FILMES PARA TEMPOS DIFÍCEIS – Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos!

por Gustavo Rego

A Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos! apresentou filmes que retratam a angústia de viver em meio a uma crise sanitária, econômica e política num país da periferia do capitalismo, onde a crise global ganha contornos mais dramáticos.

Luna Quer Sair, em seus pouco mais de 2 minutos, apresenta de forma doce e divertida o desejo de romper o isolamento e explorar o mundo – o que a protagonista finalmente atinge por meio da arte e da literatura. Uma animação em stop-motion marca a entrada da fantasia na narrativa.

Nervo Errante apresenta uma perspectiva bem menos otimista. Com um estilo que o aproxima do fantástico, o curta apresenta uma designer em home office com problemas financeiros e à beira de uma crise de ansiedade. Parte do filme apresenta uma narrativa clara dos motivos que estão causando ansiedade na personagem. Outra parte é composta por uma montagem acelerada de imagens à primeira vista aleatórias, mas cuja dinâmica sugere o estado mental da protagonista. A combinação perfeita entre o narrativo e o sensorial fazem qualquer pessoa que já sofreu de transtorno de ansiedade sentir-se na pele da personagem. Para fechar, utilizando efeitos especiais surpreendentes, o filme apresenta uma potente metáfora da síndrome do burnout.

Mas ficar em casa é um privilégio em tempos de pandemia. Nesse sentido, é fundamental conhecer o documentário Pandelivery, que apresenta a vida dos entregadores de aplicativo neste contexto. Com uma montagem acelerada, glitches e uma trilha sonora pesada, o filme traz para a sua forma a sensação de urgência vivida pelos entregadores. Sem jamais poder parar, sequer por motivos de doença – pois acarretaria no bloqueio do aplicativo e acúmulo de dívidas –, os trabalhadores arriscam suas vidas no trânsito selvagem e veloz em troca de poucos reais por quilômetro rodado. O filme aproveita o carisma de Galo, líder dos Entregadores Antifascistas, uma dessas grandes lideranças da classe trabalhadora que surgem de tempos em tempos.

Retratando o mesmo problema, temos Gilson, documentário cujo estilo lembra muito o clássico Ilha das Flores. A livre associação que conduz a narrativa, à princípio, parece aleatória, mas contribui não apenas para causar efeito cômico como para compreender a relação entre a parte (o entregador Gilson) e o todo (o capitalismo brasileiro contemporâneo).

Porém, as angústias brasileiras não estão apenas relacionadas à pandemia. Utopia apresenta garimpeiros que enfrentam um trabalho duro e perigoso em busca de um sonho. Mas, como o título sugere, este sonho é inalcançável. Essa contradição entre sonho (belo) e realidade (dura) é expressa no contraste entre, de um lado, planos do desmatamento, do riacho sujo, das marretadas na parede; e, de outro, do rio por onde navega uma criança e das partes da floresta ainda viva. A síntese é retratada pela dança sublime de uma moça suja de terra.

Viver no Brasil não é fácil. De acordo com levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde em 2020, o Brasil é o país com mais vítimas de transtornos de ansiedade no mundo e o quinto com mais casos de depressão. A pandemia certamente agravou este quadro. De acordo com pesquisa encomendada pelo Fórum Econômico Mundial em 2021, 53% dos brasileiros relataram piora em seu quadro de saúde mental no último ano. A falta de medidas efetivas de amparo econômico e contenção da disseminação da covid certamente contribuíram para isso.

Os filmes da Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos! retratam essa realidade. Por que ver filmes sobre a dificuldade dos nossos tempos justamente quando se está vivendo essa angústia? Porque a arte tem seu papel terapêutico. Somente entrando em contato com as dores, sociais e individuais, é que será possível encontrar as curas. Em Luna Quer Sair, por exemplo, a angústia do isolamento encontra a cura na fantasia e na arte. Em Pandelivery, a cura para a injustiça social é a revolução, indiretamente sugerida por Galo. Mas mesmo que a narrativa do filme não apresente solução para a dor, como em Nervo Errante, o espectador se sentirá provocado a encontrá-la para além do filme.

Apesar dos tempos difíceis, estamos vivos!

One thought

  1. Caro Gustavo.
    Bastante pertinente é a sua colocação final sobre o papel da arte de fazer com que entremos em contato com mazelas para que possamos entendê-las e tirar conclusões para lidar com elas. Mas veja bem, os filmes não são instantaneamente articulações pungentes que despertam a nossa criatividade para encontrar “curas” para as dores. Eles articulam as formas históricas e as formas de linguagem para elaborar as questões, e sendo assim, estão sujeitos a todo tipo articulação discursiva, as vezes opostas ao “terapêutico”. Apenas para comentar dois filmes: Luna Quer Sair articula uma forma de desejo de sair com motivações vazias, um “sair por sair” que elimina todas as formas de sofrimento para criar um desejo alienado que se revolve unicamente sobre o impedimento da completude do seu modo de vida burguês, encontrando uma solução que opera apenas como fechamento do filme, mas parece inútil mesmo para suplantar essa angústia vazia da personagem. A forma lúdica aliada ao vazio da dramaturgia faz desse filme uma forma de violência pela omissão das complexidades de um conflito em nome de uma perspectiva personalista de classe alta. Pandelivery por sua vez pode muito bem adequar forma a temática pela sua agilidade de construção, mas quais são as consequências disso? Não estamos falando de um filme que recria uma experiência sensorial da vida conturbada de um entregador. Aqui se emprega uma estética acelerada para realizar uma análise de conjuntura. Reitera-se então a mobilidade opressiva dos entregadores na própria forma do filme, não dando a eles o tempo que lhes é roubado, nem explorando a particularidade do seu cotidiano sem tempo. O filme se torna uma peça publicitária rápida e sensacionalista, como um vídeo de redes sociais, até que eficaz no caráter informativo, mas precário na sensibilização emocional e na exploração intelectual da questão.
    Estamos em um tempo de guerra, as questões são para agora.
    Como você mesmo disse, a arte tem seu papel.
    Sendo assim, achei que seria igualmente urgente expressar minha inquietação quanto a essa sessão e a sua avaliação positiva dela.
    Espero que entenda minhas posições aqui expressas.
    Abraço.

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