Um ensaio sobre a cegueira e a cegonha

estatua

por Bianca Elias –

A curadoria que pensa unir, na mesma sessão, um stop motion engraçadinho à ficção surreal e a um drama familiar deve ter seus nós muito bem amarrados para tal arranjo. Na Mostra Brasil 4, a intersecção dos curtas-metragens exibidos acontece de maneira singela e com alguma quebra de linearidade que avisa o desafio da seleção.

De maneira geral, a sessão passa por um lugar desconhecido, mas que vem ganhando espaço na realização brasileira. Um cinema de gênero, guiado pelo hibridismo entre o suspense e o terror, que aprimora seu conceito narrativo pela tensão atingida por meio da não evidência, do não mostrar. Filmes maturados na ausência de história direta e manifesta, que abrangem o mistério e a dualidade das ações nas sensações do espectador, ou que, em terreno diegético, desconhecem os personagens sobre seus próprios percursos. Ainda, o julgamento de suspense travado neste tipo de produção encontra abrigo no referencial internacional, deslocando ao mesmo tempo em que encontrando um eixo particular do cinema brasileiro.

Cloro, dirigido por Marcelo Grabowsky, estreia seu primeiro plano com um feixe de luz que aparenta vir do olhar da protagonista para o sol. No entanto a adolescente Clara, vivida por Ana Vitória Bastos, não procura um lugar ao sol; já o tem todo para si. A repercussão da vida ociosa na beira da piscina de uma mansão no Rio de Janeiro é gerada através de acessos de raiva, sonhos eróticos com o empregado negro e a nascente de um desejo da morte do pai. O curta se desenvolve pelo progresso das pistas que levam à imaginação do que se trata o final, mas os diálogos insistem em esconder o que é que de fato acontece na vida da família. Sabemos apenas das demonstrações inconscientes de Clara que, não podendo ter nada, pode ter tudo. Fundamentado em uma ficção de ordem familiar, Cloro carrega elementos tropicais tal como o sol, a manga e o corcovado, mas definitivamente não se funda na realidade brasileira, e muito menos na realidade da família brasileira.

Estátua, no mesmo limite, atinge seu percurso de começo meio e fim por uma mise en scène operadora da duplicidade do observador e do observado. Entre o voyeurismo encarnado pela câmera distante e a parcialidade da câmera próxima sincronizada com o som da respiração e o coração batendo forte, a diretora Gabriela Amaral Almeida situa um suspense dentro de uma locação com apenas dois personagens centrais – Isabel, uma babá grávida, e Joana, uma menina quieta e aparentemente aborrecida com tudo. Também em voga o abandono familiar, não há aqui esconderijo para possíveis entrelinhas de trama: são apenas duas as suspeitas pelo desconforto em cena, embora o desfecho seja um bocado inesperado. Alinhado com o fantasioso, Estátua opera um thriller despreocupado em contextualizar a vida lá fora e tampouco interessado em falar propriamente do sentimento infantil de desamparo e solidão paternal/maternal. O que de fato procura são dinâmicas para a exaltação do inseguro, com isso propondo a exploração dos ângulos, dos jogos corporais e das alterações graduais na relação entre a babá e a menina.

Permanecendo no campo da decupagem que vai ao encontro com a situação em tela, Vento Virado, de Leonardo Cata Preta, encarna a busca para a gênese por meio do movimento de contrastes. O caminhar no escuro e o encontro no claro montam uma busca por identidade e a posterior rejeição das raízes naturais de um homem que com seus 40 anos. Uma simbiose de gêneros que se encanta pelo mistério e a apropriação do lugar nenhum apresenta sua forma assinalada por contrastes de luz e de enquadramentos por vezes tortos, cegos e estáticos em fotografia. O estado de limbo dos cômodos escuros, a apropriação da mulher negra, da reza, e dos penduricalhos quase curandeiros insere um teor espiritual ao filme que fazem sentido apenas no âmbito “homem branco procurando suas origens”, já que o personagem está mais para galã americano. A questão da origem, do não mostrar e do não falar é cara na medida em que não há desenvolvimento da ligação entre o homem e esses elementos tão distantes à sua ordem natural. Evidente que o elo encontrado de cada um com cada qual é sempre pessoal e talvez a particularidade dos elementos seja de esfera absolutamente autoral, mas a injeção da matéria parece forçada a discutir uma ancestralidade que não necessariamente faz parte de todos nós.

A reminiscência de um cinema autoral, que vai do nonsense, passando pelo terror e a comédia, categoriza a produção mais recente de Lucas Sá, Nua por Dentro do Couro. Para além do que possivelmente fala da relação entre condôminos de um mesmo edifício, a escancarada tentativa de se criar um estilo abrasileirado da violência urbana e irônica é funcional quando não sabota nossas verdades nos diálogos, em hábitos e nos costumes de se relacionar. Antes de tudo, a sujeição ao padrão, digamos, comercial de cinema, impede uma submissão aos próprios códigos desse universo. Do cupcake à música pop, os padrões na realidade apenas mostram-se como padrões do imaginário real. Depois e mais uma vez, a opção de não revelar segredos que ninguém sabe, ajudam o filme a se inserir nesse modelo de realização pautado apenas pela instigação da descoberta.

Mas o que vem então, a ser Fuga Animada, de Augusto Roque, nesse mar de produções, algumas mais bem sucedidas que outras, de ligar o holofote para o mistério em desenvolvimento? A quebra do peso, talvez. Uma animação que move a criatura e o criador em uma disputa constante traz consigo a reflexão do que é real em vida e do que é real em tela. Justamente, nas produções na sessão Mostra Brasil 4, abdica-se de certa verossimilhança real em prol da ficção que não busca o estado efetivo e concreto das coisas, mas sim a consolidação de um movimento revigorante para o híbrido thriller/suspense brasileiro. O ensaio é sobre a cegueira de um cinema ainda em surgimento, nascendo, se descobrindo no escuro e trabalhando através das evidências e, sem culpa, referências externas a nós.

Clique aqui e confira a programação dos filmes da Mostra Brasil 4 no Festival de Curtas 2014

Terreno onírico

o castelo

O Castelo, do premiado diretor Rodrigo Grota, com certeza será um dos curtas mais comentados do festival pela qualidade e consistência do trabalho.

O curta flerta com o universo fantástico e de terror. Cinco amigos vão passar o dia em uma floresta, em tempo e local não definidos. O mais tímido da turma, o deslocado Rafael, ao sair de um mergulho na cachoeira se vê sozinho no local e situações estranhas começam a acontecer quando ele encontra uma casa (na verdade, um castelo) abandonado.

Em um primeiro momento pode parecer uma aproximação com A Bruxa de Blair pelos mistérios de um local inóspito. Entretanto o curta flerta mesmo é com o universo fantástico e simbólico de Lars von Trier como em Anticristo, ao apresentar elementos como a natureza como força primordial, mística, cheia de segredos que não devem ser desvendados – tal como Rafael diz em sua única fala do filme, “é um segredo”.

E principalmente com O Iluminado, de Stanley Kubrick. A cena inicial em um plano aberto com pinheiros muito altos em fileira tendo o personagem posicionado ao centro remete ao longa do diretor norte-americano pela cor do céu, pela sensação de solidão e pelo silêncio imposto. A casa/castelo assemelha-se ao hotel de Jack Torrence no estilo arquitetônico de montanhas. Em duas cenas, Rafael mira a imensa fotografia daquele espaço em preto e branco. Um tempo congelado, como a própria casa, abandonada de vida terrena, mas com uma força estranha como em O Iluminado. Os cortes secos na imagem como acontece no longa, blackouts do personagem em sonho, transição para situações de terror. Em uma das cenas, o personagem vê seu amigo morto no chão de um dos cômodos, uma cena filmada em vermelho intenso, um sangue que remete ao sangue que inunda o corredor do hotel de Kubrick.

O personagem Rafael, quieto, é um ótimo observador e ouvinte, está a toda hora com seu gravador vintage e sua câmera fotográfica. Não para menos, os trabalhos de Rodrigo Grota possuem notadamente uma preocupação com a fotografia e o som, fazendo deles quase personagens de suas histórias. Nesse curta o som tem destaque preponderante ao dar o tom da história, ao revelar sons não cotidianos, dar voz ao mistério. A fotografia também impressiona com cores vibrantes lavadas, o que cria uma atmosfera de falsa leveza, onírica.

Esteticamente belo e perturbadoramente inquietante, O Castelo é um excelente trabalho de experimentação narrativa e visual.

Malu Andrade

O Castelo está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Reflexo do medo

O Duplo, de Juliana Rojas, é daqueles filmes assustadores por despertarem um medo de um tipo de maldade diferente. Maldade que encontrei em filmes de Roman Polanski, como O Inquilino (1976), apesar de o curta da diretora paulista não estabelecer essa relação. A maldade presente em O Duplo é uma maldade de outro tipo, aquela que pode estar adormecida dentro de qualquer um, até mesmo da pessoa de quem você menos espera.

É muito simbólico que uma professora do primário de um colégio católico seja afetada por essa influência maligna. Contribui ainda mais para o clima assustador e terrível do filme, completado também pelas crianças (crianças conseguem ser terrivelmente assustadoras). O som do colégio, das cantorias infantis, aquele som permanente de crianças e seus barulhos de meninice.

Esses barulhos do ambiente colegial conseguem ser tão perturbadores quanto o som do elástico batendo na pasta da professora de português, freneticamente. O ambiente construído vai se tornando gradativamente assustador e insuportável.

O Duplo se desenvolve sem mistérios narrativos. As alucinações, o sexo arisco, a transformação da professora angelical em espectro de maldade, tudo leva à mudança drástica da professora. O que é mais aterrorizante neste curta é que essa transformação gradual ocorre sem retorno.

Parece que desde o momento em que viu seu duplo, a professora foi capturada, apenas cedendo aos poucos àquela influência inevitável. A escolha de Sabrina Greve para protagonista não poderia ser melhor; existe algo de paralisante em sua face, olhos profundos que passam um sentimento de angústia e medo.

Não é necessário falar do talento de Juliana Rojas; além de notável, já é bem reconhecido. A direção segura, o ritmo de encadeamento dos planos, a escolha de enquadramentos perfeitos, a economia seguindo a receita “menos é mais”. Nas duas sessões em que assisti a O Duplo, a plateia ovacionou o curta-metragem. A direção madura e consciente de Juliana Rojas produziu um filme de “gênero”, sem abrir mão de escolhas estéticas e sem facilitar para ninguém.

A narrativa sedimentada nos detalhes, as interpretações dos atores, o desenho de som, o ritmo da montagem, tudo funciona organicamente, sem exageros nem apelações. A maldade presente em O Duplo assusta porque é parte da personagem, ainda que seu duplo, seu reflexo sombrio, mas parte dela. Como se existisse em cada um de nós essa faceta reprimida.

Renato Batata

O Duplo integra a Mostra Brasil 8 e a Semana da Crítica. Clique aqui para ver a programação do filme

Marcando posição nas sombras

A diretora Juliana Rojas achou seu lugar. Um lugar estranho, mas que já a coloca como um dos nomes importantes do cinema brasileiro, ressoando também além de nossas fronteiras.

Seu curta O Duplo sedimenta um estilo. Mostra Juliana como cultora de um realismo fantástico com tintas de terror e sua inserção no cotidiano, seguindo uma construção elíptica e de pequenas catarses que remetem ao cinema de Lucrécia Martel e um certo terror atmosférico oriental – Kiyoshi Kurosawa é um dos nomes que me vêm.

O curta narra o encontro de uma professora com seu duplo e as consequências disso. As informações são preenchidas aos pouco. Juliana e equipe são hábeis em trabalhar com esses elementos como, por exemplo, não situar diretamente o tempo em que se passa a história, brincando com o texto introdutório que cita o caso de uma professora no século 19. A trama do curta se passa atualmente e é uma pequena surpresa quando surgem elementos modernos. Coisas assim vão se avolumando até a quebra entre impressão e real no encontro de pais no auditório, e o violento final.

A figura do duplo é recorrente no cinema fantástico. Outro elemento que surge é do vampiro, em um registro mais próximo do canibalismo, como o que Claire Denis fez no longa Desejo e Obsessão (2001). Denis também pode ser citada como influência para o estilo de Juliana, com sua concisão sensorial.

Esse limite com o fantástico não é tão bem visto na história do cinema brasileiro, mesmo com nomes como José Mojica Marins e Fauzi Mansur tendo feito trabalhos extraordinários. Sempre bom ver alguém traçar esse caminho com elegância e expandindo esses limites, já deixando sua marca de excelência.

Carlos Alberto Farias

O Duplo está na Mostra Brasil 8. Clique aqui para ver a programação do filme