A LÍNGUA VIVA NO CINEMAOs Espíritos só entendem o nosso idioma, de Cileuza Jemjusi, Robert Tamuxi, Valdeilson Jolasi

por Luisa Rinaldi Petrucci

“Não falamos sobre isso porque dói”. Essa frase é dita pela narradora logo no começo de Os Espíritos só entendem o nosso idioma: nela é explicitada uma dor que a maioria de nós jamais terá a dimensão. A dor à qual a narradora se refere diz respeito ao etnocídio e suas consequências catastróficas, que incluem desde a morte física até a morte cultural e espiritual. O foco do filme, no entanto, repousa na dor da perda do contato com a língua materna. O próprio título revela a tristeza advinda do progressivo desaparecimento da língua, bem como o desejo de se restabelecer o contato com a linguagem tradicional, tida como ponte para o ancestral. O documentário, de tom ensaístico, nos convida a refletir sobre a luta, o território, o sagrado e os saberes indígenas.

O filme se inicia com um poderoso plano de abertura, no qual um grupo de meninos dança: devido ao longo tempo de exposição da câmera, a imagem torna-se borrada, quase como uma materialização dos próprios espíritos em questão, criando uma poética das imagens. Somos visualmente introduzidos ao contexto: desmatamento, lavouras, luta pelo direito à terra, cotidiano, natureza x cidade, passado colonial e tradições indígenas. No entanto, é a partir da narração que somos guiados pela reflexão: a própria língua sendo a conexão com a ancestralidade. Devido ao aspecto predominantemente oral das culturas indígenas, não há registros escritos do idioma, sendo necessário recorrer aos mais antigos para a sua perpetuação. O próprio contato com a língua é o resgate da ancestralidade.

Por sua vez, o cinema e sua linguagem são abordados no filme como uma forma de registro e resistência. Isso pode ser observado na cena em que se faz uso da metalinguagem, filmando-se o próprio ato de filmar. Dessa forma, os diretores se apropriam da linguagem do cinema como uma forma de registro de sua própria linguagem. Como a própria narradora explicita: “com novas tecnologias, um legado deixamos”. É o resgate da tradição e da ancestralidade, por meio da prática cinematográfica.

O grupo de cineastas que integram o Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, de Mato Grosso, transformam o próprio fazer cinema em poesia. É a partir do próprio filme, e de sua possibilidade de construir narrativas, sonhos e de afetar realidades, que se tornou possível moldar a concretude das histórias e das experiências. Como é dito em uma cena: “Hoje não posso falar a minha língua, mas não vou desistir de fazer poesia nela”.

É a partir do cinema, um meio tecnológico, que ocorre o resgate e a afirmação do idioma. É essa apropriação de uma outra linguagem que ajudará na preservação da língua Manoki. É o próprio ato de filmar a fala “A língua Manoki viverá” no idioma original que contribuirá para sua perpetuação. A língua Manoki está viva no cinema.

 

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