Amor obscuro

Em Amores Passageiros, de Augusto Canani, partimos das imagens pálidas da cidade, de seus viadutos pichados, para adentrar a escuridão das galerias subterrâneas do esgoto, junto com o recluso Benites (Osmar Prado), e descobrir que seu trabalho solitário e distante do mundo espelha sua vida, que está prestes, estranhamente, a se transformar.

Lá embaixo, ele fica admirado com a descoberta do cadáver de uma bela garota. Esse acontecimento reativa a sua vontade de viver um relacionamento, trazendo um facho de luz à sua jornada na escuridão. Assim, nos tornamos quase cúmplices desse homem e de seu amor.

Amor que age como um sopro de vida para o protagonista. Paradoxalmente, é na morte que ele encontra uma razão para reviver. Dessa forma, percebemos o quanto ele mesmo era um “morto-vivo”. Mas o tema, tratado com sensibilidade, nos inspira compaixão em vez de repulsa pelo protagonista.

Afinal, nos afeiçoamos a Benites em sua tentativa de aplacar a solidão. Agora, ele se preocupa novamente em arrumar a casa, começa a consertar a porta e até compra um vestido para a sua “esposa”. As mudanças chamam a atenção dos colegas de trabalho e dos vizinhos, mas é o mau cheiro vindo de seu apartamento que se torna um problema para a sua necessária discrição.

O terceiro curta de Augusto Canani — ao contrário do seu anterior, o curioso Amigos Bizarros do Ricardinho (2010), que apostava em uma variedade de personagens e situações — investe no isolamento do protagonista, além da harmonia entre os enquadramentos, da paleta de cores e da maquiagem, que contribuem para o tom lívido e mórbido da história.

O diretor também se utiliza, para esse propósito, da trilha sonora que evidencia a cortante solidão dos ambientes, de uma interpretação de gestos e olhares, e em situações mais íntimas, como quando Benites e a falecida assistem à televisão juntos ou quando ele cuida da aparência dela.

Por fim, Benites, diante da chance de terminar seu relacionamento, escolhe ser fiel a ele, uma escolha difícil, mas coerente com a fatalidade de seu obscuro amor.

Marcelo Félix Moraes

Amores Passageiros está na Mostra Brasil 9. Clique aqui para ver a programação do filme

Reflexões sobre o material fílmico

Três filmes da Mostra Panorama Paulista 3 levantam algum tipo de reflexão sobre o material fílmico, seja através da metalinguagem ou do registro documental, e trazem uma discussão interessante sobre as criações, os objetivos, as formas e os caminhos das produções.

Meta, de Rafael Baliú, é o mais explícito por mostrar o diretor dentro do próprio filme que dirige e as discussões que envolvem a própria produção do filme e de seu objetivo. A premissa acaba por proporcionar momentos hilários nos quais personagens e realizadores se confundem.

Quando o corte pedido pelo diretor em cena não é realizado pelo câmera, por exemplo, aquele precisa sair de quadro e fazê-lo sozinho. Ou quando o microfonista tem uma opinião a apresentar, este aparece e redireciona o microfone para si mesmo. Fechando astutamente a proposta, a meta do filme e a do diretor/personagem se confundem como se confundem a realidade e a ficção dentro do próprio curta.

Em Piove, il film di Pio, de Thiago Mendonça, conhecemos um pouco da história de Pio Zamuner, diretor dos 12 últimos filmes de Mazzaropi. Por meio de uma conversa com o cineasta em um bar, começa uma viagem ao passado da Boca do Lixo, reduto de Pio. À medida que retoma as memórias daquela época, o diretor acaba por interferir na própria gravação do documentário, sugerindo enquadramentos, posições de câmera e até a mise-en-scène dele e do diretor.

Dessa forma, é incrível que possamos conhecer um pouco mais de Pio e de seu trabalho não apenas por suas palavras, mas por meio da própria feitura do filme a que estamos assistindo. Ao compartilhar a direção do filme com o próprio objeto do registro, o diretor acaba por dar mais vida ao cineasta em seu filme, realmente o filme de Pio.

Já em Cine Camelô, de Clarissa Knoll, um cineasta-ambulante vende filmes de curta-metragem de acordo com o interesse de cada um dos seus clientes. Com uma câmera apontada para um fundo que alterna entre algumas paisagens, é possível retratar as histórias das pessoas que vivem um cotidiano apressado e distante do cinema.

Com uma estrutura de produção muito simples, mas com o intenso carisma de Maurício de Barros, o cineasta que também atua, é possível criar desde uma fantasiosa luta entre um samurai e um leão até um melodrama de época. Com disposição e imaginação, um cinema que retrata e se aproxima do público, criando um material especifico para cada pessoa.

Três propostas que ampliam a discussão sobre as formas e os conteúdos cinematográficos criados e os objetivos intrínsecos a cada uma delas, suscitando outros caminhos para o material fílmico.

Marcelo Félix Moraes

Meta, Piove, il Film di Pio e Cine Camelô estão na Mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui para ver a programação dos filmes

Sociedades de imagens

Nos dias em que o vazamento de um vídeo íntimo registrando o ato sexual pode render até uma capa na revista Playboy, Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, de Eduardo Kishimoto, vem a calhar. A discussão sobre privacidade e suas violações não é nova. Ela aumenta a cada dia, conforme o acesso o crescimento do compartilhamento digital.

De celebridades a pessoas comuns, todos expressam algum tipo de preocupação com relação a registros íntimos, seja uma inocente foto da namorada nua, ou um vídeo inteiro contendo as piores (ou melhores) sacanagens que só quatro paredes conseguem guardar.

O curta de Kishimoto envereda por um caminho fértil e pouco explorado. A popularização de dispositivos produtores de imagens, sejam celulares, câmeras portáteis, tablets ou câmeras fotográficas profissionais, gerou um exército anônimo de fotógrafos e filmmakers. Um acidente de moto, alguém sendo abordado pela polícia, amigos numa festa etc. Nada escapa a esse olhar anônimo e constante.

Foi Kleber Mendonça Filho quem fez um filme muito interessante sobre esse fenômeno. Luz Industrial Mágica (2008) mostra os espectadores do Festival de Cannes munidos de seus dispositivos digitais prontos a capturar o pixel mais atraente do ator do momento. O último plano do filme de Kishimoto lembra o filme de Kleber Mendonça; apesar das diferenças, existe no rosto dos personagens nos dois filmes o mesmo fascínio produzido no momento do registro da imagem, seja foto ou vídeo.

No caso de Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada o vídeo surge como o perseguidor implacável de quem teve sua vida íntima divulgada e reproduzida aos milhares na internet. A garota protagonista parece se render enfim aos seus perseguidores, munidos das mais diversas câmeras, e passa a oferecer aquilo que eles querem: sua nudez despudorada.

O curta aborda um tema atual que ainda produzirá muitos debates acerca da liberdade daquele que captura a imagem e da liberdade daquele que é capturado. A opção pela gravação em diversos formatos e qualidades foi muito interessante. Estamos acostumados às imagens de qualidade baixa difundidas na internet; ver essas imagens projetadas na tela grande revela muito acerca da produção digital contemporânea.

A unidade menor, o pixel, explodindo em planos tremidos, fora de foco e mal enquadrados são parte cada vez mais constante do universo de vídeos que consumimos. Seja pelo compartilhamento de amigos, seja em canais de distribuição como YouTube ou Vimeo. Claro que muito ainda irá mudar com o avanço da banda larga no Brasil (assim esperamos), e esse processo está longe de terminar.

Vale se perguntar, e foi o filme de Kishimoto que me despertou para essa questão: o que acontece quando essa liberdade do registro é usada para o “mal”? O que vemos em Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada é um bando covarde que deixa a pobre garota sem escapatória, cercada por todos os lados por mãos que seguram algum dispositivo.

Ela não tem outra opção a não ser ceder ao triste espetáculo produzido por uma turba insaciável por registrar imagens. É como muitos que ao assistir um show passam mais tempo tentando gravar algo no celular do que gravando algo na memória.

Renato Batata

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada está na Mostra Brasil 10. Clique aqui para ver a programação do filme

Reflexo do medo

O Duplo, de Juliana Rojas, é daqueles filmes assustadores por despertarem um medo de um tipo de maldade diferente. Maldade que encontrei em filmes de Roman Polanski, como O Inquilino (1976), apesar de o curta da diretora paulista não estabelecer essa relação. A maldade presente em O Duplo é uma maldade de outro tipo, aquela que pode estar adormecida dentro de qualquer um, até mesmo da pessoa de quem você menos espera.

É muito simbólico que uma professora do primário de um colégio católico seja afetada por essa influência maligna. Contribui ainda mais para o clima assustador e terrível do filme, completado também pelas crianças (crianças conseguem ser terrivelmente assustadoras). O som do colégio, das cantorias infantis, aquele som permanente de crianças e seus barulhos de meninice.

Esses barulhos do ambiente colegial conseguem ser tão perturbadores quanto o som do elástico batendo na pasta da professora de português, freneticamente. O ambiente construído vai se tornando gradativamente assustador e insuportável.

O Duplo se desenvolve sem mistérios narrativos. As alucinações, o sexo arisco, a transformação da professora angelical em espectro de maldade, tudo leva à mudança drástica da professora. O que é mais aterrorizante neste curta é que essa transformação gradual ocorre sem retorno.

Parece que desde o momento em que viu seu duplo, a professora foi capturada, apenas cedendo aos poucos àquela influência inevitável. A escolha de Sabrina Greve para protagonista não poderia ser melhor; existe algo de paralisante em sua face, olhos profundos que passam um sentimento de angústia e medo.

Não é necessário falar do talento de Juliana Rojas; além de notável, já é bem reconhecido. A direção segura, o ritmo de encadeamento dos planos, a escolha de enquadramentos perfeitos, a economia seguindo a receita “menos é mais”. Nas duas sessões em que assisti a O Duplo, a plateia ovacionou o curta-metragem. A direção madura e consciente de Juliana Rojas produziu um filme de “gênero”, sem abrir mão de escolhas estéticas e sem facilitar para ninguém.

A narrativa sedimentada nos detalhes, as interpretações dos atores, o desenho de som, o ritmo da montagem, tudo funciona organicamente, sem exageros nem apelações. A maldade presente em O Duplo assusta porque é parte da personagem, ainda que seu duplo, seu reflexo sombrio, mas parte dela. Como se existisse em cada um de nós essa faceta reprimida.

Renato Batata

O Duplo integra a Mostra Brasil 8 e a Semana da Crítica. Clique aqui para ver a programação do filme

A santidade de ser quem se é

Apesar de muitos avanços nas discussões sobre sexualidade e heteronormatividade, o debate sobre gênero no âmbito social e artístico ainda engatinha. Porém, temos aqui, na 23ª edição do Festival, um dos exemplos de obras que, poeticamente, colocam esse tema em pauta.

A Santa (La Santa) é um filme chileno do diretor Mauricio López Fernández, sobre a hermafrodita María, que é forçada pelo pai a encarnar a Virgem Maria em uma procissão da cidade onde moram. Segundo ele, talvez tamanha honra faça com que a filha seja “consertada”. Por sua vez, a “garota” (por falta de melhor artigo, substantivo e gênero) está em constante tensão com a decisão do pai e com o que ela representa, ou seja, apresentar-se oficialmente como mulher.

Para além do ambiente familiar, a religião parece ser um dado importante de pertencimento e aceitação na cidade de María. A discussão de gênero está situada, portanto, inevitavelmente dentro da religiosa: María não se sente bem naquela opção espiritual não apenas por não ter nada a pedir a Deus, mas também porque aquela Igreja não a aceita como ela verdadeiramente é.

Um caráter forte a leva a refletir para além de sua criação católica, e lhe traz a conclusão terrível de que para agradar ao pai e se tornar parte de um grupo, ela deve fazer uma escolha para a qual ainda não está preparada, visto que ambos os gêneros se manifestam na personagem, e ambos são igualmente aceitos por ela.

A arte e a fotografia do filme são bem sucedidos em retratar essa dubiedade da beleza de María. Vemos um belo rosto de menina iluminado pelo sol em um momento, e logo antes, em um plano mais aberto, seu figurino justo que evidencia a genitália masculina.

Não há, porém, nada forçado quanto a isso; estamos claramente diante de uma pessoa com um problema a ser resolvido, e não diante de uma aberração a ser observada com curiosidade. Essa sutileza deixa o filme mais bonito. Bonita também é a imagem de María como a santa; simbolicamente, ou talvez até ironicamente, uma personagem renegada representa justamente todo um grupo de pessoas que pedem benção e perdão.

Isabela Maia

A Santa está na Mostra Latino-Americana 3. Clique aqui para ver a programação do filme

Isto não é um filme de cowboy

À primeira vista, Cowboy, de Tarcisio Lara Puiati, é um registro de um personagem. Mas as aparências enganam e, aos poucos, aquilo que parecia ser verdadeiro é colocado em xeque. Em Homem-bomba (2009), por exemplo, sobre dois meninos que tentam sobreviver ao tráfico, o diretor abordava sutilmente a tênue fronteira entre o real e o não-real no desfecho. Em seu mais novo curta, o realizador mergulha de vez nesse universo.

No início, o espectador acompanha um personagem que se apresenta, em voz off, como um homem comum que, por vingança, torna-se matador profissional. Poucos minutos depois, ele conta outra versão da sua história. E depois outra. E outra. E assim por diante. Enquanto o texto narrado muda, as imagens do mesmo homem montado em sua bicicleta continuam em um plano-sequência.

O diretor confronta o espectador com essas diversas narrativas, sem deixar claro o que é ou não é real. O artifício é simples, mas a questão levantada pode ser ainda maior, na medida em que o curta pode ser compreendido como uma forma híbrida entre o documental e o ficcional.

Por um lado, as versões apresentadas pelo protagonista podem não ser necessariamente reais, mas ficções. Por outro, a história de Cowboy poderia, sim, ser verdadeira; ao ser recontada, explora-se a semelhança dela com a de outros tantos cowboys no mundo. Outra ainda: qualquer uma daquelas vidas poderia ser a dele.

Nesse sentido, o documentário deve somente expor as ações registradas com a tradicional presença do narrador? Deve alinhar-se com o que ficou conhecido como “cinema verdade”, a partir da concepção de Dziga Vertov de que a câmera capta a essência do real? Ou deve apenas sugerir visões de mundo, uma vez que é uma construção subjetiva de quem está por trás das lentes, como os filmes de Jean Rouch ou Eduardo Coutinho evidenciam?

À parte disso, Cowboy tem o mérito de mostrar um olhar sobre o norte do país. Finalmente, e para dar ainda mais sabor ao debate metalinguístico, há todo um mistério no lusco-fusco do entardecer parintinense e no título, que também aparenta ser aquilo que não é. Um filme de cowboy.

Camila Fink

Cowboy está na Mostra Brasil 7. Clique aqui para ver a programação do filme

Do íntimo e do adolescente

No primeiro, duas amigas de escolas diferentes. No segundo, um grupo de meninos em férias. Em idades parecidas (ao redor dos 13 anos), sexualidade, intimidade, rebeldia, rotina. A Arte de Andar Pelas Ruas de Brasília, de Rafaela Camelo, e Mari Pepa, de Samuel Kishi Leopo, trazem a força dos gestos genuínos da idade.

Os cenários, no primeiro, são as ruas de Brasília. As duas amigas se encontram, trocam cartas, esquematizam a compra do primeiro cigarro, bebem pela primeira vez. Percebe-se nos diálogos um trato realista, com expressões e soluções com as quais o espectador, mais velho, se identifica, e que relembra.

O detalhe proporciona força para a narrativa. Esmalte descascado, mochila caída para baixo da cintura, o aparelho dentário. As personagens encontram-se nesse estágio meio adulto, meio criança, de descompasso com o corpo.

Da conversa com a mãe a menina pede, a Deus, para nunca ser vista pelada. Uma confissão para a amiga. Um momento de carinho, de cumplicidade em que ela questiona, sutilmente, a própria sexualidade. O filme é explícito, mas delicado no tratamento dos momentos de experimentar, tentar, questionar a forma de mostrar-se ao mundo.

O universo dos meninos, no segundo filme, tem outros paradigmas. Eles formam uma banda de rock, ensaiam na garagem, mentem experiências sexuais das mais diversas e mais intensas. E são também cúmplices no espaço da rua.

Na casa do personagem central, outro tipo de relação se dá com a avó. No ambiente privado da casa, da cama desarrumada para a disputa cômica entre os gostos musicais, o menino começa a assumir o lugar de quem cuida. Assim, o espaço da rua, da exposição, do barulho, da ousadia, contrasta com o espaço privado, do cotidiano.

É na direção de atores e na direção de arte que esses dois filmes se endossam. São sinceros no trato do modo juvenil de dizer “tenho ciúme”, “ tenho raiva”, “eu gosto de você”, tanto na construção visual dos personagens como nos lugares que habitam e nas relações com os outros jovens.

Luiza Folegatti

A Arte de Andar Pelas Ruas de Brasília está na Mostra Brasil 8; Mari Pepa integra a Mostra Latino-Americana 5.

Em terra de rastejante, quem tem cadeira é rei

Já foram produzidos inúmeros curtas sobre desigualdade social. Não Há Cadeiras, de Pedro Di Lorenzo, nos traz essa temática de um ponto de vista muito interessante. Em uma terra onde as pessoas são diferenciadas como rastejantes e por quem tem cadeiras de rodas, é fácil perceber a relação que o diretor cria com a realidade.

Em busca de uma oportunidade, o personagem central necessita de uma cadeira de rodas para conseguir emprego e assim sustentar sua família, mas o caminho não é fácil e o personagem passa por diversas dificuldades para conseguir seu objetivo.

O modo de contar a história é intrigante, pois ao longo da jornada do personagem existem diversas referências ao cotidiano vivido pela grande maioria dos brasileiros que buscam uma oportunidade para mudar de situação e não conseguem devido à burocracia.

Em uma das cenas mais fortes, o diretor chama a atenção para um detalhe: o poder de calar a outra pessoa já é uma grande solução para o “problema” que são todos os que não têm dinheiro suficiente para obter nem mesmo o básico.

Ali estão todos os ingredientes: a oportunidade, a dificuldade, o preconceito com os menos favorecidos e a força de vontade – a única coisa que não pode ser tirada daquele que não tem praticamente nada.

Rodrigo Ferro

Não Há Cadeiras está na Mostra Brasil 7. Clique aqui para ver a programação do filme

Mistura de linguagens no trato à intimidade

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, de Eduardo Kishimoto, encerra a Mostra Brasil 10. Um sessão repleta de escracho, nudez e sexo.

Entre ver e ser visto, muitas câmeras revezam os olhares sobre Josie, a personagem central do filme. A câmera fotográfica de sua amiga, a câmera de vídeo do ex-namorado, a webcam da própria Josie, a tela de um site pornô, o celular de um cliente da loja onde trabalha ou da multidão da rua Santa Ifigênia, em São Paulo.

Rua não menos simbólica que o próprio quarto da personagem. Entre o privado e o público, o filme configura “fragmentos digitais da intimidade de Josie” (como define a sinopse), sejam eles registrados por ela mesma, por pessoas próximas ou por qualquer desconhecido.

Em uma confusão de câmeras e telas, um drama muito contemporâneo se passa. O site Vazou na Net publica o vídeo dela transando com o ex-namorado. Ele é repassado para outros tantos sites e visto por um cliente da loja, que a insulta. Por um espetáculo qualquer, uma multidão de celulares se configura, como um julgamento em praça pública, mas ninguém acude a menina.

Fazer um vídeo já justifica que ele seja divulgado? Qual o trato que se dá para a intimidade quando passamos a viver em rede? A partir das diversas relações que se pode estabelecer com uma câmera, formamos uma geração de jovens com virais (vídeos), presenciamos casos desde a página de Isadora Faber, Diário de Classe, até situações extremas como a da personagem Josie.

Experimental e habilidosa, no filme de Kishimoto, é a própria maneira de filmar o argumento.

Luiza Folegatti

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada está na Mostra Brasil 10. Clique aqui para ver a programação do filme

Exemplos instigantes do audiovisual portenho

Já passa de uma década que o cinema argentino fortaleceu seu nome entre nós, servindo inclusive como um comparativo de qualidade. Roteiros fortes, temas diversificados e uma estrutura de produção aparentemente simples dão a tônica de boa parte do que vem de lá.

Na programação do festival, os curtas Noelia, dirigido por María Alché, e Pude ver um Puma (Pude ver un Puma), dirigido por Eduardo Williams, são exemplos instigantes do audiovisual portenho. Ambos trabalham com uma câmera frouxa, quase amadora, e vão construindo seu tema e intenção com retalhos editados que ganham força sempre que pensamos neles.

Noelia é estruturado por meio da personagem-título, registrando com uma câmera (na mão ou posta sobre algo) suas ações, com uma estética próxima à dos vídeos amadores postados na internet. Sua primeira tomada faz com que se pense assistir a um filme sobre a relação difícil entre mãe e filha, com as ações frias, e às vezes agressivas, de sua mãe camareira sendo captadas com cautela.

No entanto, os lugares mudam e vão surgindo várias “mães”. Cai-se em um jogo da personagem. O campo de visão limitado e a estranheza das ações fazem com que se tente sempre tomar uma posição sobre o que está acontecendo, questionando até a sanidade da moça. Mas, sempre que uma certeza parece se firmar, um elemento novo surge e faz rever o que pensamos.

Sem fechar a história, o curta apenas registra a estranheza – como bem representa o plano final, com o rosto da moça ensopado (por quê?) em primeiro plano, num lugar impossível de apreender, e por fim o escuro do apagar das luzes que serve de fundo para os créditos, sendo que a música é aparentemente tocada pela personagem.

Pude Ver Um Puma não é um filme fácil. Registra a esmo alguns grupos jovens que surgem caminhando sobre telhados e vão para ruas e espaços destroçados. Os diálogos são simples e entrecortados. Alguns planos são longos e a câmera não está fixa, o que aumenta o desconforto. Pontualmente, alguém cai ou há um acidente mudando o grupo na sequência seguinte.

O final inesperado reverte tudo, dando sentido a todas as ações anteriores. Temos aqui uma maneira engenhosa e barata de contar uma ficção científica apocalíptica e perturbadora, e que cresce cada vez que é lembrada.

Carlos Alberto Farias

Noelia e Pude ver um Puma estão na Mostra Latino-Americana 5.