável. Atos falam mais que palavras e, ainda que as palavras de proibição e repressão sejam muitas, o comportamento não as acompanha. Os paralelos com a realidade são todos cômicos e escrachados, mas não são absurdos: de fato, os comportamentos estão sob controle mais das suas consequências do que do discurso que os tenta gerenciar. A lei pela lei não significa controle, assim como nenhuma repressão pode funcionar quando a ação não é exposta. Isso explica contextos de traição e hipocrisia.

A técnica do filme é subversiva per si. Não é usual se utilizar de montagens e edições anticlássicas, que assumem o baixo custo de produção e que, ao invés de trabalhar com sutileza de transições de planos, fazem propositadamente uma passagem marcada, notada, explosiva. Apesar disso, o primeiro ato mostra maestria em decupar classicamente com um ótimo plano-sequência. Assim, temos a certeza de que subversividade técnica fora escolha de linguagem para acompanhar o estilo humorístico ímpar, tudo isso sem poder ser menosprezado por aqueles que pregam apenas uma normatividade para um cinema técnico.

Os atores também merecem menção. Eles conseguem uma naturalidade incrível no que fazem e seus personagens convencem até demais. Dá aquela impressão “problemática” e gostosa de achar que o ator é o personagem. Eles parecem bem humanizados em suas contradições pessoais e em seus pontos de ancoragem

ética. A performance disso tudo tem traços e expressões muito facilmente reconhecíveis sem necessitar de grandes esforços para encontrar paralelos na realidade. Até o policial (agente da lei) consegue arrancar risadas com o patético esforço em florear a sua “fala oficial”, para a imprensa (aquele que muda o comportamento quando está sendo olhado). Olha aí a lei e a ordem representadas com comportamento tosco, advinda pelo efeito do olhar do outro, novamente.

Essas características tornam o filme próximo do gosto popular; ele namora a linguagem dos memes de internet e consegue expressar muita coisa junto a um roteiro que tem algo próprio e importante a dizer em subtexto. Trata-se de uma comédia politizada que contrabandeia entre as risadas uma ideologia e uma posição, contra o discurso que normatiza relações sociais hipócritas tal como o casamento monogâmico heteronormativo e seu status quo.

(Rogério Henrique Gonçalves)

O TEMPO DOS ORIXÁS

Poética da subjetividade

Os filmes do programa Mulheres Negras 1: Mergulho Ancestral já mostraram que têm em comum, para além do óbvio, o quanto as diretoras colocam de si mesmas no seu trabalho. A produção baiana “O Tempo dos Orixás” marca fortemente essa característica de subjetividade de autor, se assemelhando em seu propósito artístico-político a “Mumbi 7 Cenas Pós Burkina”. A diferença é estética: enquanto “Mumbi” se vale de experimentalismos, “O Tempo dos Orixás” explora um lado religioso e místico, mais “categorizável” como ficção proriamente dita, mas que nem por isso deixa de ter aquele tom pessoal em que enxergamos a autora projetando sua própria infância na tela.

A forma como a criança Lili ocupa quase sempre o centro da tela/câmera diz que devemos nos aproximar dela pra entender sua atmosfera. Essa escolha funciona porque, mesmo que a atriz mirim pareça às vezes estar pouco à vontade, a ambientação sonora e a construção fotográfica do filme funcionam tão bem que a engrenagem de fato consegue criar essa atmosfera peculiar, no qual a realidade pessoal está circunscrita por religiosidade e fenômenos místicos.

Os atores secundários que encarnam parentes ou mesmo os próprios orixás valorizam nossa protagonista porque são feitos pra construir essa ambientação em torno dela e do que ela vive. Legítimos canais auxiliares de expressão individual. O tempo é dos orixás porque é o tempo de Lili em meio à sua inocência se criando, se orientando, se desenvolvendo em meio às participações recorrentes das entidades.

Os créditos à mãe, no fim do curta, fazem intuir Lili como a diretora do filme da sua vida, misturando novamente realidade ficcional/realidade material e ocupando, na sucessão de imagens, o espaço visual que o rosto da menina tomou na tela durante a maior parte do tempo. Aqui parece haver um espaço infindável para metaliguagens. A dita barreira entre ficção e realidade não precisa existir; em psicologia e em arte, é melhor e mais útil quando não existe.

A produção técnica faz o espectador visitar a religiosidade de perto; a fotografia e os recursos de áudio mapeiam bem um espaço de atuação e ainda um espaço off. Conseguimos enxergar as rodas de umbanda mesmo quando vemos planos médios mostrando apenas um terço dessas rodas, porque temos a competente estereofonia desenhando o resto. É assim a técnica do filme, sempre optando por mostrar de perto, colocar junto, montar um percurso de ficção subjetiva claramente autoral, perpassada por uma religiosidade popular. Uma obra poética que requer e explora grande sensibilidade.

(Rogério Henrique Gonçalves)

A CANÇÃO DO ASFALTO

Você pode sentir falta em seus sonhos

O curta paranaense “A Canção Do Asfalto”, de Pedro Giongo, exibido na Mostra Brasil 3, conta a história de Chen, um jovem chinês que acaba de mudar-se para o Brasil, a fim de tentar a vida, assim como muitos outros. Chen mora com seu tio, e o ajuda vendendo pastéis em seu boteco. “A Canção do Asfalto” debate o tema da imigração sem nenhuma maciez, principalmente por tratar a dureza da mudança bruta com tamanha aceitação e normalidade.

Chen muitas vezes se perde no movimento da rua, e seu tio o vê como folgado, preguiçoso. Ficamos compadecidos por Chen, e compadecidos por seu tio, também. Pois, provavelmente, tudo o que Chen passa gerações e gerações de famílias chinesas já passaram, de maneira muito mais dura, com uma possibilidade muito mais debilitada de comunicação com a vida que é deixada para trás. “A Canção do Asfalto”, então, pincela sutilmente a questão geracional da família oriental.

O momento que Chen tem para si é durante a noite, quando pega sua bicicleta e percorre as ruas. Talvez uma das únicas atividades em comum com a China. Em um momento, lhe é perguntado; você sente falta da China? O trabalho não me deixa sentir falta. Você pode sentir falta em seus sonhos.

Podemos dizer que a canção que vem do asfalto é como a falta que a China faz nos sonhos de Chen. Seus momentos de liberdade dentro de uma vida de prisão. Aprisionado num lugar fora de sua escolha, aprisionado numa língua que desconhece, aprisionado num país em que a economia está em crise, num momento em que se deve fazer a vida.

Percebemos o desconforto de Chen em relação a seu futuro no momento em que encontra com um amigo na calçada e conversam sobre um colega em comum, que está se saindo bem. Chen não demonstra nenhum interesse em vê-lo ou saber como está. A pergunta que fica: é por medo de não ter sucesso como seus amigos, ou por medo de ter? Por vezes, ter sucesso significaria não voltar.

É a essa dureza que me refiro quando escrevo que “A Canção do Asfalto” não amacia a nenhum segundo.

E é justo que não amacie, como faz o longa argentino “O Futuro Perfeito”, da alemã Nele Wohlatz, que conta a história de Xiaobin, uma jovem chinesa de 17 anos que se muda para a Argentina sem saber uma palavra de espanhol. O filme começa com frases absurdas que Xiaobin deve aprender, uma constante repetição sem sentido aparente, até entendermos que ela está numa aula de espanhol. Ambos filmes nos fazem refletir sobre como seria deixar tudo para trás, e cair num novo mundo, numa nova língua, com costumes e maneiras tão diferentes.

Perdido aqui, neste novo mundo, Chen se perde entre os milhares de passantes nas calçadas. A cidade o engole e, sem a possibilidade de gritar para alguém que o entenda, saímos do filme com a impressão de que, além do asfalto, somos os únicos confidentes possíveis para angústia de Chen.

(Louise Belmonte)

MUMBI 7 CENAS PÓS BURKINA

Fragmentação e diáspora na subjetividade negra

O título do curta “Mumbi 7 Cenas Pós Burkina” — produção paulista exibida no programa Mulheres Negras: Mergulho Ancestral é difícil de compreender à primeira vista. Pudera: trata-se de uma composição de significados fragmentados que só fazem sentido quando juntos, e que remete a cenas pós-diáspora negra. A diretora Viviane Ferreira consegue inserir, em todo o processo experimentalista cuja técnica domina, as angústias de uma personagem cineasta.

Isso está de fato mostrando que a própria diretora experimenta uma forte expressão subjetiva como autora, ao mesmo tempo em que se situa no mundo.

Essa situação, como já fora citada, é diaspórica. A sensação de estar em um lugar que não foi construído pra si, em um espaço que não é seu. A caótica montagem inicial pré-título situa as origens, o lugar inicial do espaço negro (talvez Burkina Faso?) cuja transição pelo rapto histórico criou esse lugar do meio na subjetividade negra, na época sem perspectiva, e hoje sem garantia de futuro.

Essas contingências situam a subjetividade da negritude brasileira num lugar de incertezas que faz muitos duvidarem de sua capacidade, de suas próprias intenções, de seu pertencimento em um local tão branco, tão elitizado como é o cinema. Do que a próxima obra irá falar? De arte cinematográfica ou do lugar de onde veio e do que quer passar? A arte como política é a boa crise que surge e condiciona o modus operandi da negra cineasta.

A trilha sonora experimentalista contribui para o tom da obra. Não alivia o sentimento em momento algum e mantém o lugar do meio pela técnica; há tanto o atabaque ancestral próprio das religiões de matriz africana quanto a tonalidade daquele som liso-progressivo de um teclado que explora internalidade, quase como que num devaneio ou reflexão profunda, só que advinda de um outro lugar.

Essas duas sonoridades, criadas para serem panos de fundo, aqui são usadas simultaneamente e competem por atenção do espectador, fazendo com que você se identifique ou se torne muito confuso sobre esse processo. Sobre qual das impressões se terá, vai depender, na verdade, do arcabouço existencial a que o próprio espectador poderá recorrer para formular esse encontro artístico e político com a própria subjetividade.

(Rogério Henrique Gonçalves)

MAIS UMA DONA MARIA

A violência dos detalhes

O cinema de fluxo é um estilo não muito explorado em sua totalidade. É mais comum vermos cineastas que tangenciam essa linguagem, sem se aprofundar ou construir uma narrativa que esteja inteiramente de acordo com o estilo. Talvez por medo de construir uma trama enfadonha e longilínea, os realizadores evitam percorrer pelos caminhos do cinema de fluxo, que foge da construção clássica cinematográfica, ao abandonar a narrativa como foco primordial da produção, situando-se no naturalismo estático e realista dos sentidos. Pensar a sensibilidade como trama vital e trazer esse “sensível” para fora da tela, tirando cada espectador de sua catarse pessoal: isso é o cinema de fluxo.

Foi uma grande surpresa me deparar com o rápido e dilacerante “Mais Uma Dona Maria”, exibido no programa Oficinas Brasil e dirigido por João V. Guimarães. O curta é fruto da oficina paulista Cine Inclusão. O resultado é um filme independente, periférico, simples e lancinante.

Após assistir aos filmes do programa Oficinas, notei que a grande maioria das obras eram documentários, dando vazão para duas animações, três ficções e um pseudodocumentário. “Mais Uma Dona Maria”, justamente, era esse curta que misturava a linguagem documental com uma ficção naturalista e humanista, explorando uma narrativa rápida, com um clímax surpreendente que ocorre por trás da cena. Um clímax intangível, implícito e — infelizmente — realista.

O filme retrata Maria Aparecida sendo entrevistada por um grupo de documentaristas. É a primeira tomada, e Maria explica sua origem — como saiu do Nordeste, veio para São Paulo e participou da ocupação do morro de Heliópolis, onde mora até agora com seu filho mais novo –, fala brevemente sobre seus quatro filhos, sendo que três saíram de casa quando casaram e Davi, o caçula, apresenta uma revolta por morar em uma comunidade pobre; fala, também, sobre sua relação tranquila com Heliópolis, o lugar onde mora desde que chegou à cidade grande, e sobre sua vivência diária.

Em meio à entrevista, Dona Maria é interrompida algumas vezes por barulhos de fogos, que irrompem repentinamente, e por barulhos de carros que passam perto de sua casa com música alta. Ao passo que os ruídos cortam a entrevista, sentimos uma certa tensão crescente que preenche o único enquadramento do filme. Maria está sentada em seu sofá respondendo ao questionário com calma e um tanto de descontração.

A mulher parece se preocupar quando fala de Davi, o mais novo, e suas influências pelo bairro. Davi não gosta de onde mora e vive apresentando comportamentos preocupantes, inclusive conviver com um grupo de amigos que sua mãe não hesita em denominar de “pessoas ruins”. Dona Maria expressa sua inquietude aflita em relação ao caçula, porém continua divagando sobre o lugar onde mora, afirmando com convicção que nunca encontrou problemas com ninguém da comunidade, nem mesmo com o “comando” — grupo de traficantes que controla o morro de Heliópolis.

Porém, num súbito aterrador, a narrativa do filme muda completamente. Logo, conseguimos entender que, na realidade, aquilo não é um documentário. Porém, a atuação naturalista é feita com tamanha maestria que, devo admitir, ainda fiquei com o pé atrás quando tentei me convencer de que, na realidade, estava assistindo a uma ficção.

Dona Maria grita. A câmera continua fiel ao seu único enquadramento. Os créditos surgem, sobrepondo um choro desesperado que acompanha a projeção até o fim.

O assassinato de jovens negros é a medula do curta. Mais uma Dona Maria perde seu filho para a violência de um modelo social desigual, no qual as insurgências da classe trabalhadora e de baixa renda sofrem retaliações diárias e acabam caindo no ostracismo, tornando simples rotina a bestialidade da agressão contra a população periférica.

“Mais Uma Dona Maria” consegue se transformar em uma metalinguagem em que a violência mora nos detalhes. Toda a discussão acerca da questão proposta pelo filme fica para cada espectador, que poderá refletir sobre a eliminação de uma parcela social graças à desigualdade. O cinema de fluxo foi tratado com maestria por jovens estudantes de uma oficina cinematográfica, trazendo para a cena independente e periférica uma visibilidade que faz jus à proporção da militância por trás de um pseudodocumentário.

(Gabriel Faustino)

O DIA DE JERUSA

Solidão, sensibilidade e raça

Exibido no programa Mulheres Negras 2: Identidade Polifônica, a produção paulista “O Dia de Jerusa” aborda a solidão da mulher negra com uma sensibilidade cotidiana que mora nos detalhes. Dirigido por Viviane Ferreira, o filme narra a história de Jerusa, uma senhora que está fazendo os preparativos para seu aniversário de 77 anos, quando recebe a visita de Silvia, uma pesquisadora de opinião que aplica questionários sobre sabão em pó. A pequena visita, estimada para durar apenas 15 minutos, se estende ao longo da narrativa, quando o encontro das duas faz emergir as memórias de um passado translúcido da mais velha.

O que poderia desaguar em um curta de sentimentalismos, sobre a solidão da velhice de uma protagonista negra, desvia sua trama para se apegar a passagens que expressam a melancolia de um modo bucólico, tratando o aniversário de Jerusa com uma leveza cinematográfica emotiva, porém sem se desviar das questões abordadas e deixar sua essência no ostracismo.

Todos os atores que aparecem na tela são negros. Desde Léa Garcia, que faz o papel da protagonista, até coadjuvantes que não apresentam fala alguma. Isso faz emergir uma questão vital para o programa em que o filme é exibido. Mulheres Negras tem curadoria das próprias realizadoras dos filmes, que julgaram que suas obras não haviam circulado o suficiente.

“O Dia de Jerusa” é um curta de 2014 que ganha nova visibilidade no 28° Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, fazendo com que suas questões sensíveis entrem em voga na discussão sobre mulher e raça.

Embora o filme de Viviane Ferreira exagere um pouco no pedantismo do roteiro, buscando desanuviar a questão abordada com passagens que tratam a simplicidade com uma obviedade desconcertante, “O Dia de Jerusa” ainda consegue comover, talvez graças à atuação emotiva de Léa Garcia, que expressa uma melancolia implícita na simplicidade de seus gestos, ou talvez graças ao modo com que a diretora explora o peso da solidão, com a leveza de uma tarde repleta de bolos e devaneios sobre a vida.

(Gabriel Faustino)