Brasil, o país das mulheres que são… mulheres!

no devagar depressa dos tempos

por Mariana Moura –

O curta-metragem No devagar depressa dos tempos nos mostra uma visão sensível, contrastada e colorida da cidade de Guaribas, no Piauí, cidade-símbolo do lançamento do programa Fome Zero. Estima-se que lá cerca de 85% da população da cidade receba o benefício Bolsa Família, citado no filme.

E pelas ruas de terra da cidade sabemos que há uma mulher e uma câmera. Na frente desta vemos outras mulheres, olhando pra nós, meros espectadores, sentados no conforto de uma poltrona e privilegiando uma sessão de cinema. Há miséria, descaso e muita, mas muita esperança na vida. É dessa esperança que o filme trata.

Conhecemos as mulheres que são mulheres, simples e complexo, não?! “O que é ser mulher?”, a voz feminina pergunta, e é nesse momento que eu me sinto no calor de Guaribas, me vejo sentada naquela cadeira, ao lado dessas mulheres e tento, em vão, responder a essa pergunta, que é no mínimo ousada para aquela realidade.

Aquele rosto, maltratado pela vida e com um filho no colo, nos responde sorrindo e depois chorando, porque ser mulher é isso, um exercício diário de resistência e de persistência.

Ser mulher é achar que tem que aturar o marido bêbado a estuprando nas noites; não ter como alimentar seu filho, que quer um biscoito de R$ 2; aceitar calada todos os insultos que a família lança em sua mente, todos os dias; aprender que outra mulher não é irmã, é rival; aceitar calada ganhar 30% a menos que um homem que ocupa o mesmo cargo; não poder andar na rua de roupa curta, porque ela mesma pode provocar um estupro. É isso e tantas outras violências que as mulheres sofrem constantemente e que muitas delas aceitam.

Guaribas é São Paulo, Sorocaba, Mauá, Franco da Rocha, Jundiaí, Belo Horizonte, Mairiporã, São José dos Campos, Itajubá, Penápolis, Piracicaba… Guaribas é o Brasil, com um zoom enorme em todas as suas injustiças.

Com a câmera parada nas mulheres ou em movimento, seguindo o “Chefe”, eu me movimento por essa realidade, cruel como muitas, mas que é retratada com uma belíssima fotografia, um contraste que dói dentro da gente, um realce nos rostos, dos objetos da casa, das paredes rachadas e cada detalhe da vida daquelas pessoas. Em alguns momentos, enquanto as mulheres narram, vemos close de algumas imagens do cotidiano das mulheres, algumas cenas compostas por fotografias das pessoas e seus cotidianos, e também planos abertos da natureza de Guaribas, enfatizando a seca do lugar.

Também conheço as crianças Guaribenses, em especial, as meninas, que são pobres, mas falam de seus sonhos e que por enquanto desconstroem todo o machismo que há por trás das falas de suas mães. Uma quer ser doutora, cortar bucho, a outra quer ser e elas também querem ser mulheres, independentes e apropriadas, donas de suas próprias vidas. Parece que aquela cruel realidade já ensinou que se não estudarem, continuarão nesse legado da miséria.

Que venham mais trabalhos tão significativos como esse, que vem para ressignificar realidades, desconstruir preconceitos e fazer com que vejamos outras realidades e saiba que ainda estamos muito longe da igualdade nesse país.

No Devagar Depressa dos Tempos está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Retrato de Carmen D.: jogar para a câmera

retrato de carmen d-ed

por Valéria Tedesco –

O curta-metragem carioca que encerrou a sessão Mostra Brasil 5, na quarta-feira úmida do festival, foi claramente o auge da noite. Retrato de Carmem D., da diretora Isabel Joffily, se destaca pela intensidade de emoções e angústia que transmite através de seus personagens.

Tão complexo quanto a relação de mãe e filha que acompanhamos durante a narrativa seria tentar escrever sobre esse filme de maneira linear, na tentativa de criar argumentos que atingissem seu ápice no clímax da narrativa. O mundo em que a psiquiatra Carmem Dometto e sua filha Marcela vivem é, e aparenta sempre ter sido, marcado por picos e momentos de sossego que pouco fariam sentido em uma única linha temporal.

Vou começar pela piscina. O plano mostra uma mulher mexendo com as plantas cobertas de musgo que estão onde um dia foi (como nos narra a personagem) uma piscina limpa e em constante uso. Desde esse primeiro momento somos introduzidos a uma memória de infância cortada, modificada. Marcela se lembra rapidamente dos tempos em que a piscina ainda era utilizada, mas o assunto logo segue para o relacionamento difícil com a mãe.

Somos apresentados ao olhar de Carmem, e depois a ela. Sua primeira fala aborda os obituários como um de seus passatempos diários. A senhora, que passa de seus 70 anos, afirma que todos os dias olha o jornal para certificar-se de que está viva, e também para ver se algum de seus inimigos já morreu. Deseja, com calma e certeza, uma morte dolorida a todos eles, e que se lembrem dela no final, se possível.

Esse primeiro momento de Carmem é um dos mais fortes do filme, tanto narrativamente como com o reflexo do público. Os risos e descontração cessam de uma só vez quando vemos uma mulher de aparência frágil dizer aquelas palavras duras e frias. A partir desse momento, todo o filme será pautado na depressão e no cotidiano de mãe e filha, e as fortes consequências de um ato no passado.

A psiquiatra que agora atende seus pacientes na sala de sua casa, fora acusada pelo suicídio de um de seus pacientes, há década atrás. Nesse momento, cria-se a relação de sentido para a piscina vazia, o relacionamento distante e complexo que se criou entre as duas, o telefone que toca sem que Carmem se preocupe em atender.

E assim cria-se o ambiente de difícil convivência entre essas duas mulheres, com mágoas de infância, com cicatrizes de vida, com pequenos detalhes na casa que denomina o universo daquela senhora. Mas nada é tão forte até o momento em que a câmera torna-se o verdadeiro psiquiatra dessa relação e mostra em dose única e de maneira intensa todo o drama que envolve a vida de mãe e filha, ao menos nas últimas dezenas de anos.

O cenário é a cozinha. Toda a discussão começa com Carmem demonstrando seu primeiro ponto de fragilidade de forma escancarada, quando diz para a filha que ela deveria gostar de ter outra mãe. Poderia ser uma pequena discussão ou desabafo de qualquer relação materna, mas o diálogo a seguir cria um cenário de angústia, mágoas e de uma convivência extremamente dolorida ao mesmo tempo que amorosa entre as duas.

E então a câmera faz sua grande atuação. É para a câmera que mãe e filha jogam as cartas na mesa e assumem para o mundo um tratamento arisco que mantém, é para a câmera que elas afirmam estar enfim cansadas dos tratamentos baseados em insultos e discussões. É para a câmera que carinho e mágoa se unem em uma dança inseparável, pois finalmente desabafam uma para a outra suas loucuras e suas inseguranças, frente a frente, e na frente de todos nós, que outrora acompanhávamos com um leve riso a espontaneidade complexa dessa mulher, acabamos com nosso riso e nossas certezas junto com os musgos no fundo da piscina vazia.

Retrato de Carmem D. está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Breves anotações sobre o Panorama Paulista

chaplin sp

por Lígia Hsu –

O estado de São Paulo é a mola propulsora do país, correto? Essa visão simplista de um Brasil dependente de apenas um estado felizmente/infelizmente não se aplica à produção audiovisual.
A sessão Panorama Paulista 3, um pequeno recorte do que vem sendo produzido no estado de São Paulo, me fez levantar duas questões:

– Por que somos tão corretos?
– Por que temos medo de ousar?

Os sete filmes possuem ótimas premissas, vê-se claramente um cuidado na forma, na decupagem, nos enquadramentos, na fotografia, no geral são tecnicamente muito bons, mas queria ver mais, muito mais.

Barqueiro, de José Menezes e Lucas Justiniano, fotografado em PB, possui um rigor nos enquadramentos e boa técnica. Tem uma das melhores premissas de roteiro desta seleção de filmes: uma noite na vida de um motorista do serviço funerário especializado na remoção de crianças. O filme avança lentamente até chegar no cerne da questão e apenas nos minutos finais consegue provocar alguma emoção. Recentemente fui uma das “clientes” do Serviço Funerário Municipal de São Paulo e consegui identificar o vazio que aquele espaço provoca através dos planos do filme, a solidão, a frieza do lugar. Tudo isso é mostrado de maneira muito correta e em boa parte do filme minha expectativa era por alguma coisa que desestruturasse esse rigor.

Pequena Aldeia, de Priscilla Pomerantzeff e Luciana Nanci, fala sobre a Praça Roosevelt e começa bem através do olhar de um argentino que vive num grande apartamento da praça. Depois o filme se mantém afastado de seus personagens e a câmera os observa do alto, como se estivéssemos vendo através das janelas. O filme cumpre bem essa visão, através do enquadramento em plongée, seguindo de longe as vidas que povoam a praça.

Tempo é Morfina, de Kamilli Semenov e Rafael Queija, trabalho de conclusão de curso do projeto Instituto Querô de Santos, cumpre com rigor as diversas técnicas aprendidas no curso, mas acaba sendo apenas isso.

USP 7%, de Daniel Mello e Bruno Bocchini, documentário sobre o racismo na maior universidade do Brasil, consegue trazer a essência jornalística de seus realizadores para a linguagem cinematográfica. Mas a discussão, importantíssima diga-se de passagem, sobre o tema acaba sendo unilateral.

Chapa, de Fábio Montanari, é o mais correto de todos e com uma ótima premissa de roteiro: dois funcionários de uma lanchonete são despedidos e resolvem assaltar o estabelecimento no dia do primeiro jogo do Brasil na Copa do Mundo. Uma comédia leve, com ótimos atores. Existe a tentativa da crítica ao novo substituindo o antigo, mas tudo é superficial. Cumpre bem o papel de comédia. Sempre me questiono o porquê de não nos aproximarmos do modelo clássico de cinema norte-americano, afinal, tem funcionado para eles por tanto tempo. O filme se aproxima bem desse modelo e aí vejo a armadilha do negócio: o filme é redondinho, seria assimilado tranquilamente pelo nosso público “sessão da tarde”, mas por se tratar de um filme nacional eu fiquei na expectativa do improviso, da malemolência, do jeitinho brasileiro. Engraçado isso, ainda mais se tratando do filme com mais referências ao Brasil.

As exceções são Conversa, de Luciano Arturo Glavina, que em 8 minutos mostra o encontro de um homem e uma mulher através da poesia do uruguaio Mario Benedetti. Uma única locação, dois personagens, fotografia impecável de Walter Carvalho. E Chaplin SP, de Matias Vellutini, um divertido stop motion que transforma o eterno Chaplin em um personagem tipicamente paulistano. Esses dois filmes tecnicamente tão bons quanto os demais, ousaram na narrativa e assim, aos meus olhos, se destacaram nessa programação.

Todos os filmes de alguma maneira me instigaram a querer ver mais. Mais dessa técnica correta sendo subvertida, mais dos roteiros sendo aprofundados e principalmente mais ousadia em contar histórias do nosso estado de São Paulo.

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Contos da Maré: a inocência e a sagacidade

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Por Eleonora Del Bianchi –

Pessoalmente nunca entendo ironias e sempre acredito nas história mais bizarras. Quando  questionada de como não desconfio, respondo: tudo é possível!

O curta Contos da Maré me encantou muito por tratar de temas bonitos que já renderam tantas outras produções boas também: a inocência e as histórias orais. Sempre me lembro da cena do filme O Contador de Histórias quando Marguerit e Roberto Carlos assistem a apresentação de rua de um vendedor de bugigangas. Ela compra o que ele  diz ser a caneta que a princesa Isabel usou para assinar a Lei Áurea e Roberto fica bravo, pois o homem tinha várias outras, aquela com certeza não era a original: “Eu não estou comprando a caneta, estou comprando a história”, diz ela. É um filme incrível, real e inocente. Ela acredita  no menino e ele aprende a ver coisas bonitas no mundo, que não pensava ser possível ver e  acreditar e a passar isso adiante.

Também me lembrei do Mundo imaginário do Dr Parnassus falando do desmoronamento do  mundo sem as histórias contadas, sem as leituras e o acreditar no faz de conta. Quando somos pequenos ouvimos histórias e tudo faz sentido, não desconfiamos de nossos narradores pois não sabemos muito sobre nada, não criamos padrões. Somente ouvimos e absorvemos as informações. E o mundo parece tão maior e infinito.

O curta mistura a história do Complexo da Maré, conglomerado de favelas na zona norte do Rio de Janeiro, com a da família do diretor e roteirista Douglas Soares, usados como os atores do  curta, com a vida cotidiana no local e com as lendas urbanas que marcaram os moradores quando crianças, antes do smartphone e popularização da televisão nas conversas de fim de noite depois do jantar e que repassam hoje aos jovens boca a boca. “Toda a minha infância eu passei no Complexo da Maré, entre meus tios e avós maternos, que me contavam muitas histórias do passado daquele lugar. Queria trazer para a obra a mesma sensação íntima e afetiva que sentia quando meus familiares me recebiam, cuidavam e narravam histórias e lendas para mim, minha irmã e meus primos”, diz o diretor.

Os folclores que eles contam vão desde o inexplicável das noite escuras, sem eletricidade, com  barulhos bizarros que relacionavam a lobisomens e usavam para manter os filhos em casa: “A  noite é do bicho”; Ao bizarro, como o homem que teve um filho parecido com os porcos que vendia, e que teve de ir até à Polícia de tanta gente que queria ver. E às invenções de locais comuns, como a mulher que cozinhou uma sopa muito ruim que diziam ser cobra, e todo  mundo que tomou morreu, só sobrou ela que virava cobra todo ano, começando a descamar na semana santa.

Cada narrador usa uma máscara de animal. Eles podem estar representando a história, mas nem por isso elas deixam de ser reais, de certa forma. Um dos tios diz: “Acho que as coisas hoje não existem mais porque as pessoas pararam de acreditar. As pessoas não conhecem mais, mas quando a gente conta eles ficam fascinados”.

Ao final o avô diz que não toca teclado, que fica no automático e ele toca nota aleatórias. A avó diz que não, que ele toca muito bem.

Ele ri e continua, dizendo que essas historias são mentira, que lobisomem não existe nada. E no fim o vemos tocando. Ele aperta as teclas sem medo, apesar de claramente não saber bem o que está fazendo. Ainda assim elas se harmonizam com o som contínuo do teclado e, apesar de que talvez seja verdade que ele não saiba tocar, ele está feliz tocando – sua esposa fica por perto e gosta de ouvi­-lo e o resultado vale a pena escutar.

Contos da Maré está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Master Blaster: descoberta de humor na Nebulosa 2907N

master blaster

por Amanda Martinez –

Um dos filmes com título mais comprido do festival e, ao mesmo tempo, não muito esclarecedor de início, com certeza está entre os que mais conseguiram entreter a plateia. O mistério a respeito do conteúdo de Master Blaster – Uma Aventura de Hans Lucas na Nebulosa 2907N, dirigido por Raul Arthuso, serve sem dúvida como elemento importante para impactar o público positivamente, quando se revela em meio a letreiros russos uma inesperada e divertidíssima comédia.

Em um misto de Eisenstein com ficção científica, a chamada Cidade-trabalho com dois sóis é apresentada sob o olhar sério e nórdico de Hans Lucas. O agente intergaláctico investiga o aparecimento de um novo sol vermelho que brilha constantemente, mudando o ritmo da metrópole, que passa a trabalhar sem descanso. Um ar de futuro distante engloba o discurso da narração, intrigada em compreender os seres do estranho lugar, enquanto a controversa estética de um preto e branco ruidoso lembra filmes da antiga União Soviética.

Sem fazer piadas diretas, os risos são rapidamente arrancados de quem assiste através de quebras entre a visão subjetiva do personagem e monólogos dos moradores da cidade, quase em uma espécie de reportagem realizada pelo agente. Isso se deve ao fato de a misteriosa e caótica cidade em muito se assemelhar a uma São Paulo contemporânea, local onde coincidentemente se dá a exibição do curta: há o ambulante que vende água, o vendedor de óculos escuros, os operários, todos dando seus depoimentos em bom português coloquial. A excessiva seriedade com que tal realidade tão familiar é encarada, repleta de suspense, se torna o trunfo humorístico em Master Blaster, criticando o ritmo frenético das metrópoles através de uma grande sátira.

A forma de humor empregada no curta é muito interessante e se destaca de comédias mais convencionais, onde a graça é o personagem atrapalhado. Hans Lucas, ao contrário, é um homem inteligente e dedicado, e é exatamente isso que o torna cômico. O filme conduz os espectadores através de piadas que não se focam em menosprezar ou expor, mostrando que a ironia na comédia pode ser tão eficaz quanto o famoso “rir da desgraça alheia”. Além disso, o timing dos acontecimentos é excelente, não tornando o filme arrastado e fazendo com que nem só uma risada seja falha.

Ao final da exibição, o primeiro filme na sessão Panorama Paulista 3 tem seu resultado claramente reconhecido pelo público. O final heroico de Hans Lucas é recebido com uma grande salva de palmas pelos verdadeiros habitantes da Nebulosa 2907N, espectadores de um filme leve, de bom entretenimento e criativo.

Master Blaster está na mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Ameaçados: retrato de um povo perseguido

ameacados

por Pither Lopes –

Reinterpretar o novo mundo que à nossa frente se coloca, cada vez mais instável, hostil e inseguro, tornou-se como nunca essencial. A mídia globalizada, com seus crescentes processos de manipulação, não oferece as investigações, respostas e análises com a densidade necessária. A câmera jornalística, genérica e superficial, foi sequestrada pelos interesses dos conglomerados empresariais.

Nesse embate pelo novo front do olhar, o documentário, que se constitui a um só tempo escudo crítico e pausa reflexiva, vê-se como gênero eleito de primeira necessidade; uma linguagem que se revela inevitável à sobrevivência do espírito ético. Em Ameaçados, a diretora Julia Mariano se apropria com maestria dessa ferramenta cinematográfica para investigar a tragédia de um Brasil profundo, a história de sujeitos abandonados a própria sorte.

Figurando entre os favoritos do público na 25° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, Ameaçados retrata o cotidiano de pequenos agricultores do sul e sudeste do Pará que lutam por um pedaço de terra para plantarem e garantirem sua subsistência. Lugar onde a lei está do lado dos poderosos, a luta pela sobrevivência e por um pedaço de terra virou questão de vida ou morte.

Para compor seu documentário, Julia optou por dar voz àqueles que não são ouvidos, aos marginalizados e perseguidos por um sistema opressor. A diretora construiu um retrato revelador e coerente do estado que registra 70% dos casos de trabalho escravo no Brasil e que possui o maior número de assassinatos no campo. O mesmo estado que em que foi assassinada a missionária Dorothy Stang, perseguida por fazendeiros porque defendia o uso sustentável da terra.

O documentário, que se utiliza de voz off e entrevistas, adquiriu uma estrutura certeira, abordando as questões mais caras ao tema. Além de trazer à tela a saga de trabalhadores vítimas de um sistema que controla pessoas e compromete a qualidade de vida de milhares de brasileiros, a cineasta parte para a denúncia das violaçãoes dos direitos humanos e da omissão do estado.

A intervenção do próprio poder público, tentando impor um modelo de desenvolvimento para essas regiões nas últimas décadas favoreceu grupos econômicos, pecuaristas, madeireiros e grandes mineradoras. Consequentemente, elimina e expulsa indígenas, quilombolas, trabalhadores e sem terras.

Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista, é necessário que alguém faça documentários. E, mais que isso, estabeleça asserções sobre o mundo que é mostrado na tela. O cineasta alemão Wim Wenders gostava de dizer que “a política mais importante é aquela que fazemos com o olhar”. Em Ameaçados, Julia Mariano honra com esse compromisso, trazendo a tona uma história que permanece soterrada, fruto da alienação de boa parte dos brasileiros.

A exibição de Ameaçados na programação do festival acontece num ótimo momento para o Brasil. Em tempos de eleições, é preciso trazer para a pauta as discussões em relação ao equivocado modelo agrário do país, que concentra a maior parte da terra nas mãos de poucos. Para propor uma reforma agrária, é preciso contrariar os interesses do capital financeiro que cresce enquanto o cidadão comum perece.

Ameaçados está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Um cinema de velhinhos

geru

por Artur Ivo –

É interessante como muitos curtas estão bem ligados à família e as vertentes mais exploradas são crianças/adolescentes e idosos; os idosos se destacam bastante, acho eu que seja por causa de sua apatia e simplicidade – é mais fácil fazer um curta com eles, e também por causa que idosos sempre tem algo para dizer. O espectador muitas vezes aparece como um confidente deles, alguém que está lá só para ouvir seus problemas e suas histórias, como um terapeuta ou um Eduardo Coutinho. Suas experiências e seu relatos são muitas vezes exagerados e os idosos acabam quase endeusados, imaculados, “os sábios idosos que poucos ouvem, vou fazer ouvi-los através do meu curta”.

No entanto, alguns realizadores conseguem captar seus idosos de forma muito legal, frequentemente reinventando a câmera e seu papel no filme, colocando-a dentro da cena, sempre percebida pelo seu personagem mais sábio, e principal, claro. E o cineasta, em todos os casos (mesmo naqueles que não reinventa a câmera), pauta seu protagonista em ações familiares, comuns para todos – por exemplo o jantar de família, a foto de família, a visita ao seu avô, o que contribui para o espectador não se perder quando a câmera muda de lugar ou quando alguma situação inusitada aparece em cena.

Como reinvenção do papel da câmera destaco dois curtas: Geru e Vailamideus. Ambos usam sua câmera dentro da cena e são disfarçados de documentário: o personagem principal não sai do quadro, percebe a câmera e interage com ela. Essa permanência dos idosos no quadro faz com que eles fiquem cheios de carisma para com a plateia, ao contrário de seus familiares. Enquanto estes andam, se movem e falam num ritmo frenético, os dois protagonistas são mudos, pouco expressivos, e esse carisma, esse contraste e essa permanência na tela os deixam interessantes.

Apesar dos curtas serem quase idênticos em relação aos papéis e ações dos seus personagens, considerando o plano de imagem são quase opostos. Em Geru, seu personagem é seguido enquanto anda por aí, arrasta cadeiras e almoça, até uma hora em que ele encontra a câmera face a face. A partir daí o filme se torna todo subjetivo, não vemos mais o velhinho, mas vemos o que ele vê. Por outro lado, Vailamideus só tem um plano – o filme inteiro a anciã fica sentada, com sua família tirando fotos com ela, ninguém olha pra ela, ela não fala nada, não se move, não faz gesto algum, mas mesmo assim ela é interessante e a plateia entende seus sentimentos, inclusive os compartilha.

Mas por que será que se fazem tantos filmes de idosos? Parece um tema interessante, familiar
e ao mesmo tempo esquecido dos grandes centros de cultura – eu mesmo consigo listar poucas peças e livros sobre o tema, e filmes também. Entretanto parece um tema comum em curtas brasileiros, pois além desses dois também assisti a A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês? e Pausas Silenciosas, todos com algum traço de documentário e com idosos como personagens principais. Fico pensando também se não seria um modo de
conseguir história mais fácil, ainda mais para um documentário – nesse sentido lembro de O Gaivota, um curta brasileiro que passou no Anima Mundi desse ano que também falava sobre velhice.

De qualquer forma posso destacar que mesmo que os cineastas utilizem o tema idoso eles não se privam apenas na construção de documentários com suas histórias e memórias. Dos filmes que citei aqui, três deles são focados nisso, já os outros dois (que foram os que mais analisei) tentam pensar na vida do idoso e na sua expressão, além de conseguirem criar novas formas da câmera para isso.

Filmar sem sujar os pés

a cor do fogo e a cor da cinza

por João Gabriel Villar da Cruz –

Já algo preocupa quando, ao assistir um documentário, a plateia ri de alguém que fala sério. Na sessão de A Cor do Fogo e a Cor da Cinza, de André Félix, o desconforto é enorme. Na tela, Wagner, um rapaz de 18 anos, abre para a câmera todo o seu mundo pessoal com a felicidade de perceber um ouvinte atento e interessado, e seu relato é ouvido por entre gargalhadas da plateia. Num momento desses, é natural que se procure a origem dessas risadas, que mecanismo pode ser culpado por transformar o depoimento sincero em fonte de escárnio. Se esse mecanismo apenas se insinuava aqui e ali, é em uma cena filmada em uma boate que ele se escancara.

Wagner trabalha como drag queen, apresentando-se em uma boate numa performance de Diva Pop. O filme que, até agora, se preocupava em explorar o universo criado por Wagner, muda, sem razão aparente, e se transfere para seu ambiente de trabalho, onde filma uma apresentação do rapaz, logo após filmar a apresentação de stand-up comedy que o precedeu. A câmera se coloca num plano estático e distanciado, apesar do zoom que permite que os dançarinos sejam vistos de perto. O enquadramento pouco elaborado tira o movimento próprio da dança para circunscrevê-la numa visão fria e externa, a lógica do filme e do diretor se sobrepõe à do ambiente filmado. A música incidental ecoa dentro da tela, distante do filme. Vemos a maquiagem do rapaz, analisamos seu rosto, vemos o mecanismo por trás de suas expressões, enxergamos seus deslizes na dublagem da música, olhamos para o rapaz como para um E.T., cada consciência de cada movimento seu está escancarada, seu rosto parece artificial. Esse mecanismo se confirma quando, na cena seguinte, Wagner assiste a uma apresentação de Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras, de Howard Hawks. Ele pausa e explica que usa do mesmo artifício que Marilyn ao levantar as sobrancelhas e nesse momento a plateia do cinema ri – o que acabamos de ser mostrados passa longe de Marilyn.

Mas uma apresentação como a de Wagner tem toda uma magia interna que não se pode ignorar. A luz, as pessoas que ali estão, a música, a dança, a embriaguez, a alegria, a relação do público: existem vários e vários fatores que aproximam, para quem está ali, a apresentação de Wagner à de Marilyn. E a câmera ali age como uma intrusa que não compreende a lógica interna do ambiente filmado e capta imagens mecânicas, sem ideia do que está acontecendo – é isso que nós vemos. Enquanto Hawks compreende e explora seu objeto filmado, dando-o corpo, glamour, atmosfera, vida – nem Marilyn Monroe consegue ser Marilyn Monroe sozinha –, André Félix poderia muito bem estar filmando um programa culinário ou um show de horrores com a mesma apatia. Tiramos um discurso do que o diretor quer ver, e o assunto em si – o rapaz, as pessoas, a apresentação – é deixado de lado para que a voz do realizador possa passar. Existe um discurso anterior à filmagem que tira do assunto a sua possibilidade de autenticidade, de originalidade, sua capacidade de movimentar o documentário em vez de ser movimentado por ele.

O diretor usa desse poder o tempo todo, de forma mais ou menos direta. Em seu modo de fazer perguntas, de filmar a representação em papel das novelas, está claro que o filme está sendo feito para que se possa mostrar o que alguém de fora vê ali, e não para realmente revelar algo ou permitir que algo se demonstre. Consequência fatal de filmar um mundo externo ao seu sem tentar adentrá-lo antes. O discurso está todo lá: o deslumbre nas novelas, o sonho, o efeito no povo, a ingenuidade do rapaz. E o personagem em si que sirva de boneco para o que o diretor tem a dizer, que se submeta inocentemente à crueldade da câmera que, sem que Wagner ouça, ri tanto dele quanto a plateia do filme. O funcionamento interno do mundo filmado perde lugar para a visão externa e preconceituosa desse mesmo mundo, baseada no que de mais imediato nele se mostra. Resta se desculpar a Wagner pela atitude escrota da qual ele foi vítima.

A cor do fogo e a cor da cinza está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Mwany: a poesia do outro

mwany

por Beatriz Couto –

Capulana, em Moçambique, é um tecido utilizado de muitas maneiras. Ao mesmo tempo que uma capulana pode ser roupa, ela é toalha, é cortina, é tapete. As estampas coloridas e geométricas são marcas culturais de seu povo, e a diversidade de funções é reflexo de suas mulheres. Mwany, de Nivaldo Vasconcelos, nos apresenta Sónia e, com ela, toda a poesia da cultura moçambicana.

A geometria das capulanas é vista antes mesmo dos tecidos serem apresentados. A fotografia do documentário, com seus ângulos frontais e trabalho com linhas das construções, transforma o simples prédio em um reflexo do que está por vir. O elemento vazado da fachada se torna estampa, as escadas são listras e a protagonista marca seu lugar como parte da composição.

Sónia André veio ao Brasil estudar música e, com sua filha de seis meses na época, se mudou para Maceió. Ela saiu de Moçambique, mas Moçambique nunca saiu de Sónia. Ela canta, estende suas capulanas e ensina o idioma kimwani à filha. Na narração, conhecemos sua história por suas próprias palavras, e isso é o que torna Mwany tão especial.

Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, em sua palestra no TED em 2009, conta como sua colega de quarto na faculdade nos Estados Unidos se surpreendeu por ela falar inglês – na Nigéria, o inglês é o idioma oficial. Em seguida, Adichie passa a explicar o “perigo da história única”: a formação de estereótipos baseados no ponto de vista ocidental do resto do mundo. Segundo ela, a África é vista como uma coisa só, com catástrofes, pobreza e ignorância.

Nivaldo Vasconcelos não conta a sua visão de Sónia, mas sim ela mesma que apresenta ao público o que é ser uma mulher moçambicana. E não se surpreenda com seu português fluente, ele também é seu idioma oficial. Sónia nos afasta de uma visão única sobre Moçambique enquanto cobre o rosto de mussiro, pasta branca que vai além da beleza estética. Para ela, é com o rosto pintado que reafirma suas origens e se diferencia dos brasileiros. Com as músicas em kimwani, o idioma de sua região, o público é transportado para o outro lado do oceano, com uma poesia única do cinema.
As mulheres moçambicanas são como as capulanas, explica Sónia. A improvisação, a diversidade, o colorido, a beleza. E enfim, com nostalgia, ela diz que voltará para Moçambique, por mais que goste do Brasil. Lá estão suas raízes, suas tradições. Lá ela é mwani.

Mwany está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Aquele cara que ia mudar o mundo

aquele cara

Aquele cara é o cearense Jonnata Doll. O próprio título do filme já revela muito sobre o que ele trata. Um documentário pautado na simplicidade de uma câmera filmando uma pessoa, sem grandes produções, sem mudar muito de locação, sem se preocupar em mostrar a vida ao redor dele. Simplesmente mostrando o cara. Ele e sua história de vida.

A autora que vos escreve tem um gosto pessoal por documentários que se limitam a mostrar alguém falando sobre sua vida. Ouvir uma pessoa contando algo é de uma riqueza incrível. Um relato é capaz de criar mil imagens na cabeça do espectador, que jamais poderiam ter sido captadas. Além disso, nesse caso, a escolha da simplicidade na maneira de filmar reflete a simplicidade de Jonnata Doll de falar da vida. O compositor e cantor fala de questões importantes e profundas com muita despretensão e bom humor. Suas letras são bastante críticas, falando de incoerências sociais, consumismo e drogas, entre outras questões que recebem menos atenção do que merecem.

Em seu discurso, Doll fala, à sua maneira informal e lânguida, de temas que dizem respeito à grande maioria dos jovens: sua relação com o amor, a religião e a música, sobre como se sente livre (e confere às drogas créditos por isso) e inadequado à sociedade por sentir-se assim. Com maior talento para escrever do que para cantar, o comportamento crítico e a relação íntima com as drogas, faz lembrar – com o perdão da blasfêmia aos que discordam – Cazuza.

A despretensão e simplicidade que o curta adota para abordar as inquietudes da juventude são enfatizadas pela escolha do local da entrevista, que se dá na maior parte do tempo, à beira do mar. Doll foi o caminho adotado por Dellani Lima para tratar desses assuntos, e atinge o público com seu jeito cativante e descontraído. Parece estar muito à vontade, frente ao oceano, que simboliza liberdade, longe das garras da leis e da hipocrisia. Nesse contexto, Jonnata Doll se põe como só mais um que tem inquietudes e reclamações a fazer, só um cara que poderia ser tantos outros que também andam pelas ruas de Fortaleza, de todo o Brasil e de todo o mundo.

Marina Moretti

Aquele Cara está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2013