Close: corpo presente

close

por João Pedone –

Não são poucos os filmes exibidos no Kinoforum que falam sobre a dor da perda, mas Close é um dos únicos que encara a morte sem se debruçar sobre desdobramentos emocionais, talvez porque a morte aqui tenha um sentido não casual, mas simbólico.

Um menino vive sozinho com um pai solteiro, até o dia em que o menino acorda e o pai está morto. Na cena em que o menino encontra o corpo do pai – situação que prescinde de explicações a respeito das condições da morte –, seu único gesto é beber o copo de uísque que o pai havia deixado sobre a cômoda, mas ele não expressa nenhum tipo de descontentamento.

Pelo contrário, o menino assume um tom altivo depois do evento. Ele não avisa quem quer que seja a respeito da morte, conservando o cadáver (com o qual conversa) e passa a investigar os armários e gavetas, descobrindo pôsteres e músicas antigas e gravações de vídeo do pai e de si mesmo quando criança. É curioso perceber que essa morte não é entendida como perda, mesmo o menino tendo consciência de que o pai está, efetivamente, morto: ele evita sistematicamente a entrada de outras pessoas na casa. Que morte é essa, então, que não é perda?

Como dizia Machado de Assis, “agora que está morto, podemos falar bem dele”. O fim da existência material de uma pessoa preserva sua memória, moldada individualmente por cada um dos memoriosos. O pai falecido, o menino não precisa encarar suas contradições e ausências e pode se relacionar muito mais facilmente com a ideia de “pai” e com todo o universo simbólico a ele associado, universo esse de uma “mitologia masculina”: o tomar uísque, o fazer a barba, o ser um “homem grande”, vocativo que o pai endereça ao filho.

O filme se passa em torno da data do aniversário de treze anos do menino, a respeito da qual ouvimos pela primeira vez o pai dizer que seu filho é um “big man”. Da mesma forma, numa gravação antiga do nascimento do nosso protagonista vê-se o pai chamando o menino de “big man”. A morte do pai, então, assim como o aniversário é marca indelével da passagem do tempo, parte de um ritual de transição onde ele se torna um homem adulto. Essa morte, então, tem um sentido necessário e progressivo, porque permite ao rapaz acessar todo um universo material que a presença do pai impedia – quase uma cadeia sucessória.

E, no entanto, o menino não enterra esse cadáver, não se desapega dele, da mesma maneira que ainda se apega aos sentidos de uma masculinidade tradicional. Ele reconhece a fragilidade desses sentidos e dessa relação, e por isso preserva o espaço da casa da presença das duas mulheres, da mesma maneira que omite o acontecimento e interioriza a questão, preservando-a de questionamentos: ele prefere continuar a viver com o corpo morto do pai.

Desde o começo do filme vê-se o menino fazer questão de ir para casa cedo, deixando para trás sua amiga. Vê-se o pai sair, deixando o menino sozinho, entediado: a existência dele é condicionada pelo pai. Mas é só no fim do filme que entende-se que essa posição é voluntária, e que ele é quem mais deseja se tornar um “big man”, mantendo vivo o desejo do pai.

Close está na Mostra Internacional 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Quito: os conflitos e dúvidas da adolescência

quito

por Beatriz Modenese –

Caracterizada por ser um período de transição, a adolescência é uma fase da vida composta por conflitos e dúvidas. Quito, de Rui Calvo, é um retrato extremamente fiel e simples das agonias e delícias de ser um adolescente.

O garoto, que dá nome ao curta, pela primeira vez depara-se com uma certa liberdade, e com essa, a responsabilidade em suas escolhas. A dificuldade de escolher um curso de graduação, as dúvidas em relação ao que se quer ser no futuro – quando não se há a mínima ideia. Quito, que vai de bicicleta à escola, busca agora dinheiro para conseguir tirar sua habilitação. Sente-se inferior ao amigo que dirige, que nem carta possui. Como ele mesmo diz em certa cena, sente “inveja”. A competição está sempre implícita nas relações não apenas jovens, mas acredito eu que em qualquer fase da vida.

A narrativa também encontra caminho para outro tema: os desentendimentos entre pais e filhos. As ideias não se encontram, e quando mãe e filho se desentendem em relação à habilitação (enquanto ele quer tirá-la, a mãe contrapõe: “a gente nem tem carro”), tudo toma proporções maiores (“não preciso mais pagar seu vestibular então”, “seja homem e venha aqui olhar na minha cara”). Quito é um personagem padrão: 18 anos, preocupado com sua imagem, apresenta conflitos de personalidade, sexualidade, superioridade, familiares. Acredito que a identificação do espectador nas personagens é parte importante, já que em mínimos detalhes, este objetivo é atingido. Por exemplo, numa cena na qual um funk conhecido toca, ou as “brincadeiras” feitas na escola.

A narrativa é leve e o tema comum. A temática adolescência é explorada de forma pouco aprofundada. O espectador busca durante todo o enredo um clímax, um turning point. Mas quando vê, acaba. Final esse que não carrega qualquer resolução aos conflitos do garoto, e a conclusão que levamos é a mesma que temos, ao viver: problemas sempre haverão (“E ai?” “E ai o quê?” “É isso, ué”).

Quito é a prazerosa tradução de uma tendência contemporânea do cinema brasileiro, que volta-se cada vez mais ao público jovem; público este que está sempre em busca, principalmente através da arte, de desmistificar suas agonias e dúvidas em relação à vida.

Quito está na mostra Panorama Paulista 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

De Castigo: sobre se relacionar

de castigo

por Valéria Tedesco –

A sessão estava lotada para a exibição dos filmes do Panorama Paulista 1. Entre curiosos, admiradores, familiares e amigos, a jovem diretora Helena Ungaretti fez mais uma apresentação de seu curta-metragem De Castigo. Interessante observar como os espectadores fizeram parte da composição do clima apresentado pelo filme.

Lilian Blanc vive o papel de Guta, uma tia avó que vive sob o olhar vigilante da família, mas para sua sorte, essa família é apresentada na narrativa através de seu sobrinho Felipe, um tímido e tranquilo adolescente que vai passar um tempo em sua casa por estar, a princípio, de castigo.

Guta é apresentada em um cotidiano que escapa as convenções de uma senhora na terceira idade que mora sozinha. Ela bebe, fuma e vai muito bem, obrigada. Felipe, por outro lado, é um garoto quieto que claramente gostaria de estar em qualquer outro lugar. De maneiras distintas, cada um vive em seu universo particular.

A relação dos dois personagens começa de fato a se consolidar quando tia Guta, ao tomar banho, leva um tombo e chama Felipe para ajudá-la a levantar. A situação constrangedora se transforma em um importante marco para os dois que, a partir desse momento de intimidade e respeito, passam a mais do que simplesmente se dar bem, mas a tentar entender as motivações e limitações da vida do outro.

A estética bem construída é um grande elemento para que a narrativa mantenha seu ritmo e continuidade. O universo de Guta e Felipe prende a atenção com a bela composição da fotografia, juntamente com a direção de arte e cria ambientes que destacam as personalidades bem definidas para o espaço daquela historia e daquelas pessoas. Os objetos cuidadosamente posicionados e os móveis clássicos que compõem a casa de Guta criam uma duplicidade que também refletem na personagem.

De uma maneira leve, a história é um debate sobre personagens, e sobre personalidades. Tia e sobrinho são dois desajustados que levam a vida em seu próprio ritmo, e no final das contas encontram um no outro a maneira de manter sua identidades e encontrar novos caminhos.

De Castigo está na mostra Panorama Paulista 1 e na Infanto-juvenil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

No fundo, com coração

sem coracao

por Beatriz Modenese –

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Um menino chamado Léo sai de sua casa na cidade em direção a uma vila de pescadores, para passar as férias na casa de seu primo, Vitinho. A rotina dos dois, que têm provavelmente entre 10 e 13 anos, reduz-se a brincar na praia, em barcos, na areia, juntamente com outros meninos. Já no início do curta, somos apresentados à personagem que o nomeia: Sem Coração. Através de uma fotografia cheia de cores e imagens submersas, vemos a menina capturando um polvo, para depois matá-lo a pancadas – logo começamos a entender o porquê do apelido.

Em dado momento, Vitinho e seus amigos encontram Sem Coração na praia, e a chamam. Somos então remetidos a um outro cenário: uma grande piscina vazia e abandonada, em frente ao mar. A narrativa, que até então seguia uma linha leve e de temas inocentes, transforma-se. Léo, Vitinho e os amigos sentam-se na borda da piscina, enquanto a menina dirige-se ao fundo dela, encostando-se numa das paredes. Um dos meninos agora desce e vai ao encontro de Sem Coração. Abre o zíper da bermuda e a menina levanta a saia; ele introduz-se nela. A inocência prévia de toda narrativa parece agora se perder. Os amigos assistem aos dois, sem qualquer aparente emoção. Léo demonstra um certo incômodo, mas que logo vemos dispersar. Sem Coração e o menino terminam. A menina, ainda sem expressão aparente no rosto, ajeita um pouco a saia. Outro amigo de Vitinho desce ao fundo da piscina, para fazer o mesmo com ela, enquanto os outros, em silêncio, continuam assistindo.

A cena desta vez dá-se em outro cenário. Resgatando o inicial perfil inocente das personagens, vemos estes brincando no mar. No meio do jogo, Léo beija rapidamente Sem Coração – o tipo de beijo que esperamos de duas pessoas na faixa de idade deles. À noite, Vitinho conversa com o primo, buscando descobrir se ele sentia-se atraído por alguma menina – novamente, o tipo de conversa que esperamos deles.

Agora, voltamos à cena da piscina: desta vez, Léo é pressionado por seu primo e os outros garotos a se encontrar com Sem Coração. Com alguma relutância, o menino desce. Inicia o ato sexual, e fala discretamente no ouvido da menina: “Queria te beijar”. Depois, ainda com a mesma discrição – com medo de ser julgado pelos que assistiam – coloca algo, que não conseguimos ver, na mão de Sem Coração. O curta encerra-se com Sem Coração olhando-se no espelho, com planos bem fechados da cicatriz que tem próxima ao coração – resultado da implantação de um marca passo. Léo encontra-se no carro, voltando para sua casa.

Sem Coração é uma grande crítica à sociedade de hoje, à vida sexual que inicia-se cada vez mais cedo, aliciando também muitas crianças ao tráfico sexual. Questionamos a maturidade da menina apelidada de Sem Coração, que consente os atos, nos perguntando se há idade ideal para o início de uma vida sexual. Se não há maturidade, podemos considerar então o coito entre a menina e os amigos de Vitinho, assim como Léo, um certo tipo de estupro?

Os meninos ao importar-se apenas com seu próprio prazer, e não com de Sem Coração, desencadeiam desta forma ações totalmente machistas. A vergonha de Léo de assumir seus sentimentos pela garota para os amigos é outro reflexo da mentalidade machista ali – e na sociedade contemporânea – contida. O fato dos meninos acreditarem (ou pelo menos, fingirem que acreditam) que tais ações não causam sentimento algum em Sem Coração, é mais um fator que contribuiu para a criação de seu apelido. Assim, somos remetidos também ao conceito muito popular nos dias atuais de “sexo descompromissado”. Até que ponto os sentimentos de um e de outro são respeitados? Ou são inexistentes, além do prazer físico?

O curta-metragem dos diretores Nara Normande e Tião, é o tipo de obra que nos faz sair da sala de cinema com um sentimento incerto: um misto de adoração, compaixão e raiva. O certo, no entanto, é a sensibilidade maestral com a qual assuntos tão sérios são lidados.

Sem Coração está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Caos familiar

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por Pither Lopes –

As obsessões nascidas das relações humanas é um terreno que sempre inspirou a produção cinematográfica. Na obra de arte, adentrar o ambiente conflituoso das emoções e investigar a capacidade destrutiva dos indivíduos pode ser desafio árduo e perigoso. No cinema, arte que carece compor mundos sensíveis, a investigação da complexidade dos nossos impulsos se transforma numa linha tênue entre o verossímil e o ridículo.

Cloro, curta-metragem do diretor Marcelo Grabowsky, tenta explorar o drama de uma família abastada a partir de suas incompletudes e frustrações. É na piscina de uma mansão, em um ambiente aparentemente familiar e feliz, que os sentimentos afloram e o conflito é estabelecido. Um pai corrupto e uma mãe ausente, protagonistas de um casamento fracassado, influenciam o turbilhão sentimental de uma garota prestes a completar 15 anos.

Grabowsky quer mostrar como as relações familiares podem ser destrutivas a partir de um contraponto entre as aparências e aquilo que as famílias realmente são quando olhadas mais de perto. Apesar de criar planos poderosos e fazer boas escolhas com a câmera, o diretor não consegue o mesmo quando escreve seus personagens. Com personalidades e dramas corriqueiros nas novelas brasileiras, o conflito de Grabowsky se torna inconsistente e por vezes excessivo.

O ambiente complexo das obsessões humanas sempre foi prato cheio para Ingmar Bergman. A família, substrato social preferido do cineasta sueco, era retratada com sutileza, diálogos certeiros e momentos de puro silêncio poético. Para não cair nos estereótipos de um folhetim das nove, que também se apropria constantemente dos dramas familiares, o curta Cloro talvez precisasse trabalhar mais as sutilezas de seu roteiro e podar os excessos para não cair em um ambiente tão melodramático.

Com um longa-metragem no currículo, o documentário Testemunha 4, o jovem diretor acerta ao utilizar a luz do sol para compor bem sua fotografia. A inexistência de uma trilha sonora também foi essencial para explorar e valorizar os sons do lugar paradisíaco em que se passa o filme. A interpretação afetada do elenco, principalmente quando mãe e filha duelam na piscina e são separadas pelo pai, é consequência dos clichês inseridos no drama de cada personagem.

O diretor franco-suíço Jean-Luc Godard disse certa vez que para se tornar um grande diretor basta pegar uma câmera. Talvez seja importante pensar em uma declaração de Martin Scorsese como resposta. Ao falar sobre o ofício da direção para os jovens diretores, ele disse: “Tudo se resume a uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos: ‘Você tem algo a dizer?’”.

Cloro está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Paraíso de água

cloro

por Andréia Figueiredo

Uma luz cegante! É assim que começa um dos estreantes do 25º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, Cloro, do diretor Marcelo Grabowsky. A luz, logo descobrimos que se trata do sol e que agora, pensando, certamente é um dos personagens principais dessa história, já que grande parte do roteiro é gravado sob a forte e constante luz solar, que cega o espectador logo no início.

Um fato interessante é que o enredo se passa em uma casa de luxo e em seu quintal, onde há uma piscina. Podemos ver a casa mas não podemos entrar, essa é a sensação que tive, já que nem mesmo a câmera chega à penetrar na residência, dando a entender que há mais coisas que acontecem ali dentro do que sabemos. A piscina é outro personagem, já que os conflitos ocorrem não somente ao seu redor, mas dentro dela também.

O filme gira em torno de uma garota que acabara de completar seus 15 anos e vive em sua luxuosa casa, cercada de regalias e empregados. Só que por trás de todo esse belo cenário, há uma família em crise e dois filhos afetados pelo relacionamento dos pais. Uma das mais belas cenas é quando a Clara, a irmã mais velha, põe-se a descobrir o que há de errado com o caçula, que não diz nada, apenas faz um leve gesto com a cabeça indicando a discussão dos pais. Palavras não são necessárias.

Fica evidente que Clara, a personagem principal, está passando por uma fase de mudanças, de questionamentos e desejos. É possível perceber a ausência e a falta de interesse dos pais de Clara por ela, tendo como base para isso o descaso da mãe, que toma seu banho de sol, quando a filha chega da escola. Além disso, nos é mostrado os fortes desejos que a personagem sente pelo novo empregado da casa, fantasiando com ele momentos íntimos em seus momentos de ócio.

Cloro definitivamente é um filme que tenho que parar e refletir mais um pouco a seu respeito para, em seguida, assisti-lo novamente. Isso porque é um curta metragem que nos prende do começo ao fim, enquanto nosso cérebro tenta entender qual é o próximo passo. O desfecho continua uma grande incógnita para mim, pois é difícil imaginar qual é a cena que se sucede à final. A minha dica é que vocês assistam ao curta, pensem e reflitam. Só sei que eu farei o mesmo nos próximos dias.

Cloro está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Aprendendo a crescer

confabula de uma menina dissecada

Uma das oportunidades mais interessantes que festivais como o Kinoforum oferecem aos cinéfilos, é a de assistir obras de países como o México, cuja a produção cinematográfica atual raramente chega ao circuito nacional. A terra que nos presenteou com diretores excelentes, como Alejandro Iñarritu, esse ano nos agracia com uma bela obra de fantasia. Contrafábula de Uma Menina Dissecada, de Alejandro Iglesias (xará de Iñarritu), é uma “coming of age story” com ares de conto de fadas macabro e uma impecável direção de arte, aos moldes da escola del Toro, que, vale lembrar, também é mexicano.

Gizella está fazendo 15 anos e sua família burguesa lhe prepara uma grande festa para apresentar a filha, que se tornou mulher, à sociedade. A mãe lhe diz como se portar, o pai lhe ordena o que dizer e a filha mal consegue respirar embaixo de tanta pressão. Sozinha em seu quarto, enquanto termina de se arrumar, a garota nota algo embaixo da cama. Aproxima-se e descobre o objeto: um unicórnio de brinquedo, que lhe faz sorrir pela primeira vez. Assim como a cena citada transparece, é sobre essa dificuldade de abandonar a infância que a obra trata, mas, como toda boa fábula, abusa de metáforas para tecer seus posicionamentos.

Nesse ponto, os mais exigentes podem torcer o nariz e argumentar que a escolha por essa figura de linguagem é pobre e tola, mas, se Milan Kundera afirma que uma simples metáfora é capaz de fazer nascer o amor, podemos supor que uma série delas são capazes de gerar no mínimo alguma reflexão. Aos que eu não consegui convencer na sentença anterior sobre o possível valor das simpáticas alegorias peço que interrompam a leitura por aqui: elas serão encontradas em abundância pelas próximas linhas.

Aos que continuam, peço desculpas por minha extensão digressão. Mas bem, voltemos a trama. Durante o jantar, em meio a figuras mais bizarras que qualquer ser mitológico, a menina nota algo dentro da boca e, incomodada, vai até o banheiro onde descobre que um galho está crescendo dentro de sua boca. O peculiar membro cresce cada vez mais ao decorrer da noite, enquanto Gizella luta para escondê-lo a todo custo. Existe algo na jovem que quer aflorar, rebeldemente, mas a mesma se censura, no desespero de cumprir o seu sacro dever de honrar pai e mãe.

E aí reside o conflito da nossa donzela indefesa. De um lado, o anseio por agradar a mãe, que lhe proíbe de sujar as sapatilhas alvas quando o genuíno desejo de moleca é o de afundar os pés descalços, sem qualquer receio, na lama macia; a obrigação de recepcionar banquetes enfadonhos quando sonhar com unicórnios é muito mais interessante. O medo de crescer quando esse processo significa abandonar todos os prazeres que você conhece até então. A jovem se encontra desarmada em meio à guerra que seus pais declararam contra a sua infância, sem nenhuma trincheira para a mocinha se esconder.

O destino de Gizella, que precisa escolher entre o indivíduo e a instituição familiar, tem cores de tragédia grega; ela, sabores de Antígona, heroína de Sófocles que teve que escolher entre sua família e seu governo; e o drama é familiar a quase todos nós. Como toda fábula indica, por definição, o filme se encerra com uma moral da história. Mas sem a promessa de um final feliz.

Henrique Rodrigues Marques

Contrafábula de uma menina dissecada está na Mostra Latino-americana 5. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2013

A força da mulher

a mulher quebrada la mujer rota

O que mais me prendeu a atenção nesses dias de festival foi a representação das mulheres nas diferentes culturas que o integraram.

Logo na minha primeira sessão, latino-americana, me deparei com Solecito, de Oscar Ruiz Navia, da Colômbia. Estrelado por dois jovens selecionados em um casting em um colégio público, o curta-metragem traz a história de um amor inocente. Uma garota marcante tanto pelos piercings e acessórios como pela sua forte personalidade; segura de si, corajosa e que, através de um ótimo diálogo, regado de doses certas de inocência e malícia de ambos os personagens, nos revela uma mulher que no fim, acredita e aposta no amor. Como todas nós. A fotografia é impecável, e as tremidas de uma câmera na mão podem parecer inexperiência de início mas, a mim, caíram como uma luva à inexperiência dos personagens que vivem pela primeira vez uma história de amor.

As mostras brasileiras também trouxeram mulheres que valêm ser lembradas. O que lembro, tenho de Rafhael Barbosa (Alagoas) traz a temática da doença de Alzheimer representada por duas mulheres de muita força. O ambiente é de uma família muito simples, que vivia no interior, uma mãe criando dois filhos sozinha. Com a idade, veio o Alzheimer e a filha é quem passa a cuidar da mãe por toda a sua vida. A fotografia e o modo como esse tema tão triste foi abordado são muito delicadas; as personagens, apesar do sofrimento, me passaram uma profunda paz interior e algo que poderia trazer uma carga emocional forte e pesada é retratado com extrema sutileza.

Da Suécia veio a história de uma mãe solteira e cheia de desejos. Game, de Ylva Forner, se passa na sala de estar de Elizabeth, uma mãe que volta de um encontro ruim e se depara com Adam, amigo de seu filho adolescente, jogando videogame na sala. O garoto não parece se constranger muito com a situação e convida Elisabeth para o jogo, que primeiramente recusa, mas se deixa levar pela inocência da situação e termina por aceitar. Os dois passam a se divertir, ao mesmo passo que o desejo nos olhos de cada um vai surgindo. O diálogo entre eles começa banal, evolui e os aproxima cada vez mais. Uma belíssima fotografia e ótimas atuações nos levam ao mundo de cada uma das personagens; Elizabeth vê em Adam um mundo onde suas preocupações não existem, a juventude. Adam projeta em Elizabeth a experiência, o amadurecimento.

Outro forte retrato cultural da mulher foi abordado em Mais de duas horas (Bishtar az do saat), de Ali Asgari, do Irã. Porém, essa que poderia ter sido uma narrativa forte e emocionalmente intensa, se perdeu nas linhas de um roteiro fraco. Um casal de namorados infringe as leis religiosas de sua sociedade e pratica o sexo antes do casamento. Por problemas de saúde, o casal passa a noite atrás de um hospital que aceite tratar da mulher sem que ela apresente certidão de casamento. Sem encontrar outra saída, a mulher aparentemente se suicida. O curta não me agradou, vi nele uma fotografia despreocupada, diálogos que não se aprofundam muito e uma abordagem muito vazia de um tema que traz tanta carga emocional na bagagem.

Do Uruguai veio um dos melhores curtas que assisti nesta edição do Festival. A Mulher Quebrada (La Mujer Rota), de Jeremias Segovia, combina tudo que uma boa ficção deve ter. De início uma mulher gravemente ferida chega a um prédio e pega o elevador. Todo em preto e branco, e trabalhando muito bem os elementos de luz e sombra que essa técnica proporciona, sua viagem até o sexto andar é o ponto de partida de um suspense conduzido pelo olhar da câmera, e que aos poucos revela detalhes dos seus ferimentos e direciona o espectador à decifrar o que pode ter acontecido com essa mulher.

Um senhor entra no elevador e, em um timing perfeito, revela-se que este, que aparentemente iria se deparar com uma mulher coberta de ferimentos, é cego. E daí começam a surgir os componentes cômicos da narrativa, em meio a todo o suspense. O desfecho segue os mesmos passos; a mulher entra em um apartamento e o olhar da câmera continua a nos conduzir à descoberta do que aconteceu alí, em meio a um ótimo jogo entre a direção de arte e a fotografia. O fim traz uma dose certa de comicidade e, para mim, uma metáfora à força, determinação e inocência da mulher.

Julia Lacerda

Quatro filmes em um

amor cru

Minhas hipóteses sobre Amor Cru (Amor Crudo) são quatro: ou o filme tem um esquema complexo de narração que alterna memória (ou fabulação) e realidade; ou os dois meninos estavam namorando e um deles não sabia; ou então o menino mais novo levou o fora mais cretino da história e nem ligou; ou na Argentina é perfeitamente casual amigos heterossexuais dormirem juntos na mesma cama, tomarem banho juntos e masturbarem um ao outro.

A última hipótese me parece a que melhor dá conta do filme. Nesse caso, o filme é uma investigação antropológica a respeito das formas de sexualidade entre jovens argentinos: dois rapazes obtém prazer sexual um com o outro enquanto não iniciam sua vida afetiva. Isso significaria que a sociedade argentina alcançou um grau de liberdade sexual em que o prazer sai da esfera privada da relação íntima do casal e atinge uma esfera de descoberta coletiva. Sob esse prisma, o filme é sobre a incongruência dos desejos de dois rapazes: um que quer curtir e o outro que quer namorar.

Talvez o filme seja justamente sobre esse menino homossexual que aprende a se libertar de valores afetivos tradicionais. Diante da impossibilidade de concretizar a relação com seu amigo, ele precisará aprender a lidar com a inexorabilidade da vida e das relações humanas. O filme seria, então, a narrativa da frustração afetiva desse menino, a qual seria um passo em seu amadurecimento pessoal. O filme marca essa transição associando-a diretamente com o fim das aulas e o início do verão (esse horizonte desconhecido, onde o grupo de amigos pode continuar unido ou não). O menino seria, assim, um herói lunar, que conquista a felicidade assumindo uma postura resignada diante do obstáculo. É uma perspectiva que se opõe ao herói solar, estandarte masculino de um cinema narrativo clássico, e adere a um grupo de valores mais intimistas e femininos.

A bem da verdade, não acredito em nada disso. Acredito que se trata de um filme “ruim”, cuja narrativa é atravancada e cujos signos não convergem, e ponto final. Mas resolvi deixar de lado a crítica autoritária e cedi à postura de crítico generoso. Afinal, ‘gays’ é um tema tão em voga hoje em dia, e alguma discussão o filme suscita. Respostas? Nenhuma.

João Pedone

Amor Cru está na Mostra Libercine. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Cego, mas não pelo sol

o sol pode cegar

Somos amantes de estórias, devoradores insaciáveis de narrativas. Seja lendo livros, indo ao cinema, ouvindo música, navegando na internet, conversando com amigos… É difícil estarmos longe de estórias, boas ou ruins. Vemos nossa própria vida como narrativa, e nos encantamos com muitas que conhecemos. E o poder das estórias, ficcionais ou não, é inegável; é a partir delas que tiramos reflexões a respeito de nossas próprias vidas.

O Sol pode Cegar relata a iniciação sexual do adolescente Paulo com Maria, que trabalha como empregada doméstica em sua casa, e que chega ao fim após a partida dela, depois de ser violentada sexualmente pelos amigos de Paulo. Há no filme três temas que por si só renderiam um filme cada um: a iniciação sexual na adolescência; a diferença imposta a indivíduos através de uma classificação em classes sociais, delimitadas a partir do poder econômico de cada um, e como isso pode afetar as relações sociais entre esses indivíduos; e aquele que estrutura-se como o clímax do filme, o ponto final dessa relação: a violência sexual.

Meu incômodo está no que senti como uma falta de cuidado com a construção narrativa relacionando esses três pilares. Meu foco firma-se sobre o último tema. A partir do momento que os três amigos entram no apartamento de Paulo e são recebidos por Maria, sabemos exatamente o desfecho daquela cena e sente-se a angústia por aquilo que está prestes a acontecer com a personagem. Angústia essa que não é criada apenas a partir da progressão narrativa do filme que encontra seu desfecho ali, mas também por termos em nós o conhecimento do ato hediondo que é o abuso sexual, e sabermos que esse é um ato que acomete muitas mulheres, assim como Maria. E estamos ali, assistindo aquilo, presenciando tudo.

A preocupação é ver que a narrativa fica na superficialidade ao submeter sua personagem a tal violência, e termina sem que possamos sair da sala com algum pensamento ou reflexão sobre o assunto, onde o estupro de Maria está apenas como desfecho chocante para a narrativa, provocador de tensão e choque para aqueles que assistem.

Mas ao retratar em sua narrativa um tema que, por mais infeliz que seja admitir isso, está presente na sociedade e vitimiza tantas mulheres, não seria mais respeitoso, e digo até mesmo mais corajoso, criar algo que possa trabalhar de maneira mais inteligente e profunda esse assunto, e não simplesmente usá-lo para como artifício narrativo para o chocante? Afinal, já somos colocamos em estado de indignação e perplexidade ao ouvir algum outro caso semelhante.

Se as estórias têm um poder que muitas vezes não nos damos conta, a ponto de serem lugares de reflexões sobre como nós mesmos vivemos nossas vidas, é necessário em alguns momentos ter um cuidado com aquilo que estamos narrando, pois o choque pelo choque pode funcionar durante o tempo de exibição, mas após a sessão pouco fica.

Tratando-se de um tema que aflige tantas pessoas, a narrativa não se debruça sobre ele, usando-o no fim apenas de maneira espetacular, o que pode ser uma ofensa para aquelas(es) que já foram vítimas da violência sexual ou já estiveram próximos desse crime. E com uma narrativa assim logo ela é esquecida, por não trazer nada que possa nos servir como um aprendizado frente nossa própria realidade, ironicamente falando dela mesma.

Pablo Gea

O Sol Pode Cegar está na Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013