Filmar o espaço

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As areias brancas dos lençóis maranhenses, a cidade desenhada em preto, velho e vermelho, a suja São Paulo (suja cidade e não cidade suja). O espaço das memórias que despencam como cabelos já cansados, nosso lugar é onde mora nossa memória. Uma mesa de identificação em meio a uma tribo, o não-lugar, o não-pertencimento. Espaços privados demarcados por muros e portões, porém inseguros quando o privado torna-se público – o espaço a serviço do indivíduo endinheirado.

Espaços distintos filmados por óticas e discursos diferentes compõe, de alguma maneira, a Mostra Brasil 1. O espaço é objeto e produto do filmar, da escolha do olhar; não é uno, mas sim, feito de conflito; não é absoluto, relativa-se naquele que o pensa, ás vezes sem pensar. É deslumbrante ou opressor. A cidade é filmada de peito aberto em Unfit – O chá de bebê, reclusa, esteta e repressora em Quinto Andar. A areia branca de Sanã deslumbra a tela, dá-lhe branco e dá-lhe vento e a cortina branca florida encerra o espaço que ficou guardado na memória de O que lembro, tenho. O curto espaço da mesa que ocorre Retrato N. Kahrô parece guardar em si a tensão de um tempo outro em conflito com o nosso, não-indígenas. Por fim, Câmara Escura e o espaço que existe dentro de uma câmera filmadora. Qualquer uma.

Pode ser esta uma leitura reducionista. Mas a disposição dos curtas vistos de maneira linear, dentro de uma mostra curada, deve um influenciar ao outro. Ao menos, um diálogo quer se fazer possível. Muitas das vezes, difícil e irracional. É mesmo intenção do Festival que estes se complementem, que se tornem espaço de reflexão? Sentada eu e os outros espectadores, na caixa preta do cinema, entregues às imagens que vão sendo regurgitadas, criando outros espaços além-tela, espaços em que queremos olhar com mais proximidade. Imersos, enfim. Receptores e articuladores, nós, espectadores, as vítimas e os algozes.

Sanã perde-se em meio a tanto espaço e tantos planos. O perigo de filmar lugares turísticos como agências de viagem esta à espreita. A areia é disforme e o vento que sopra vai recriar sempre um espaço irreconhecível. Não é possível apreendê-lo além de uma cegueira branca. O personagem, Sanã, metonímia do espaço escolhido. Albino em areia e sol. Esconde sua cabeça no buraco, perde sua corporalidade. Sua contradição não se faz em filme. Seu rosto manchado é sempre filmado com algo a frente, interpelado pelo espaço e pelos objetos. Sua voz não nos dá a dimensão do seu existir. Persiste apenas o sufoco sensorial do modo como são filmadas as dunas. Esteta, com ares de fenomenológico. Espaço largo e mutável, ainda assim, concreto.

O que lembro, tenho escolhe o afeto das memórias. O espaço, sim, concreto, mas não se sabe se ainda presente. O fim escolhe sua posição: permanece o afeto, permanece a escolha consciente do indivíduo no fim da vida. O verde gramado da roça, a casa pobre e a janela aberta se intercalam com a cortina fechada de uma casa outra, de uma paisagem que não se vê. A senhora vê o desenho na televisão, mas não o vê. Fazer as malas continuamente é o modo de querer voltar ao seu espaço afetuoso – ao que a memória ainda lhe guarda. O espaço que a memória traz é a realidade de uma personagem. A realidade é relativa a partir do contraponto com o que olha a filha – e o que também olhamos. Os milhos jogados às galinhas num passado são os espalhados no chão de cimento no presente. O espaço perde sua dimensão, torna-se ele aquilo que resta de memórias. Concreto, mas absurdo para alguém que guarda poucas memórias ainda. É a canção que atravessa os tempos sem se importar com o lastro real; que ano é hoje? Não importa.

Quinto Andar, animação, se inicia com a cidade para adentrar no apartamento do personagem. Confinado, ele só sai de seu espaço para adentrar outro: o escritório. A grande cidade se faz entre um espaço e outro. Não pode ser vivida, já que o espaço particular é soberano ao público em uma grande metrópole. O personagem poderá se libertar apenas em sua forma irracional: aí transforma-se em animal. Quinto Andar não propõe, mas visualiza. Não quer entender, entrega. E ao espectador, resta os sintomas da metrópole, inseridos na linguagem da animação que permite o fantástico – o tornar-se outro além da carne e do osso de que somos feitos.

Unfit – chá de bebê escolhe a câmera documental para seguir seus personagens. É de se perguntar se é real ou não, mas o câmera, para além da mão tremida e improvisada, parece inexistir naquele universo. O universo é um apartamento, paulistano, de determinada tribo. A festa, um chá de bebê. O desejo de causar choque é latente. Mas quase tudo é desperdício, se não a cidade vista do viaduto junto do berço de madeira ao lado. O paulistano destemido enfrenta sua cidade. Ela é uma merda, mas também divertida. O paulistano deseja encontrar espaço na sua cidade, mas os headbangers de Unfit escolhem a eterna agressividade de colegial para se expressar.

Retrato N. Kahrô parece curto. Seu fim é abrupto, mas se faz coerente. A questão posta parece insolúvel – documentos oficiais de uma indígena que não precisaria de documentos oficiais, mas que neste mundo de burocracias, só receberá sua aposentadoria a partir deles. O espaço é a mesa de debate, em que a moça que tudo media dá as coordenadas. Não se sabe onde estão, vemos os rostos do indígena, vê-se a mesa improvisada. Tudo está improvisado: a idade da indígena, a mesa naquele lugar. Um espaço vivo de contradição.

Câmara Escura parte do dispositivo. O diretor entrega uma caixa, onde dentro tem uma pequena câmera filmadora, para casas de famílias de classe alta desconhecidas. O dispositivo é só o gatilho. Os muros não devem ser atravessados. A gente toda se apavora. Uma câmera-surpresa é dita invasão de privacidade, atravessa os muros das grandes casas e assombra com a possibilidade de filmar seus grandes quintais. A câmera de segurança desta casa filma a rua do outro lado do muro. O espaço público pode ser filmado, sob justificativas socialmente aceitáveis. O privado, nunca. A pequena câmera filmadora delinea as concepções de espaço que esta classe defende, e traz junto para si as instituições (públicas, por sinal, como a Polícia Civil), que lhes dão respaldo. O espaço a mando de poucos.

O filmar nunca é neutro, sempre é invasão de privacidade. A invasão dos espaços se faz cada vez mais patente, necessária e urgente. Seja das headycams tremidas, das filmadoras escondidas, do traço do desenho, do olhar subjetivo. O espaço é matéria-prima primeira do cinema. O espaço colocado em contradição na tela é agente, fruto de um olhar que politiza, estetiza e poetiza seu universo circuncidante.

Mariana Vieira

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Antropofagia, tecnofagia, autofagia. Bulimia.

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Mas não está claro que o problema está na terra? Essa aí com a letra minúscula que a gente pisa em cima e às vezes esfarela ou afunda, mas que começou a crescer e a engolir o Sol: febre do cimento, aço fálico.

Mudo. No quarto, um cigarro e o amanhecer: Não estamos sonhando. Ligou o gravador: o som das novas construções invade o filme, a febre é barulhenta, pede, além das palavras de um discurso de resignação, ação.

Vandalismo. São as pessoas que sempre estiveram ali com seu som e seus corpos reboliços que invadem a tela em Lagoa Remix. Parte da sessão Tomada Única, o filme superoitista traz a dança e as brincadeiras de quem frequenta a lagoa, a qual será também alvo futuro de reapropriação. Em volta da lagoa, carros de som com volume muito alto compõem a trilha do filme; o cenário, talvez pela proximidade das sessões, lembrou o de Céu sobre a água de Agrippino, revestindo-o da contemporaneidade da dança do bumbum, do período tão atual de manifestações e “datenismos” e explicitando o comum que se tornou a mediação. “Esse prefeito não presta, é eu que tô falando”, diz a moça pra câmera.

É eu que tô falando. “Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça o seu! arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde. Mostre. Isso é possível”. Torquato Neto em 1971 bradava pelo que hoje é quase hábito, senão demanda. O olhar sobre o contemporâneo e sobre o referencial ao qual pertence o artista, fez a produção superoitista na década de 70 resistir ao que pregava instituições e a cultura oficial, enfatizando a experiência pessoal como espaço de crítica política, econômica, etc. É a partir de seu próprio chão que o funcionamento do espaço é reavaliado (maldito foi o dia em que Adão resolveu fazer um testamento), quase um happening na vizinhança, o registro de um ato performático que rompe com o comportamento socialmente aceito. Dentro dessa política, o corpo ganha espaço no filme Super-8, e é por aí que caminha a dança do bumbum de Lagoa remix ou a masturbação e transa em espaços públicos de Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu.

Risse de tanto cu. Com certeza, de todos os filmes, Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu foi o que mais risadas trouxe à sala de exibição. Não foi só pela atitude a la Jackass com suas máscaras e bichinhos masturbatórios que as bocas se encheram de risos, algo ali incomodou e, se incomodou, deve ser bom, deboche é isso (também). Três rapazes espalhando amor pela cidade onde uma nova Dubai vai crescer monumental acabam por se jogar nos campos cercados nas proximidades do “haver avencas” relembrando os planos finais de Toques.

Monumental. O desmaio diante do monumental falo de cimento, depois da trajetória que percorre estátuas e outras construções “postais” (em forma de poste) é sedução que mata em Falos e Badalos. Mata sim e pra não morrer é preciso merda. Como disse o professor Rubens Machado após a exibição: “O 35mm dedica-se a construir monumentos; o 16mm a questioná-los; o Super-8 vem jogar merda nos monumentos”. Merda em forma de efeito visual, em trepidação, a bitola não é Super-8, mas se faz necessário a ação, a ação imaginária ou o terrorismo imagético. Buscando construir “o mundo que queremos”, Não estamos sonhando joga bombas nos prédios ao redor, destrói a imagem deles.

Terrorismo, aí vêm as câmeras de segurança, de vigilância, uma violência contra os corpos em planos contra plongée. Mas a suspeita de bomba é outra, é a que está na caixa de Marcelo Pedroso em Câmara Escura e que entra pela porta ou pela caixa de correio em uma propriedade privada, que filma e é logo julgada e condenada, uma arma, claro, a caixa preta de Vilém Flusser é logo tratada como criminosa, então é hora de fazer o filme.

Filmes bulímicos. Sem generalizações didáticas, vão pras telas. Nem sempre muitas telas, infelizmente. A produção superoitista de 70 já não tinha o público como grande preocupação, sendo assistido por quase ninguém em sua própria época. Espero que festivais como o Curta Oito, Kinoforum, youtube, vimeo e outros canais possam fazer essa interface. O desbunde aparenta muitas vezes como atitude vazia ou apenas risível, mas febres precisam baixar antes do colapso, não se vomita ar.

Carol Neumann

Não Estamos Sonhando e Câmara escura estão na Mostra Brasil. Clique aqui e veja as próximas sessões dos filmes

Lagoa Remix, Amor e outras construções e Falos e Badalos estão na mostra Tomada Única. Clique aqui e conheça o projeto

Privacidade em tempos de cólera

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Marcelo Pedroso volta em Câmara Escura aos mesmos temas abordados em seu tão comentado documentário Pacific (2011): privacidade e limites borrados na contemporaneidade entre o público e o privado.

No curta-metragem, em vez de o diretor pedir os registros particulares feitos por dispositivos móveis ou câmeras amadoras como em seu outro filme, parte para uma abordagem mais ativa ao entregar ele próprio os meios para captação de imagens a pessoas aleatórias. O resultado? O inverso ao obtido em Pacific.

Pedroso cria uma caixa simples de madeira na qual dentro se encontra uma câmera ligada. Toca a campainha em duas casas cercadas por altos muros, deixa a encomenda e vai embora sem que o dono do local trave qualquer tipo de relação com ele. No dia seguinte volta aos locais se apresentando como aquele que deixou o pacote. A recepção não é a das mais calorosas.

Um simples dispositivo móvel deixado à revelia pode causar transtornos terríveis. Os que receberam a encomenda alegam quebra de privacidade, como se o diretor tivesse invadido seu espaço privado e sagrado ao entregar uma câmera de presente. Note, não é que o cineasta tenha posicionado uma câmera na porta das casas gravando a movimentação (como em Caché de Haneke, com sua câmera espreitando os personagens) ou tenha bisbilhotado a janela alheia com uma lente de grande alcance (curioso como Janela Indiscreta). Não, o meio de produção estava nas mãos dos receptores. Estava dada a eles a opção de filmar, olhar, observar. As duas respostas foram de medo, pânico e terror.

A cena mais emblemática do curta é quando o diretor volta no dia seguinte para conversar com um dos moradores. O discurso falado e o discurso visual se chocam completamente: o áudio capta a bronca do homem que recebeu o pacote, dizendo que não autoriza o uso de sua imagem, que se trata de crime e invasão de privacidade, enquanto que a câmera focaliza, num plano fixo, duas câmeras de segurança na casa que apontam para a rua. Quem está quebrando a privacidade? E qual privacidade?!

Numa sociedade cada vez mais vigiada por câmeras e dispositivos de rastreamento inseridos em produtos banais do dia a dia, que tornam possível saber mais sobre a vida e cotidiano de um indivíduo do que qualquer um que conviva com ele, é difícil estabelecer os limites entre a esfera privada e a pública – muros altos e fortificados não mudam esta realidade. Ambas as famílias desligaram os dispositivos depois de recebê-los, atitude não possível ao caminhar pela rua e ser observado por cada câmera de casa, do governo, de instituições comerciais.

A diferença entre Pacific e Câmara Escura se dá na falsa sensação de escolha. No primeiro projeto, foram pedidos os registros feitos durante a viagem; neste foi dada a câmera sem que esta fosse pedida. Entretanto a privacidade está ausente em ambas por uma configuração da sociedade atual – que digam Obama e as corporações como Google, Apple e Facebook quando Snowden afirmou o que todo mundo sabia, mas preferia deixar em silencio: nossa vida privada é uma mentira, tudo está escancarado.

Em tempo: em 2012 um grupo de artistas alemães enviou uma caixa com uma câmera dentro para a Embaixada do Equador destinada a Julian Assange com a proposta de filmar em tempo real todo percurso do objeto até chegar ao seu destino final. Talvez Assange gostaria de receber uma das caixas de Marcelo…

Malu Andrade

Câmara Escura está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013

Fuga de Casablanca

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Cinema is not 100 years old.

No momento em que se completavam 100 anos da primeira exibição dos irmãos Lumière no Salão Indiano do Grand Café em Paris, o cineasta lituano Jonas Mekas proferia seu grito “o cinema não tem 100 anos”, concretizado em um curto vídeo-manifesto de mesmo título, em meio às novas (velhas) discussões que surgiam sobre a morte do cinema. Mekas, que em seus escritos na Film Culture, sempre defendeu um cinema que desse conta das principais questões do homem de seu tempo, pode ter seu grito considerado como otimista em meio a avalanche de profecias apocalípticas acerca do fim do cinema (basta lembrar do filme Quarto 666 de Wim Wenders).

Longe de um purismo infantil em defesa da “nobre” sétima arte, o grito de Mekas, contudo, distancia-se também de um falso entusiasmo sobre a jovialidade do cinema e a da falsa ideia de permanência eterna de modelos de se produzir imagem (principalmente os calcados na captação com suporte 35mm) que se consagraram ao longo do século XX. Muito pelo contrário: o grito de Mekas aponta para a necessidade de se repensar o modo de como se produz imagens, a partir da inevitável mudança (e não morte) do cinema e, portanto, de como as imagens se relacionam com o mundo e o mundo com elas.

Na última década, principalmente, tal equação foi tensionada pela acentuada facilidade de produção e divulgação de imagens. Nesse cenário, em que muitas vezes a imagem e os próprios filmes se tornaram algo banal, o grito de Mekas parece apontar para um pensamento que se instaura quase como obrigatório no processo criativo de qualquer cineasta: por que produzir mais uma imagem?

Idolatria, mecânica, choque

Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro partem da ideia de uma relação conflituosa entre ato de produzir imagens e o mundo sobre o qual se debruçam. Encontram o sentido de existir dessas imagens ao enxergarem no cinema campo privilegiado para expressão material de uma reflexão cujo único parti pris é o conflito. O resultado do choque entre ato de filmar e mundo resulta em uma matéria que vai de encontro à ideia de imagem como mera idolatria. Assim, partindo de uma situação (no caso de Pouco Mais de um Mês) e de um pensamento (no caso de Alguém no Futuro) aparentemente rotineiros, ambos os filmes traduzem sentimentos e reflexões sobre aquela dada situação, que seriam impossíveis de emergir senão a partir dessa forma conflituosa de cinema.

Em Pouco Mais de um Mês a tensão se estabelece logo na sinopse: atribui ao relacionamento retratado um índice de realidade. Contudo, para além do mero jogo estético entre ficção e documentário sugerido na sinopse, este dado se constitui apenas como ponto de partida na construção da relação conflituosa entre o ato de filmar e o mundo.

Um primeiro plano longo, escuro. Identificam-se algumas formas deitadas numa cama. Os corpos ganham vida, começam a se mexer. No áudio, acompanhamos uma conversa entre o casal. A fluidez e naturalidade da conversa (oriunda do índice de realidade originário da suposta confusão entre real e ficção) em conjunto com a composição do plano induzem a uma dissolução das formas no espaço. Estabelece-se o conflito: os corpos permanecem e cruzam os espaços em Pouco Mais de um Mês, de forma a se chocarem com o mundo delimitado pela câmera.

Dois momentos: no primeiro um dos personagens forma uma “câmara escura” no teto, utilizando uma cortina. A imagem da rua é invertida, ambos discorrem sobre essas distorções enquanto a câmera se mantém na projeção (da câmara) sobre o teto – imagem capaz de se expressar por oposição, por choque entre o que se vê e o que se é – conflito como elemento essencial. No segundo, vemos o casal pela primeira vez juntos em quadro com seus rostos a mostra. O quadro se limita pelos dois. Silêncio e sufoco – novamente choque e oposição – uma apresentação truncada do relacionamento, conflito plausível pela construção empreendida entre o dispositivo e a realidade/mundo que ele olha, e só por isso. Essa dialética extravasa o incômodo que não consegue ser compreendido/expresso pelos seus protagonistas.

Em Alguém no Futuro, por sua vez, o conflito surge primeiramente a partir do pensamento que engendra o filme: inconsistência do presente e do tempo. Estaríamos, portanto, nesse momento, falando de presente e tempo no plano cinematográfico. Contudo, é pela lente da câmera que o mundo é visto, que o mundo é construído, em suma, que o mundo é traduzido (ou se tenta traduzir).

Surge o choque: a imagem de Casablanca – que se encontra quase como um signo vazio, já no campo da idolatria, fruto de anos de reprodução e processamento pelo imaginário, que torna a sua absorção já um processo automático, retirando-a, assim, de seu contexto original – assombra os protagonistas, cisão entre áudio e imagem. Depois a imagem de Casablanca é expulsa e a sincronia audiovisual restabelecida: não é uma resolução/fim do choque com o mundo, restabelecimento da ordem, mas sim uma suspensão, momentânea apenas, que reitera o conflito pretérito devido sua própria transitoriedade e excepcionalidade. Aqui novamente o conflito encontra no cinema campo privilegiado para uma expressão material.

Dessa forma, em ambos os filmes não se trata de um discurso sobre a situação específica que retrata, e sim do estabelecimento de uma poética que encontra na impressão do choque, resultante do olhar para o mundo pelo cinema, na imagem final a ser reproduzida. Assim, mesmo em última instância tal imagem sendo virtual, carrega consigo uma experiência concreta, uma tradução material desse conflito, que tenta esboçar um entendimento acerca de uma possível mecânica do mundo e da existência (entendida aqui tanto como experiência humana quanto a própria existência dessas imagens). Tal tradução não existiria em outro campo a não ser no filme.

Dos riscos

Dois filmes da programação realizam movimento inverso ao exposto acima. São eles: Memória de Rio e O Proustiano de Osasco. Ao contrário da busca pelo choque observada em Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro, nesses dois filmes ocorre uma neutralização de qualquer possibilidade de conflito, fruto de uma confiança excessiva no extraordinário (pré-concebido) que o mundo traduzido pela câmera por si só pode render.

Em Memória de Rio, o discurso acerca de uma mística em torno das águas fluviais se torna uma redoma de segurança pela qual o discurso irá se firmar como mero encadeamento de imagens do rio Tietê. Estas imagens já saem com um suposto valor atribuído, devido ao caminho supostamente lírico traçado pela fala mística inicial. Não se arrisca nada. A mecânica que se tenta compreender já está posta: o extraordinário pré-concebido.

Risco é o que falta também a O Proustiano de Osasco. No momento mais emblemático do filme, o personagem do documentário é questionado sobre como foi sua infância, ao que ele responde apenas que foi normal. Esse movimento de tentativa de reforçar o extraordinário da realidade que se filma através de um discurso (de novo) supostamente lírico (e aqui isso possui caráter acentuado devido as constantes sobreposições entre áudio de trechos de Em Busca do Tempo Perdido e imagens do retratado circulando pela cidade) se constitui novamente como uma zona de conforto, em que, mais uma vez, a mecânica do espaço e das situações filmadas não emergem.

Em ambos os filmes, os efeitos de deslocamento entre áudio e imagem dialogam mais com uma estética e uma linguagem publicitária que buscam chamar a atenção do cliente para seus produtos em um curto espaço de tempo. Justificar a produção de mais um filme, de mais imagens perante essa lógica, além de confortável, é no mínimo problemático. Anula-se toda e qualquer tentativa de discurso lírico (entendido como forma na qual uma voz central exprime um estado de alma) nesses filmes, uma vez que nada é mais orgânico, não há descoberta/invenção (porque não há abertura), o “extraordinário” do mundo filmado já está dado, pré-concebido (portanto seguro, tranquilo, inofensivo).

Poesia é risco já dizia Augusto de Campos. É necessário o risco do choque, o risco de não ser inofensivo, o risco de fracassar: a abertura ao mundo ao se lançar (um olhar) sobre ele.

Guilherme Maggi Savioli

Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro estão na Mostra Brasil 8. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013

O Proustiano de Osasco e Memória de Rio estão na Mostra Panorama Paulista 1. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013