A publicidade venceu: sobre o Cinema em Curso

manchas de sangue no porcelanato

por Rafael Dornellas –

Serge Daney, crítico da Cahiers du cinéma, já na década de 1980 atentava seus leitores e escrevia sobre como a publicidade e suas práticas ganhavam força e se inseriam nos filmes de forma já naturalizada pelos novos cineastas. “A vizinhança já turva entre o cinema e publicidade já não era mais razão de ser”. Gerações de diretores se postavam inocentemente assimilados pela legitimação cultural e estética da publicidade. Daney alertava para como o cinema já não era mais uma “aventura do olhar”. Era claro para o crítico francês que entrávamos em uma fase em que a imagem era impressa através de inúmeros arquivos e spots televisivos de um mundo já visto e codificado: que não podia, ou não conseguia mais, ser redescoberto. As circunstâncias eram observadas de um patamar superior, de uma concepção pré-catalogada de centenas de anúncios destinados ao lucro e as imagens não mais resultavam de um exercício de olhar – de descobertas –, mas de conceitos pré-fabricados resultando em filmes que mais pareciam, a princípio, vender algum produto.

Destas primeiras análises às conjunturas contemporâneas entre publicidade e cinema pode-se perceber filmes produzidos a partir de práticas publicitárias de criação: apuro técnico impecável, um juízo específico e duvidoso daquilo que é considerado belo, uma “grande ideia” balizadora por trás de uma obra, abstrações frágeis e fuga do conflito para o etéreo “belo” porém vazio. O que se vê, portanto, são filmes carentes de uma história concreta, de um olhar frontal para o conflito e de um receio de se aproximar de suas personagens – de uma não-tomada de posição e uma recusa inconsciente de olhar para o mundo.

Ter as sessões de filmes universitários como um panorama é, primeiramente, a percepção de algo sintomático também presente no cinema brasileiro em geral – uma possível consequência do tecnicismo contemporâneo que procura, cada vez mais, formar técnicos capacitados para o mercado de trabalho. Procuro através deste texto levantar algumas questões a partir de filmes presentes nas sessões Cinema em curso – e um filme da Mostra Brasil 9 – e suas estratégias de linguagem, sob a ótica da publicidade, de práticas provenientes da comunicação: vídeos institucionais e internet, e de caminhos tomados pelo cinema, já a algum tempo, no ambiente contemporâneo.

A busca pelo belo, informativo e ágil

Look-fashion film, Mulheres desenhadas e Janelas imprimem a estética publicitária em suas belas imagens e afastam ainda mais o cinema de sua constituição. Look-fashion film carrega em seus planos a recusa pela progressão narrativa. Assume o sensorial e tece seus quadros buscando a sucessão de símbolos e a perfeição – publicitária – da imagem, que mais parece comercializar um produto do que desenvolver uma sensação.

Mulheres desenhadas contenta-se com a informação, como vídeos institucionais realizados dentro de empresas. Não há busca pela progressão em seus temas. Sua estética informativa e regressiva é freada na superfície e segue, até o final, na mesma baixa intensidade. Em Janelas, a internet, o vídeo sob a ótica do YouTube, o formato ágil, narração sagaz e bits que se distanciam muito do cômico e do experimental que o curta parece flertar. Vemos enfim a imposição da linguagem da internet, de vídeos publicitários e institucionais, sobre a lacuna dramatúrgica.

Vazio abstrato

A abstração como válvula de escape. As não-tramas etéreas que parecem possuir em sua concepção uma “grande ideia presente por trás do filme”, mas que carecem de conflitos reais e concretos, se fazem sentir em O asfalto e Debaixo das cerejeiras. Nesses filmes há a sugestão, o simbolismo, a metáfora, aquilo que não se vê mas deveria se sentir: a busca pela reflexão. Personagens melancólicos – também uma tendência – perdidos meio à contemporaneidade opressiva e turva. E uma câmera que olha seus objetos de modo ainda mais cauteloso e sub-reptício. O resultado é o vazio. Uma carência de concretude que catalise as abstrações e atinja o sentimento desejado no espectador. Não há materialidade o suficiente para a apreensão do público – sem algum amparo material, as tramas já nebulosas se dissolvem em um desguarnecido enigma impossível de se decifrar.

Debaixo das cerejeiras dedica sua quase totalidade para criar sua atmosfera, seu apreço pelo desconhecido no corpo do jovem protagonista, pelo mistério que a câmera parece querer descobrir junto dele. Pequenas pistas são lançadas apenas para aumentar a expectativa. Expectativa esta que se abandona antes mesmo de ser quebrada e revelado o cadáver no clímax. Temos uma sucessão de bem fotografados exercícios de sensações sem posicionamento.

O asfalto explora um acontecimento trágico e o suspense por sua repetição. A tentativa de hipertrofia do prenuncio do desastre, do momento do acidente, de composição da dúvida daquela personagem enigmática desfalecida, da progressão da descoberta do espectador para finalmente em seu final a revelação impactante. Mas mais uma vez, a assepsia da imagem frígida excessivamente bem tratada, o protagonista vazio e perdido meio à metrópole. A carência do choque, da tomada de posição e da exploração das intensidades nas interações. Não há conflito, não há suspense, não há sentimento.

A abjeção do YouTube

Vídeos filmados e postados na internet de atrocidades e aberrações, que dia-a-dia são manchetes e temas de programas de TV e agora estão nas telas de celulares, são apropriados e expostos pelo filme Este ambiente está sendo filmado?, curta universitário presente na Mostra Brasil 9.

A narração o carrega com tom sério e o coloca naquele patamar que observa o mundo de cima, pregando sobre as mazelas e os pensamentos humanos, distanciado, intensificando seu peso já excessivo. O exercício do olhar se revela uma seleção da violência cotidiana presente dentro de um grande catálogo de imagens que é a internet e uma realização de escolhas dentro dos próprios vídeos: congelamento da imagem, aproximação dos rostos, divisão de tela. O exercício de descoberta de mundo inexiste. Ao contrário, dá lugar a uma perversão fílmica cegada em meio a procedimentos de agressão a seu espectador.

Apesar da diferença de formato, Este ambiente está sendo filmado? remete a filmes contemporâneos como Relatos selvagens e diretores como Lars von Trier. Ou seja, um cinema perverso, sádico, que retrata a violência do ser humano acobertado por sua estética autoral, por um cinismo amparador da crueldade construída. Novamente: a carência do olhar, a observação vil do ser humano, de cima, confirmando a deformidade de um mundo já descoberto – a construção abjeta de um filme que se afunda em suas próprias imagens, banalizando-as ainda mais e tornando-se apenas mais uma janela sensacionalista além da internet e da TV.

Bem longe da alteridade

Por fim Mancha de sangue no porcelanato, um curta metragem resultado de uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo de tentativa de discussão, contextualização e problematização da classe média/alta e seu papel social (O som ao redor, Casa grande e Brasil S/A, por exemplo). Partindo de um anseio de aprofundamento crítico sobre uma classe e exposição da mesma em observações de costumes, são desenvolvidas muitas vezes obras límpidas, higienizadas, em que a visão autoral do diretor suprime o objetivo primeiro. Terminamos pela anti-dialética. Pela exposição de excessos e caricaturas que prega para convertidos em salas de cinema constituintes, em sua grande parte, de uma classe média pronta para rir de si mesma.

Mancha de sangue no porcelanato explora o que já havia sido cena do filme de Kleber Mendonça. Uma assembleia de condomínio. Desta vez um condomínio residencial de alto padrão, fechado, cercado por muros. Não há um caminho a ser tomado pela discussão. Nem uma reflexão acerca das origens de tais comportamentos mesquinhos. Há, apenas, o riso fácil, o esgarçamento do que de pior pode haver nesse convívio social e a exposição de tais caricaturas para o público. Distanciamento irônico nefando: consequência também da publicidade – limpidez e brilho frente a uma ideia pré concebida de mundo. Higienização da linguagem. Não há contradição, alteridade e uma possibilidade de problematização de valores. Há somente o olhar debochado e cínico sobre um universo matematicamente construído para criticarmos suas interações com um riso no canto da boca.

Ausência de obstinação

Concluindo, é importante resgatar o texto de Luiz Carlos Oliveira Jr, publicado na revista Contracampo em 2008 com o título de A publicidade venceu, em que ele não somente retomava Daney, mas alertava que além da diluição perversa da estética publicitária no cinema, a crítica – e último refúgio de resistência a tal prática – parecia haver também perdido a capacidade de percepção: “A publicidade e suas práticas mais hediondas se naturalizaram no cinema (brasileiro, mas não só). Nessa visão de cinema, o ‘criar’ não é mais identificado a um trabalho dinâmico com a matéria; é um retrocesso simbólico, onde a ideia passeia livre, leve e solta – a ideia sobrevive à perda de vínculo com o pensamento e com o olhar.”

A crítica em Daney, assim como em Oliveira Jr, é diagnóstico de práticas naturalizadas dentro do cinema, mas que se distanciam dele próprio, e, se não são novidades no contexto contemporâneo – pelo contrário, estão presentes há algumas décadas no meio – se desenvolvem, progressivamente, despercebidas e perniciosas, tomando de assalto aqueles que seriam os últimos redutos de combate a elas.

Memórias do Cine Argus: generosidade com o passado

memorias do cine argus-ed

por Rafael Dornellas –

Cidade de Castanhal, Pará: uma fusão entre o desbotado prédio do antigo Cine Argus e uma loja de material de plástico é realizada sob o mesmo enquadramento nos primeiros instantes do curta-metragem. A diferença entre as imagens do velho e do novo é clara. Mais significativo do que sua aparência é aquilo que é produzido nos dois tempos fundidos na transição: em um deles, plástico; no outro, cinema. É desse contraste que Edivaldo Moura usufrui para dar vazão a seu filme, e seu resgate à memória.

Não é a monumentalidade do prédio que é colocada em questão. Não é um olhar monumentalizante. O choque inicial entre arcaico e moderno é necessário para que se construa a partir de então a personalidade do antigo, ou daquilo que restou das memórias passadas. Os frequentadores, funcionários, seguranças, idealizadores, e todas as pessoas que de alguma maneira tiveram alguma relação afetiva com o finado Cine Argus, têm seu depoimento registrado no filme. E esse é um dos pontos centrais de Memórias do Cine Argus: a relação de afetividade e de homenagem ao cinema, e particularizada neste local específico, é sempre mediado através de pessoas, de suas falas.

O caráter humano se faz ainda mais necessário uma vez que é estabelecido um embate crítico entre o arcaico e o moderno na primeira fusão citada acima. O olhar se volta para o passado, para o humano. O edifício de décadas atrás projetava filmes e resultava em um acontecimento social na interação entre os moradores da cidade. Já o prédio novo é frio, empresarial.

Não havia outra maneira de abordar esse cinema de rua que não essa, de entrega, de abertura sentimental, de uma percepção da necessidade e importância de preservação da memória. O olhar generoso para o passado e para o cinema faz desse um documento honesto acerca de um cinema de rua desativado, e também de um momento histórico para um pequena cidade do Pará.

Sem idealizações gratuitas, os depoimentos também carregam em sua impressão imagética o desgaste e reclusão pelo tempo. Antigas fotos dos rostos jovens são intercaladas às rugas do tempo presentes, e o ponto máximo da humanização desse olhar é o momento em que o filme se atém a falar sobre o seu Duca (idealizador do cinema de rua de Castanhal) e como sua morte representou o fim daquele cinema.

Então a reflexão: a defesa realizada pelos moradores da cidadezinha de um cinema que possua sua recepção presente em tela grande, em um ambiente em que haja interação coletiva, contrariamente à dispersão do vídeo. Há, nas memórias dos entrevistados, a indicação de uma razão social presente naquele cinema – a possibilidade de convívio que era estabelecida pela chegada de um novo filme em cartaz, e a constatação de acuamento e reclusão perante o mundo pós-moderno.

Ainda que a narração do diretor que abre e encerra o filme possa parecer romantizada por demais, ela expõe sua honestidade perante o Cine Argus da mesma forma que os moradores de Castanhal relatam sua relação com esse cinema, da mesma forma também que nos são revelados os diversos cartazes de filmes que passaram por ele, documentando e resgatando a memória – em que o antigo, se não é idealizado em relação ao moderno, nos parece uma opção mais humana, enraizada na experiência de participar de uma sessão no cinema assistindo a filmes de cinema.

Memórias do Cine Argus está no Cinema em Curso 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Universo: Sob a luz do cinema

universo

por Rafael Dornellas –

Pensemos nas gerações de cineastas que nasceram da cinefilia, da construção de um olhar a partir de um passado sólido do cinema, dos primeiros formados em cursos de cinema de universidades, dos maneiristas pós-modernos, pós-Nouvelle Vague. Para eles a questão não era subverter o que havia sido cimentado até então, não era questionar a mise en scène classicista e desenvolver uma nova encenação. Não era o choque. Essa questão já fora desmembrada e posta à prova por Godard, Rivette e outros “jovens turcos” na França nos anos 60. Não somente o cinema clássico já estava estabelecido, como também o moderno, o novo.

Para as gerações pós modernas, então, antes de posicionar sua câmera era necessário realizar toda uma reflexão acerca do cinema e encarar de frente o peso do passado já estabelecido. A busca pelo segundo grau da imagem, pela ressignificação de um plano, sua hipertrofia e monumentalização, deu luz a um cinema compromissado com a cena, compromissado com o próprio cinema.

No curta metragem Universo, de Nicolas Thomé Zetune, presente no programa Cinema em Curso 2, destinado a curtas universitários, a história e seus conflitos é dada de maneira direta: um encontro entre um homem e uma mulher, suas lembranças, sua paixão, seus obstáculos e sua entrega. Aqui não há preocupação com virtuosismos narrativos, sacadas de roteiro, pistas, recompensas e elucubrações abstratas. A responsabilidade é com a encenação, com a materialidade das interações em quadro. Mais do que homenagem e citação, Universo parte de um passado sólido da história do cinema e se utiliza desses elementos para construir um olhar sobre o mundo e situação que se filma.

São Paulo é filmada sem grandes simbologias e deslumbramentos. Acompanhada por uma trilha sonora operística, a cidade intercala a interação que se dá frente à câmera: seca, rígida, resultado do estranhamento desse encontro abrupto registrado a partir de uma câmera fixa, que desloca o eixo central do quadro em momentos de aproximação do casal, descentralizando a ação e materializando o já citado estranhamento.

Há na interação do casal protagonista o afastamento de um naturalismo que buscaria alguma empatia sentimental com o espectador. A relação é exposta nas falas de forma dura e construída a partir de ações que residem nos gestos – como no momento de suspensão que precede o ato sexual no qual vemos a mão de uma das personagens lentamente se direcionando ao corpo de seu companheiro –, trazendo como pano de fundo a trilha musical intensa que produz um choque à imagem e a circunstância dada.

O rigor formal, o plano fixo e os choques construídos nas elipses apontam para um caminho sintetizador de uma reflexão necessária acerca do próprio cinema, para uma consciência de se encarar o peso de seu passado, lidar com a crise proveniente desse peso e resultar na síntese desses elementos. Um filme na contramão, realizado em um ambiente de cinema universitário que carece de tais reflexões, de um momento atual frágil em que não há compromisso algum com a linguagem utilizada, tomado por filmes vazios, “espertos” e formalmente invadidos por uma estética publicitária estéril em que a beleza imagética se justifica nela mesma e resulta em obras purificadas por um equilíbrio asséptico.

Poderíamos evocar diversos cineastas como possíveis referências para o desenvolvimento do curta em questão. Mas a força de Universo vem justamente da absorção de referências para o desenvolvimento de um objeto específico, da supressão de fetiches baratos e citações gratuitas a favor de um todo sintetizador consciente daquilo que se filma: é a colocação assumida de se realizar um filme que carregue em suas imagens o cinema em si. É saber que se filma carregando nos ombros o seu passado estabelecido. É o compromisso com o cinema.

Universo está na mostra Cinema em Curso 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Janelas sem paisagens: sobre o cinema universitário

janelas

por Giovanni Rizzo –

Sempre é muito interessante para um estudante de cinema como eu acompanhar a mostra Cinema em Curso dentro do festival, ver o que jovens pensam e fazem do cinema. No programa 1, porém, penso que o resultado não foi dos mais satisfatórios e parto do filme Janelas para exemplificar o que concluí daquele conjunto de curtas e do cinema universitário ali representado.

Janelas é um curta-metragem experimental, no qual o protagonista, Marcello, comunica-se com o mundo através de sua janela. Todavia, quando ela apresenta um defeito desta fica sem saber o que fazer de sua vida. A metáfora é a mais clara possível e também opera apenas no plano superficial da obra: aqui o principal é mostrar toda sua “experimentação”. Embalado por uma trilha sonora constituída de Giuseppe Verdi, a voz do Google tradutor e Jorge Ben, a película de Raphael Calheiros está mais preocupada em mostrar seus exageros com a fotografia, utilizando uma iluminação verde e vermelha, um ritmo até certo ponto incomum, onde o eixo está sempre sendo quebrado, e uma direção que a todo instante tenta romper com o tradicional e o esperado.

E se coloco experimentação entre aspas é porque não se vê nada de novo neste curta. Pode-se encontrar este estilo de fotografia, edição e direção em um filme quase nada experimental, mas sim videoclípitico dos anos 90: Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. Contudo, no longa americano as cores estranhas da luz e o estilo da mise-en-scène refletiam os sentimentos e anseios dos personagens; aqui, nem isso.

Janelas é um filme que de certa forma fetichiza sua técnica, o fim está nele mesmo e em todos os seus recursos gráficos e estéticos, e em nenhum momento leva em consideração a relação da obra com seu espectador, não esclarecendo as possíveis ideias que esses recursos poderiam conter. Dessa maneira, o filme encerra-se no seu próprio prazer em experimentar – uma masturbação técnica –, fechando-se em si apenas pelo prazer próprio.

De que adianta uma radicalização formal, ainda que tecnicamente correta, sem um embasamento teórico, e talvez aqui seja um dos grandes problemas. O filme não tem um conteúdo que sustente suas extravagâncias formais. A metáfora do mundo com uma experiência mediada é atual e necessária, mas mal abordada, pois o curta trata seu conteúdo com superficialidade: não inclui novos pontos na discussão e tece uma metáfora simples e de fácil compreensão, que se esgota rapidamente.

Aqui poderíamos falar dos demais filmes do Cinema em Curso 1: Look Fashion Filme, Banzo ou Debaixo das Cerejeiras: todos dizem muito pouco, não são filmes que o espectador sai instigado a respeito dos questionamentos levantados na sala de cinema, ainda que possa ficar espantado com a qualidade técnica dos filmes universitários. Mas será mesmo que isso basta?

E verdade seja dita, há um intrigante curta no programa: Pequeno Objeto A, mas de vez em quando deve-se escancarar o que não funciona tão bem, para que essa produção seja discutida e sempre melhorada, já que o cinema em curso é uma amostra do futuro do audiovisual brasileiro. O que parece é que nas escolas de cinema, principalmente em São Paulo (digo isso pois faço parte de uma), há várias câmeras nas mãos dos novatos diretores, mas poucas ideias na cabeça.

Janelas está na mostra Cinema em Curso 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Começou o Crítica Curta 2015

26º festival internacional de curtas metragens de são paulo curta kinoforum

Estamos a um dia do começo do 26º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. E como acontece em todos os anos desde 2005, a oficina Crítica Curta convida estudantes de curso de de audiovisual em instituições da cidade a produzir reflexão em texto sobre os filmes exibidos no festival. A coordenação do projeto neste ano fica novamente a cargo do crítico de cinema, pesquisador e jornalista Heitor Augusto.

Assim como no ano passado, este blog volta a ser o espaço de publicação dos artigos, apostando que a publicação no ambiente virtual permite mas possibilidades de circulação dos textos e diálogos com os leitores – realizadores e público em geral. Os participantes da oficina terão a responsabilidade de assistir diversas sessões que compõem o cardápio do festival. Suas reflexões estarão concentradas nos curtas das mostras Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso e Latino-americana.

O blog Crítica Curta terá posts diários, escritos pelos “calouros” (que participam da oficina pela primeira vez) e “veteranos” (que já compuseram o projeto no ano passado e são convidados). Você pode acompanhar as atualizações pelas redes sociais, seguindo o Twitter da Kinoforum [clique aqui] e curtindo a página do Facebook [clique aqui]. No topo de cada post no blog você encontrará um botão para compartilhar os textos.

A navegação é simples: na parte superior da home page estão os posts mais recentes. Do lado direito da metade inferior da home você poderá procurar por textos usando tags (nome do filme, nome do diretor, nome do autor, tema do curta etc). À direita de cada página há a nuvem de tags, que aponta os tópicos mais comentados nos textos.

Abaixo está a lista dos calouros que participam da oficina neste ano:

Adriana Gaeta
Armando Manoel Neto
Giovanni Rizzo
Janaina Garcia
Juliana Souza
Lígia Jalantonio Hsu
Mariana Moura Lima
Raphael Gomes
Rafael Dornellas
Rodrigo Sá

Sejam bem-vindos e boa leitura!

Termina mais um Crítica Curta

audiencia de cinema

Dezessete estudantes de cinema e comunicação. Doze dias de cobertura de filmes espalhados pelas mostras Brasil, Internacional, Panorama Paulista, Latino-americana, Diversidade Sexual e Infanto-juvenil. Chega ao fim mais uma edição, a 10ª, do Crítica Curta, oficina de crítica de cinema que acontece durante o Festival Internacional de Curtas-metragens, cujos textos são publicados neste espaço.

Os textos produzidos neste ano continuarão disponíveis no blog, servindo como fonte de pesquisa para os próximos anos, ilustrando como esse ou aquele curta foi recebido no calor da hora. Para realizar uma consulta de um texto ou filme específico, basta usar o campo de busca na página inicial do blog (no topo, à direita, desta página), digitando o nome do filme. Se desejar navegar pelos assuntos que mais apareceram nos textos, basca fazer uma busca utilizando uma tag sob a qual as críticas foram marcadas (por exemplo: “adolescência”, “violência”, “política”, “animação”, etc).

É possível também efetuar buscas por meio da mostra em que os filmes foram exibidos. Lobo abaixo o campo de buscas, navegue por um dos itens tópico Filtro por Mostras.

Como coordenador do projeto, deixo aqui um agradecimento aos oficineiros que se comprometeram em realizar reflexões a respeito do curta-metragem, ao Festival de Curtas por manter a atividade, e aos leitores que acompanharam a cobertura por aqui.

Heitor Augusto

A Nau dos Loucos: o quinto Império

a nau dos loucos

por João Pedone –

Eu, enquanto produtor do filme A Nau dos Loucos, sinto-me na obrigação de adverti-lo antes de começar a escrever. Não participei diretamente do processo criativo do filme nem tenho intenções propagandísticas, escrevo tão somente porque o filme me toca. Se alguém perceber aqui faltas para com a ética de crítico, peço-lhe desde já que me perdoe a falha indesejada [N.E.: A Nau dos Loucos foi produzido como um exercício de realização na ECA-USP e exibido no festival dentro do programa Cinema em Curso].

O filme abre com seus créditos iniciais em silêncio, e termina em silêncio sem créditos, de cara rompendo com a convenção estabelecida de experiência cinematográfica. Apresenta-se como um anti-filme. Esse silêncio sepulcral – artificial – atravessa toda a primeira sequência do filme: longa, não dramática. Há duas personagens, são músicos, mas o filme vai adiar sua apresentação.

Há uma ficção: as pessoas estão deixando São Paulo. É uma narração em voice over que, de maneira muito curiosa, se sobrepõe a imagens quotidianas do trânsito, e à figura também absolutamente quotidiana de um vendedor ambulante. O que continua a nos estranhar é o silêncio que toma conta da cidade de São Paulo.

Depois dessa exposição um tanto árida do cenário de um suposto êxodo coletivo, os músicos aparecem em primeiro plano para tocar sua música. Da mesma maneira que essas personagens se inserem (sua ação, suas roupas, sua fisicalidade) de maneira completamente destoante das outras personagens e do cenário, a montagem do filme as isola em um plano “à parte”: cenário sem profundidade e situação acronológica. Essa dupla está evidentemente destacada do filme, eles são o comentário dos realizadores sobre o próprio filme.

Felizmente, ao contrário de muitas obras autoindulgentes, a voz dos realizadores aqui se faz necessária para esclarecer a absoluta hermeticidade dos primeiros minutos de filme. Assim, quando eles cantam “vai embora, povo ingrato” e “esse silêncio que agora impera é o que sempre desejei”, completam o sentido do filme, mostrando-nos que a ficção que – à maneira de Othon, de Straub e Huillet – se desenrola sobre o pano de fundo da realidade é a ficção que os próprios diretores projetam sobre a cidade. O silêncio é o próprio desejo deles por silêncio que se impôs à representação. Há uma busca do filme por reencontrar paz, nem que seja fazendo tabula rasa da cidade.

Se o barco, ao final do filme, busca escapar, o plano de encerramento parece estático, margeando o rio sem jamais se desprender da visão da cidade. Há um evidente afeto pela cidade (“foi aqui que eu nasci, é aqui que morrerei”), que faz do filme um hino de amor a São Paulo – o que nada parece carregar de ironia. Um hino de amor e a projeção de um futuro melhor. Se essa projeção é romântica e idealista, isso não a desqualifica, porque essa parece ser a única saída possível. Já que a realidade material da cidade de São Paulo não oferece alternativas de transformação, o único caminho é o gesto desmedido, a negação da razão, a projeção de uma ficção subjetiva sobre uma realidade castradora, lembrando que a projeção, assim como o projeto, aponta para o futuro. Afinal, “nada deve parecer impossível de ser mudado”.

A Nau dos Loucos está na mostra Cinema em Curso 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A emergência do silêncio

vao livre

por Lucas Navarro –

Antes de tudo, claro, o impasse. A fala que tenta voltar après-coup ao gesto da irmã busca desfazer os lacres que encobrem o inefável que a sustenta. Esvaziada de significações compartilháveis, ela respira o fracasso da intenção comunicativa. Todo esforço está mobilizado para aprender a “dizer de outro jeito” aquilo que o maquinário da linguagem não consegue mais submeter em discurso assimilável (“podia ter dado certo no jornal”, lamenta a mãe) tendo que, para isso, adequar sua voz à violência da atmosfera. Aprender a dizer de outro jeito requer, porém, um trabalho rigoroso sobre corpos em cena para que, somente a partir dessa organização, a voz reconcilie o sentido original sobre o qual vacila, devolvendo a autenticidade da experiência narrada.

Dividido em datas que funcionam como uma espécie de antecâmara daquilo que ouvimos nos créditos, as cenas de Vão Livre mostram uma identificação progressiva da protagonista com a continuidade das lutas deixadas pela irmã. Contudo, essa luta é sempre prorrogada entre discussões e palpites sobre possíveis datas e possíveis pautas. Essa espera no interior dos tableaux é responsável por uma aparente passividade que, por sua vez, é antes efeito da intensificação da sensibilidade, de uma atenção excessiva, que aproxima a crítica do advento desejado. Uma variante dessa imagem está justamente na passividade produtiva da mulher que gera, em seu silêncio, o sentido da conversa. Se aquilo que conhecemos de sua irmã é pura ação, aquilo que vemos, do seu lado, é pura hesitação – detalhe que dá à personagem o peso de duas memórias conflitantes: a tranquilidade, tão cara à sua avó, e a coragem mobilizadora da irmã. Tradição e ímpeto, como soma de lembranças, são forças antagônicas que movem o filme de uma disposição não contaminada pela percepção entorpecedora do passado ao privilégio do instante como único possível de afirmar seu compromisso com o presente.

Concebido como projeto de conclusão de curso momentos antes à irrupção das manifestações de junho, a produção de Bruno Marra e Steffi Braucks atravessou o evento incorporando alguns elementos junto àqueles já existentes na ideia inicial. Isso para esclarecer que não incorro aqui afirmando a redução da obra como reação direta ao calor episódico do protesto, mas na tentativa de perceber a capacidade transitiva interiorizada no processo. Responde ao seu tempo histórico sem trai-lo ou ser seu escravo. Esse amálgama entre crítica e contexto fica ainda mais claro se notarmos as diferenças brutais entre esse filme e aqueles realizados in loco (Rio em Chamas, 20 Centavos, Junho), cuja força reside tão somente numa descrição irrefletida dos fatos acreditando, pela proximidade estabelecida, enxergá-los objetivamente. Quando revistos no momento atual suas imagens parecem esgotar um referente aflorado sob uma pressa vertiginosa pela qual experimentamos outrora o prazer de nos deixamos violentar as retinas. Vão Livre, por sua vez, evoca uma violência simbólica, e silenciosa, tão atual que poderia ter sido feito amanhã.

Se já acostumamos a ver na produção universitária uma conformidade estética (política, portanto) com tendências já consolidadas cujo preço se dá na abdicação da tradução ativa no curso da história, observo que, aqui, não é o caso. Vão Livre compõe solitariamente o panorama da mostra Cinema em Curso. Isso por que ele nos apresenta um conflito irredutível ao núcleo da família ou do indivíduo tomado como berço dos sentimentos e expressões, preferindo revelar um colapso que transborda os limites do espaço privado, dentro da qual era ainda possível reconhecer um princípio de causa. A emergência desse novo olhar está em perceber que a obra, antes de encerrar o assunto que a engendra, ascende, num movimento de luz, o impacto estético fundamentado naquilo que Rivette chamou de um “elo entre algo exterior e muito secreto, que um gesto imprevisto desvela sem explicar”.

Vão Livre está na mostra Cinema em Curso 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Vem aí o Crítica Curta 2014

foto  25 festival de curtas-ed
Estamos a uma semana do começo do 25º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. E como acontece em todos os anos desde 2005, a oficina Crítica Curta convida alunos de audiovisual a produzir reflexão em texto sobre os filmes exibidos no festival. A orientação e coordenação do projeto neste ano fica novamente a cargo do crítico de cinema e pesquisador Heitor Augusto.

Assim como no ano passado, este blog volta a ser o espaço de publicação dos artigos, apostando que a publicação no ambiente virtual permite mas possibilidades de circulação dos textos e diálogos com os leitores – realizadores e público em geral. Os participantes da oficina terão a responsabilidade de assistir diversas sessões que compõem o cardápio do festival. Suas reflexões estarão concentradas nos curtas das mostras Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso e Latino-americana.

O blog Crítica Curta terá posts diários, escritos pelos “calouros” (que participam da oficina pela primeira vez) e “veteranos” (que já compuseram o projeto no ano passado e são convidados a retornarem). Você pode acompanhar as atualizações pelas redes sociais, seguindo o Twitter da Kinoforum [clique aqui] e curtindo a página do Facebook [clique aqui]. No topo de cada post no blog você encontrará um botão para compartilhar os textos.

A navegação é simples: na parte superior da home page estão os posts mais recentes. Do lado direito da metade inferior da home você poderá procurar por textos usando tags (nome do filme, nome do diretor, nome do autor, tema do curta etc). À direita de cada página há a nuvem de tags, que aponta os tópicos mais comentados nos textos.

Abaixo está a lista dos calouros que participam da oficina neste ano:

Amanda Martinez (FAAP)
Andreia Saracchi Figueiredo (Cásper Líbero)
Arthur Ivo (Unicamp)
Beatriz Couto (FAAP)
Beatriz Modenese (Cásper Líbero)
Bianca Elias Mafra (Senac)
Camila Fávaro (FAAP)
João Gabriel Vilar Cruz (Senac)
Lucas Navarro (FAAP)
Mylena Santos Dantas (Cásper Líbero)
Pither de Almeida Lopes (Anhembi)
Plínio Chaparin (ECA-USP)
Samuel Baptista Mariani (Unicamp)
Thiago Zygband (Unicamp)
Valeria Tedesco (Senac)

Sejam bem-vindos!

Algumas tendências do cinema universitário

noite perdida

No texto de apresentação da mostra Cinema em Curso (voltada a filmes realizados em cursos de graduação em audiovisual de escolas do estado de São Paulo), que consta no catálogo do 24º Festival Internacional de Curta-metragens de São Paulo, aponta-se para uma vontade, por parte da curadoria, de se estabelecer um debate acerca do ensino em audiovisual, bem como das características particulares de cada uma das escolas participantes. Partindo dos filmes presentes na mostra (que, vale frisar, foi constituída a partir de filmes indicados pelas próprias escolas), bem como por alguns também realizados dentro de faculdades, porém, espalhados por outras mostras (Brasil e Panorama Paulista), gostaria de contribuir para o debate proposto, a partir da identificação algumas tendências em comum apresentadas por esses filmes. Tendências estas que sugerem, a meu ver, uma problematização de como esses filmes olham para o mundo ao seu redor, e, portanto, como se portam perante a ele.

Filme sobre cinema

Um primeiro ponto que chama a atenção dentro da produção universitária é a constante presença de temáticas relativas ao fazer artístico e ao aparato cinematográfico, configurando, em alguns momentos, uma obsessão pela metalinguagem. Dois filmes do programa evidenciam essa questão: Estátuas vivas e Redoma.

No primeiro, um documentário, pretende-se um relato acerca da profissão informal exercida nas ruas da cidade e que cede seu nome ao filme. O grande problema reside justamente no olhar que o filme lança sobre o objeto tratado. Assim, reveste-se a profissão com uma aura de “poder da arte e do artista” que parece muito mais querer respaldar o fazer artístico supostamente presente no próprio filme. Elimina-se qualquer olhar que aponte para uma problemática acerca da condição de trabalho dessas “estátuas vivas” em prol de um olhar lírico, pré-fabricado, que encontra nas “estátuas vivas” somente um álibi para despejar seus conceitos acerca da beleza da arte, “salvadora do mundo”.

No segundo, também documentário, aborda-se a vida de três artistas que lidam com a timidez. Constrói-se um dispositivo para tentar traduzir o problema vivenciado pelos retratados: a timidez diante do aparato cinematográfico montado nas entrevistas. Aqui dois movimentos convergem. O primeiro é a predominância do deleite acerca do aparto cinematográfico: aproveitam-se momentos da entrevista, que tradicionalmente seriam descartados (os silêncios e hesitações diante da câmera), filma-se a situação de constrangimento sendo filmada – deleite puro do aparato. Isso contribui para um segundo movimento: sustentar o discurso de que tais artistas tímidos se libertam desse mal que os acomete quando atuam em seus respectivos campos artísticos. Novamente, a pregação do poder, da beleza e da liberdade conferida pela arte – novamente um discurso que pode muito bem servir ao próprio fazer do filme em questão. Mas afinal: que poder, que beleza e que liberdade se reivindica aqui?

Quando o crítico Jairo Ferreira falava em seu livro Cinema de Invenção que “faz-se filmes SOBRE cinema e não DE cinema”, sua justificativa estava calcada em um posicionamento político diante da impossibilidade de se fazer filmes inocentes e inofensivos dentro de uma condição de subdesenvolvimento – falar sobre o aparato era se posicionar agressivamente perante a hostil situação vivida pelo homem em seu processo histórico marcado pela falência.

O que se vê na metalinguagem, discurso sobre o aparato e discurso sobre o fazer cinematográfico empregado pelos filmes universitários acima citados é um discurso ensimesmado. Aborda-se o aparato numa chave quase fetichista, em uma tentativa de se legitimar. Falamos de cinema porque não sabemos falar de outra coisa, porque não olhamos para o mundo e seus problemas, somente para o universo particular de quem estuda cinema e por conseguinte de todas as “maravilhas”, “beleza”, “poder” e “liberdade” (num sentido extremamente vago e evasivo) que tal arte pode proporcionar.

Cinema de gênero

Outro ponto em comum entre alguns filmes universitários é a opção pelo cinema de gênero. Que existe uma classificação das obras em gêneros não é nenhuma novidade (Aristóteles já fazia isso). Que a indústria cinematográfica se utilizou disso como forma de codificar ao extremo e tornar palatáveis os produtos ao grande público também não. A novidade reside em como alguns filmes recentes lidam com a questão do cinema de gênero ao se defrontarem com um vasto imaginário, construído ao longo do século XX (principalmente pelo cinema industrial norte-americano), hoje imerso em um contexto de crise de representações, portanto, crise de modelos consagrados a serem perpetuados eternamente. Novamente, dois filmes universitários apontam para uma mesma tomada de posição perante essa problemática, são eles: Noite perdida e Preto ou branco.

No primeiro caso, ocorre uma opção pela comédia escrachada de cunho adolescente. Elimina-se qualquer traço anárquico potencialmente presente no gênero em prol de uma comédia calcada na sátira de eventos cotidianos da classe média que somente engrossa as fileiras das recentes comédias brasileiras sucessos de bilheteria.

No segundo caso, ocorre uma opção pelo gênero de ação. Dessa forma realiza-se uma revisão histórica do período da ditadura militar brasileira através da estilização gráfica. Reduz-se brutalmente toda a discussão de como o cinema olha para a história e problematiza esse processo histórico truncado do país a um mero desfile da técnica como forma de deslumbre visual. A última cena, inclusive, faz rememorar as observações de Jacques Rivette acerca do travelling de Kapò em sua crítica ao filme de Pontecorvo, intitulada Da abjeção. Assim como em Kapò ocorre uma estetização da morte (apontada por Rivette), em Preto ou branco tem-se uma plasticidade da tortura e do sofrimento contidas no movimento de câmera final.

Nesse contexto, observa-se a opção pelo cinema de gênero principalmente como forma de tentativa de inserção mercadológica e de isenção de responsabilidades nas escolhas do olhar: engrossa-se a fileira da mesmice representada pelas grosseiras comédias hegemônicas no cinema nacional atual e transforma-se um processo histórico traumático e truncado em índice de realidade capaz de corroborar uma estilização condizente com o gênero ação.

Afeto: idosos, crianças e circo

Nina, A nobre e breve história do beijo e Lembranças de Maura lidam com figuras em comum: idosos, crianças e o circo. O trato com essas figuras perpassa por duas formas de posicionamento perante uma pergunta muito frequente em escolas de cinema: por que fazer um filme?

Geralmente, no contexto escolar, em que tais filmes se inserem a resposta é: necessidade – seja de um exercício curricular, seja de um projeto de conclusão de curso. Contudo, a presença massiva de idosos, crianças e do circo no cinema universitário sugere outras respostas para essa pergunta: a possibilidade de falar de si e o afeto como elemento mediador.

A mediação realizada por essas figuras tendem a configurar um olhar estável e conciliador sobre o mundo. Cria-se o afeto, o sentimento, a abordagem do mundo através de uma experiência muito pessoal – o filme como um divã ou um livro de auto-ajuda. Nesse contexto, idosos, crianças e o circo surgem como elementos capazes de suscitar um sentimentalismo promotor desse afeto: carregam em si a inocência perdida e cristalizam a nostalgia como outro dado fundamental. Mais uma vez, ninguém é obrigado a se posicionar, afinal, tudo se justifica pela necessidade em causar uma breve e ligeira emoção, e todos podem sair felizes da sessão, como se nada tivesse acontecido.

Ato de resistência

Volto ao ponto inicial: o que essas características apresentadas pelos filmes tem a nos dizer ou a contribuir acerca de um possível debate sobre as escolas e os cursos de audiovisual, tal como proposto pelo texto de apresentação da mostra no catálogo?

Numa conferência realizada com alunos de cinema da FEMIS em 1987, Gilles Deleuze apontou a seguinte ideia: “Qual é a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a menor informação. Por outro lado, em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Tem algo a ver com a informação e a comunicação, a título de ato de resistência”.

Creio que as tendências apresentadas nos filmes apontam para uma crise da ideia do cinema (da arte) como um ato de resistência, tal como sugere Deleuze. As implicações disso é que cada vez mais se instaura um desligamento do mundo e das questões que o circundam – predomínio do discurso ensimesmado e das ideias inofensivas. Portanto, predomínio do sentimentalismo e falência do debate crítico.

Guilherme Maggi Savioli