Breves anotações sobre o Panorama Paulista

chaplin sp

por Lígia Hsu –

O estado de São Paulo é a mola propulsora do país, correto? Essa visão simplista de um Brasil dependente de apenas um estado felizmente/infelizmente não se aplica à produção audiovisual.
A sessão Panorama Paulista 3, um pequeno recorte do que vem sendo produzido no estado de São Paulo, me fez levantar duas questões:

– Por que somos tão corretos?
– Por que temos medo de ousar?

Os sete filmes possuem ótimas premissas, vê-se claramente um cuidado na forma, na decupagem, nos enquadramentos, na fotografia, no geral são tecnicamente muito bons, mas queria ver mais, muito mais.

Barqueiro, de José Menezes e Lucas Justiniano, fotografado em PB, possui um rigor nos enquadramentos e boa técnica. Tem uma das melhores premissas de roteiro desta seleção de filmes: uma noite na vida de um motorista do serviço funerário especializado na remoção de crianças. O filme avança lentamente até chegar no cerne da questão e apenas nos minutos finais consegue provocar alguma emoção. Recentemente fui uma das “clientes” do Serviço Funerário Municipal de São Paulo e consegui identificar o vazio que aquele espaço provoca através dos planos do filme, a solidão, a frieza do lugar. Tudo isso é mostrado de maneira muito correta e em boa parte do filme minha expectativa era por alguma coisa que desestruturasse esse rigor.

Pequena Aldeia, de Priscilla Pomerantzeff e Luciana Nanci, fala sobre a Praça Roosevelt e começa bem através do olhar de um argentino que vive num grande apartamento da praça. Depois o filme se mantém afastado de seus personagens e a câmera os observa do alto, como se estivéssemos vendo através das janelas. O filme cumpre bem essa visão, através do enquadramento em plongée, seguindo de longe as vidas que povoam a praça.

Tempo é Morfina, de Kamilli Semenov e Rafael Queija, trabalho de conclusão de curso do projeto Instituto Querô de Santos, cumpre com rigor as diversas técnicas aprendidas no curso, mas acaba sendo apenas isso.

USP 7%, de Daniel Mello e Bruno Bocchini, documentário sobre o racismo na maior universidade do Brasil, consegue trazer a essência jornalística de seus realizadores para a linguagem cinematográfica. Mas a discussão, importantíssima diga-se de passagem, sobre o tema acaba sendo unilateral.

Chapa, de Fábio Montanari, é o mais correto de todos e com uma ótima premissa de roteiro: dois funcionários de uma lanchonete são despedidos e resolvem assaltar o estabelecimento no dia do primeiro jogo do Brasil na Copa do Mundo. Uma comédia leve, com ótimos atores. Existe a tentativa da crítica ao novo substituindo o antigo, mas tudo é superficial. Cumpre bem o papel de comédia. Sempre me questiono o porquê de não nos aproximarmos do modelo clássico de cinema norte-americano, afinal, tem funcionado para eles por tanto tempo. O filme se aproxima bem desse modelo e aí vejo a armadilha do negócio: o filme é redondinho, seria assimilado tranquilamente pelo nosso público “sessão da tarde”, mas por se tratar de um filme nacional eu fiquei na expectativa do improviso, da malemolência, do jeitinho brasileiro. Engraçado isso, ainda mais se tratando do filme com mais referências ao Brasil.

As exceções são Conversa, de Luciano Arturo Glavina, que em 8 minutos mostra o encontro de um homem e uma mulher através da poesia do uruguaio Mario Benedetti. Uma única locação, dois personagens, fotografia impecável de Walter Carvalho. E Chaplin SP, de Matias Vellutini, um divertido stop motion que transforma o eterno Chaplin em um personagem tipicamente paulistano. Esses dois filmes tecnicamente tão bons quanto os demais, ousaram na narrativa e assim, aos meus olhos, se destacaram nessa programação.

Todos os filmes de alguma maneira me instigaram a querer ver mais. Mais dessa técnica correta sendo subvertida, mais dos roteiros sendo aprofundados e principalmente mais ousadia em contar histórias do nosso estado de São Paulo.

Clique aqui e veja a programação da mostra Panorama Paulista 3

Ciclo: tecnologia recarregada

ciclo

por Mylena Santos Dantas –

Sons e ruídos de aparelhos eletrônicos. Movimentos e ações repetitivas e contínuas. O universo tecnológico imerso em quatro paredes. Ciclo, de Raquel Sancinetti, é uma animação que revela a solidão das relações humanas em uma sociedade extremamente tecnológica e consumista.

A construção e a estética do cenário – aparentemente uma sala de um apartamento ou de uma casa – é composta de uma colorização em tons escuros e por um ponto de luz que vai de encontro às personagens, sendo atribuída à luz de um aparelho de televisão. Esta estética mais “escura” evidencia o modo de viver vazio e monótono das personagens. Seus figurinos são sóbrios, acompanhando as características do ambiente.

Um homem e uma mulher; um casal. Separados a dois palmos de distância no sofá de sua sala, não exercem nem ao menos algum contato físico. Personagens que convivem no mesmo ambiente, separados por barreiras que os transformam, praticamente, em desconhecidos. Estas barreiras estão espalhadas por todo o ambiente: diversos aparelhos eletrônicos estão dispostos pelo cenário e constituem também o papel de personagens da narrativa.

Homem e mulher vivem em mundos paralelos, em sua rotina diária, cada qual interagindo com seus gadgets, que são trocados em algumas mudanças de cenas, revelando a diversidade de possibilidades que existem no universo tecnológico. A feição do homem é neutra, demonstrando frieza e indiferença à sua realidade, desempenhando suas ações de forma automática. A mulher tenta, em vão, chamar a atenção de seu parceiro; não sendo correspondida, se junta a ele às suas atividades rotineiras. São seres robotizados em função da tecnologia.

Assim como os eletrônicos, eles precisam que sua “bateria” (oxigênio) seja reposta e esse procedimento é feito da mesma forma que em seus aparelhos eletrônicos. A metáfora da “bateria” pode estar relacionada a nós, seres humanos, personagens do mundo real contemporâneo que também precisamos que nossa “bateria seja recarregada”, recarregada pelas novas tendências tecnológicas, estando sempre atualizados nas redes sociais e nos últimos lançamentos do mercado capitalista. Outro fator importante na composição do curta é o som, fundamental e responsável por fazer a ambientação dos aparelhos eletrônicos nas cenas, atribuindo-lhes características, além de evidenciar as ações contínuas das personagens.

Fazendo um paralelo ao tema abordado em Ciclo cito aqui a animação IDiots produzida pela Big Lazy Robot. Nela há características da metalinguagem: os personagens principais são robôs (ou seja, frutos da criação tecnológica) que são viciados em tecnologia, mais propriamente, nos gadgets. Os robôs podem ser comparados aos dois personagens da história aqui analisada, pois ambos usam a tecnologia como uma necessidade vital. Esta, por sua vez em Ciclo, é notada nas personagens sendo “recarregadas”, ligadas à tomada; em IDiots, quando os robôs começam a perder a conexão com seus aparelhos, e acabam voltando às suas atividades, abatidos, como se tivessem perdido sua “força”. Outro paralelo que pode ser estabelecido é a característica “robotizada” das personagens, ambos com a mesma simbologia de seres automatizados, mecânicos, programados.

Ciclo e IDiots possuem o mesmo caráter discursivo: a crítica ao consumo exacerbado da tecnologia, a maneira como ela está totalmente presente e inserida em nosso cotidiano, se tornando um costume, uma necessidade. Raquel Sancinetti, em uma produção inteiramente sua, exerce uma crítica ao mundo consumista e a decadência das relações interpessoais, do diálogo, do contato físico e visual. O elemento “robotizado” é mais uma crítica, que nos assemelha a um objeto, a uma máquina que desempenha funções totalmente automatizadas e mecânicas, necessitando ser sempre “recarregada” através da tecnologia.

Ciclo está na mostra Panorama Paulista 3 e Infanto-Juvenil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Das origens das criaturas

the masters voice caveirao

por Samuel Mariani –

The Master’s Voice: Caveirão é um curta que se relaciona com as temáticas dos filmes anteriores de Guilherme Marcondes. As técnicas de animação diferenciadas como a manipulação direta em vídeo, light writting e o pixilation ilustram bem a liberdade de criação do curta-metragem e a referência ao trabalho anterior de Marcondes, como em Tyger (2006).

A partir de uma locação real bem específica paulistana e uma premissa simples, o curta se desenrola usufruindo de uma boa direção de imagens animadas, ótimo tracking e ritmo. Assim, os espíritos noturnos da cidade ganham espaço para sua atuação temática e burlesca, além de esbanjar seu design lúgubre e bem elaborado.

Desse trabalho com o cômico e o sinistro, Caveirão também destaca uma figura policial autoritária quase humana e sua perseguição aos fantasmas boêmios. Porém, a razão desta caçada se enrola à existência deste personagem vigilante de uma maneira em que a narrativa em primeiro plano parece se justificar retroativamente, o que, ao meu ver, perde para a liberdade expressiva das animações do curta, que me parece muito mais atraente.

Dada esta narrativa justificada ao curta, parece-me pouco comparado à carga folclórica e de herança simbólica das animações, mesmo porque ela ganha mais importância em termos de montagem, pois a exposição do universo “animado” possui mais tempo de tela e é feita de maneira muito apurada.

De qualquer maneira, a locação poluída e a iluminação escassa contribuem para legitimar as animações que dançam em um cenário real, com referências refinadas e transições bem planejadas entre segmentos.

Para além da ideia do vigilante, me encanta no trabalho de Guilherme a sobrevida que o curta-metragem tem quando deixa livre para a imaginação a causa/origem dessas criaturas noturnas paulistanas, mistério e abertura que marca seu trabalho e que o expande para infinitas possibilidades.

The Master’s Voice: Caveirão está na mostra Panorama Paulista 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Um boneco desanimado

edificio tatuape mahal

por Samuel Mariani –

A vida de um boneco de maquetes pode ser muito interessante, não somente por conta da originalidade das suas locações, mas também pela construção de um personagem “estrangeiro” neste mesmo mundo.

Acompanhando o boneco argentino Javier Juarez Garcia pelos stands de venda de apartamentos em São Paulo, é interessante imaginar o que está sendo vendido se não um personagem, um estilo de vida, uma história, um curta-metragem.

Bem assimilado dentro de um arco narrativo, Edifício Tatuapé Mahal se justifica pelo seu conceito, assim como cria um universo narrativo que está sempre se legitimando dentro do contexto do filme. Elementos de quadro e ângulos de câmera temáticos tratam elegantemente da “vida de merda” do boneco Javier dentro de um universo no qual o próprio processo de animação é muito meticuloso: ele estuda o tipo de movimento (ou ausência do mesmo) desses mesmos bonecos, compondo um ritmo bem específico.

A sincronia desses elementos, além de não deixar de trabalhar (e expandir) a narrativa no primeiro plano, trabalha seu tempo para que muitos dos payoffs do roteiro sejam resolvidos com humor.

No final das contas, o curta de Carolina Markowics e Fernanda Salloum dedica-se a uma história de bonecos com motivações bem humanas, e sua característica metafísica e justificativas bem ao estilo Starevich (Cameraman’s Revenge, 1912) geram uma animação brasileira de linguagem universal e bem sucedida.

Edifício Tatuapé Mahal está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Saturno: o trash que nos resta

saturno

por Thiago Zygband –

Se não está mal o curta-metragem brasileiro, é inegável: paira certa monotonia. “Cinema de Afeto”, mais do que nunca. Câmeras contemplativas, diálogos de poucas palavras, sensações, relações orgânicas; a ausência da trilha sonora, tantos e tantos finais abertos, o silêncio que emergiu junto com a percepção do tempo. Não há dúvidas, realizamos produções notáveis sob tais recursos – Sem Coração, por exemplo, de Tião e Nora Normande, acaba de arcar com o troféu da Semana de Realizadores de Cannes utilizando-se dessa forma; além de tantos outros bons títulos no festival deste ano. Talvez ainda esteja dando seus primeiro passos esse tipo de cinema, muito embora Bressane já o faça há tempos. Incomoda, então, é o clima de mesmice que parece ter se estabelecido no curta nacional, e em especial no de ficção, no qual certos maneirismos, temas e abordagens se repetem incansáveis ao longo das Mostras Brasil. Estaremos tão afetivos assim? Por que calam nossas personagens? Algo cheira estranho por estas bandas…

Fazendo troça de afetações desonestas, advogando a boçalidade-geral e o desbunde ético, Saturno, de Savio Leite e Clécius Rodrigues, é o único curta honestamente ruim da Mostra Brasil. Não é bom, nem se pretende: assume o trash e se diverte. Parte do pressuposto da digestão de certa mitologia helenística – retoma a história de Saturno, que come seus filhos por temer a concretização da profecia na qual um deles o destronaria. Mas Zeus se salva por sendeiros tortuosos, destrona o pai e assume o poder do Olimpo, onde reinará imortal. Torna-se ele, então, soberano dos gregos.

Diz-se que todo filho há de matar o pai, mas Zeus também revela-se tirano: o mito permeia as relações do filme. Homens explodem uns aos outros, bocas comem bocas, massinhas degringolam-se, mãos amassam homens. A barbárie é geral.

A enorme quantidade de tipos humanos, assim como dos formatos das animações e do próprio quadro, remete-nos às imagens de TV ou vídeos de YouTube. Colocados no cinema, em objetos toscamente animados, ressalta-se a banalidade da imagem de violência. Uma análise menos cuidadosa poderia reduzir o curta ao mero prazer gráfico da coisa – como há em Tom e Jerry, por exemplo – mas, por ali, não há nada de ingênuo: é um mundo de homens irracionais e deformados, vivenciando situações-limite, circundados por violência e reproduzindo-as sem narrativa sequer. A referência ao mundo grego não é à toa, portanto – aquilo é nefando, a impossibilidade de escapatória é o Trágico, cada qual um pequeno tirano.

Ri-se do absurdo das ações – são sádicos os diretores, também o somos. Jogam-nos materiais em colisões às mentes, a montagem é frenética, anti-contemplativa, a trilha sonora tosca e incansável. Talvez não haja nada para ser ver ali, afinal das contas. Qualquer filme de Transformers é muito mais violento, veloz e histriônico do que podemos realizar por aqui. Saturno é paródia burlesca, portanto, e zomba pela precariedade. Já que o ideário Eisensteiniano da justaposição dos fotogramas diferentes que, trazendo o conflito, sobrepujam o pensamento atávico, hoje soa como utopia velha, ao menos avacalhemos.

O filme de Savio Leite e Clécius Rodrigues reafirma a necessidade do experimentalismo como postura crítica e, em tom de deboche, algo crucial por estas bandas – que cinema não se faz só com adornos. Cinema é ato de resistência, desejo que pulsa, exercício de liberdade.

Saturno está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Sobre o altíssimo nível dos curtas de animação

padre

por Ricardo Corsetti –

Em primeiro lugar, confesso não ser um grande fã dos filmes de animação, mas o fato é que no decorrer do festival, tenho visto alguns trabalhos de tamanha qualidade, tanto em termos técnicos quanto de conteúdo, que acabei até revendo minha opinião sobre o gênero.

A começar pelo excelente curta argentino Padre (2013), dirigido por Santiago ‘Bou’ Grasso. Este lindo filme que tem como pano de fundo temático a ditadura Pinochet, possui um trabalho de direção de arte, no que se refere a composição dos objetos de cena e uso de cores como elemento narrativo, superior até a muitos filmes com cenários reais que eu já vi por aí ultimamente. A paleta de cores básica do filme é toda por composta por tons pastéis, provavelmente visando amenizar o tema pesado que aborda e, ao mesmo tempo, demonstrar o cotidiano de vazio e solidão sob o qual vive a protagonista do curta. Em resumo, um belíssimo trabalho!

Em seguida, eu destacaria o curta de animação francês Billie’s Blues (2013), dirigido por Louis Jean Gore. É no mínimo surpreendente verificar que, embora trate-se de uma animação francesa, este ótimo trabalho possui referências que vão desde o clássico cinema noir (devido ao constante clima de mistério e traição), até à saudosa Blaxploitation setentista, influência visível em algumas cenas que chegam a lembrar clássicos do gênero tais como Coffy e Cleópatra Jones. Merece também destaque a belíssima trilha sonora composta por pérolas do blues e do jazz norte-americanos.

Considero também digno de nota, o curta mexicano O Senhor dos Espelhos (2014), dirigido por Mara Soler Guitián. Ainda que aqui o nível de sofisticação visual não chegue ao mesmo patamar dos filmes anteriormente citados, o fato é que este criativo trabalho, apesar de seu traço rústico, aborda uma temática interessante e sempre presente em nosso cotidiano: o eterno embate entre o homem e a natureza. Destaque também para ótimo trabalho de montagem do curta.

Strange Fruit: respeito ao outro

strange fruit

por Eleonora Del Bianchi –

Southern trees bear a strange fruit/ árvores do sul produzem uma fruta estranha

Entre 1889 e 1940, mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos  EUA […] os negros eram mortos e exibidos ao público: pendurados em galhos de árvores, como  ‘frutos estranhos’… (O Globo, 2012)

Em 1939 Billie Holiday fazia pela primeira vez a performance de Strange Fruit em um  café num porão da rua Sheridan Square numa Nova York ainda segregacionista. A música começava e terminava em completa escuridão. Essa foi considerada a primeira canção explícita contra o racismo, 16 ano antes dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos e contra os linchamentos que ainda ocorriam, escancarando a situação e aflorando reações controversas.

O curta de animação israelense Strange Fruit retoma a música com uma delicadeza imensa, trazendo em seus sete minutos de duração agoniantes a história da visão de uma criança sobre o diferente e o que ele aprende com seu avô. Sem falas, o curta é extremamente expressivo. Após o contato inicial em que o menino verde deixa uma mancha no outro e corre, o primeiro estende a mão e, com um aperto no coração, apesar de inexistente (porque o aperto no coração é do espectador e não da cena), é possível ouvir sua voz dizendo: “Espera, eu não me importo, mas por que você é diferente?”. Quando a criança mostra o lenço ao menino verde após empurrá-lo e fixa a mancha verde no blanço enquanto espera o outro aparecer parece implícita sua voz: “como você ousa me contaminar e ao mundo com sua tinta verde?”.

Além do sorriso de escárnio que aparece após sua demonstração de raiva e aprovação do avô. No final, após ser confundido com um menino verde, ao invés de se colocar no lugar do outro, ele guarda ainda mais raiva: “a culpa foi do menino verde, por ter existido”. Matá-lo parece pouco, ainda com seu sorriso, maior do que nunca, ele também quer derrubar a árvore. “Aqui está a fruta para os corvos arrancarem, para a chuva recolher, para o vento sugar, para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair”.

Por mais que a trilha seja minimalista e de tensão realmente espera- se, talvez, com uma mentalidade de Disney, que por ser uma animação, com crianças, algo de bom vá acontecer. Mas a História não é assim e o curta tambem não. O ódio só gera mais ódio. E a culpa por atos e consequências recaem sobre os mais fracos. A canção Strange Fruit, que pode se relacionar a diversos contextos e momentos históricos, foi escrita por Abel Meropol, um professor judeu, e readaptada agora com o patrocínio do Fundo para Filmes e Televisão de Jerusalém, durante um período delicado no Oriente Médio.

Não é necessário ir muito longe no tempo e espaço para encontrar um exemplo de preconceito ou racismo. Mas da mesma forma como um avô pode dar exemplo, um curta, uma canção e outras formas de arte também, podem. O que faz a diferença é o que e quanto da mensagem é absorvido.

Strange Fruit está na Mostra Internacional 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Amor próprio

guida

por Andréia Figueiredo

O Panorama Paulista 2 com toda a certeza foi uma experiência inesquecível. Saí da sessão ansiando por mais. Por mais do mesmo e mais de obras incríveis e cativantes que te encantam daquele modo sutil. O meu favorito foi o Guida, que pelas palavras da diretora Rosana Urbes, se trata de “uma homenagem a tudo que é velho”. E assim com essa citação, é que passamos a entender mais sobre a história.

O curta-metragem é todo feito pela técnica tradicional de animação em 2D e cria ambientes com formas harmoniosas, belas e verdadeiras, que insere automaticamente o espectador nesse novo universo. A história gira em torno da personagem Guida, uma mulher mais velha e com algumas rugas, que tem uma vida cômoda e sem grandes emoções, vivendo em uma eterna rotina como arquivista há 30 anos. Porém, isso muda ao encontrar um anúncio de jornal que diz que se procura modelos vivos para posar, fazendo-a se interessar.

A poesia do roteiro está inteiramente na procura do que nos motiva, inspira e faz com que nos sintamos vivos. No começo do filme, fica claro que a personagem não se sente bem com o que vê no espelho, simplesmente não aceita que os anos passaram e que sua juventude se foi, o que nos é mostrado quando se recorda de sua aparência quando jovem. Ao ter a iniciativa de posar como modelo vivo, tendo que estar completamente nua, Guida acaba por se libertar de seus medos. Isso nos faz refletir sobre o papel da arte como meio de expressão artística do indivíduo e sua importância para o mundo.

Trata-se definitivamente de uma história de amor. Além disso, da certeza que não importa a idade, o que aconteceu e o que ainda tem a acontecer, a vida está constantemente se renovando. Frequentemente não percebemos as oportunidades que nos rodeiam com o único objetivo de adquirir qualquer forma de crescimento. Guida retrata a beleza da velhice e a mais antiga e complicada história de amor: o amor que envolve amar a si mesmo.

Guida está na mostra Panorama Paulista 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Criador e criatura

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por Valéria Tedesco

Cento e oitenta segundos. Esse é o tempo que Augusto Roque utiliza para apresentar, desenvolver e criar o percurso de personagem do protagonista de seu filme, Fuga Animada. Um pequeno boneco fugitivo que trava, através de diferentes técnicas de animação, uma briga por espaço com os traços que o criaram.

A proposta apresentada pelo curta cria uma discussão em trono da relação entre criador e criatura. A mão que desenha, define a forma, também é a mão que dita os espaços. Utilizando as bordas da folha como o limite para o universo fantasia daquele desenho, delimita o controle sobre sua obra. O criador nesse momento, mantem o papel de detentor dos direitos sobre aquilo que idealizou.

Por outro lado, a obra como criatura, procura pertencer a outros espaços. Nesse momento começa a perseguição e a tentativa de definir quem pode, e quem consegue manter a voz ativa no processo. Quem criou ou a obra que, depois de feita, pode tomar caminhos diferentes daqueles que foram inicialmente propostos. O que entra em jogo não é apenas o desenho em si, mas sua representação e reflexão em outras plataformas.

Por fim, ambos voltam a frequentar o mesmo espaço e, entrando pelo mesmo lugar que saiu, o desenho utiliza a mão, o braço e o corpo de seu criador para reorganizar e juntar novamente os dois mundos. A obra continua sendo de quem a criou, mas quem a criou definitivamente não continua sendo o mesmo.

Fuga Animada está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Fantasma com cara de boi

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O Auto do Boi-bumbá não é feito em Parintins desde a década de 1960. Não deixou recursos sonoros e visuais. Boi Fantasma – meio filme, meio projeto cultural – vai resgatar o Auto perdido a partir de projeções animadas nas paredes históricas de Parintins. Por cima das animações a toada vai sendo cantada como devia ser nos tempos de outrora.

O Auto é divertido e articula figuras da historiografia brasileira: o capitão, o vaqueiro, o índio guerreiro que é batizado. A toada é rápida. A animação abusa de elementos ritmados repetidos, tenta-se chegar a algum ritmo em relação à narração, mas em poucos momentos as duas informações se complementam – e não entram em conflito.

A projeção nas paredes das casas, paredes em que o material de construção e sua estética guardam a memória e a história de Parintins, traduz o significado último do curta-metragem. A memória permanece em suas construções históricas e é sobre elas que vai ser projetado o Auto – a cidade, portanto, o revive em sua própria estrutura.

A escolha para reviver o Auto perdido e, então, fazer deste algo semelhante a um registro visual-sonoro do que fora perdido, poderia ser só a animação ou mesmo a reconstituição viva, organizando um batalhão de pessoas para reinterpretar o Auto sob égide daqueles que o conhecem e o viveram. Mas a imagem que nós temos é latente dessa reconstituição: espectros brancos se animam sobre as paredes da cidade, são como fantasmas noturnos que vieram, a bel-prazer deles, se fazer vivos. O boi fantasma se agita sob a superfície da cidade, assombrando a todos devido tal esquecimento.

A imagem então, além de nos contar a narrativa, é também a memória translada sobre paredes. A falta das pessoas vivas reencenando o Auto na rua faz o curta possuir força: o curta-metragem não é, por si, o estrangeiro que quer reviver as tradições perdidas, mas sim, aquele que guarda em sua linguagem a perda de algo que ainda pode ser recuperado.

Afinal de contas, a voz que canta e que dá depoimentos, é voz de quem é vivo, maior portal das memórias perdidas: os senhores e senhoras participantes da tradição, conhecedores de seu mito e de sua força. A voz é demasiadamente humana e carregada de vivacidade, celebra a tradição oral e se faz presente; enquanto a imagem é morta e vive de luz projetada.

Se faz em Boi Fantasma a contradição entre som e imagem, voz e projeção: um vive e o outro atesta a morte, um relembra o outro recria; e os dois resultam em Boi Fantasma e não no Auto do Boi-bumbá, ainda bem.

Mariana Vieira

Boi Fantasma está na Mostra Panorama Paulista 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013