O Teto Sobre Nós: a desocupação não terá lugar

o teto sobre nos

por Lucas Navarro –

A história do cinema revela a singular posição que seu meio ocupa no trabalho de interação entre o romanesco e o testemunho no ato da narração. De Robert Flaherty a Pedro Costa, a arte de transmitir a experiência dentro das garrafas que a História lança ao mar a fim de, no descarte, encontrar um pescador-espectador que lhe restitua vida implica, na maior parte dos casos, em partilha de um mesmo espaço com o próprio cineasta que agencia o contingente em discurso. Pois é justamente essa implicação de estar “sob um mesmo teto” que tenciona a objetividade implícita ao termo – na acepção radical do testemunho, testes, que deriva tristis, ou seja, aquele que assiste na condição de terceiro que pode descrever os fatos com isenção, isto é, como espectador.

Antes de tudo, o espaço e seus moradores. Há uma evidente opção em encerrar o filme dentro do prédio ocupado em oposição a uma diluição da perspectiva que caracterize a sensação de totalidade da experiência. Antecâmara, o quarto, onde se concentra ainda mais essa perspectiva mínima, é palco do encontro entre duas figuras antagônicas: ela aguarda sob uma goteira, armando-se quixotescamente contra o curso das coisas; ele seduz à fuga desse mesmo estado de coisas. Curiosa estrangeiridade de uma terceira figura no espaço, com o qual não parece estabelecer qualquer vínculo evidente. As aparências de um desenho convertem-se em aparições constantes, até vermos a mulher o matar num gesto pouco naturalista, seguida pelas paredes sangrando. Não faz muito sentido falar, aqui, em personagem uma vez que não há paisagem psicológica que os sustentem através de uma história pregressa, mas em corpos com os quais a câmera estabelece uma relação de posse sem tocar, filiação sensível da percepção que imprime um reconhecimento afetivo e corrosivo sobre nossas retinas.

Nesse sentido, O teto sobre nós, de Bruno Carboni, nos serve de caso exemplar não só pelo envolvimento que ele engendra com o seu campo, recusando um estatuto de imagens legitimadas porque produzidas sob uma jurisdição exterior, mas, sobretudo, pelo trabalho de encenação que alça os intérpretes a um cadafalso de queda trágica cujo interior, de moldura que beira o teatral, desnaturaliza o evento e o inscreve num jogo simbólico externo ao circuito de seu espaço e tempo. A voz de Cassandra a nos alerta logo na primeira cena – que começa e termina com uma mulher que vê (plano recorrente no filme): a decisão judicial, outorgada pelo fora de campo (Estado ou Olimpo?) insensível à situação que levará a tomada dessa labiríntica masmorra traçada à ruína não deixa dúvidas: a guerra de Tróia é aqui e a qualquer hora.

Essa recusa à abertura e autenticidade da observação privilegiando a presença da clausura do olhar, próprio da tragédia, antes de invalidar o testemunho, lhe confere a fragilidade de um evento traumático e sua precariedade de restituição. Também o “fantasma” tentar restituir uma memória com seu pandeiro e canto, que caracterizam o dispositivo do poeta clássico, responsável por transmitir os feitos de seu povo, com o qual ele estabelece uma relação de distanciamento no pertencimento: alegoria do cineasta dentro do filme.

Que certos valores do poeta Homero se projetem sob uma Tróia de poetas morto hoje prescrevem uma série de questões, como a romantização do representado. O travestir-se é o melhor exemplo desse romantismo. Não se trata de idealismo travestido com aura de fatualidade se, com conhecimento de causa e sem inibições criativas, mantem-se uma solidariedade com o representado, em vez de fazer da própria falta sua virtude, como sempre somos tentados a fazer. A saída (se é que se pode usar esse termo) é forçar a dialética até que os extremos se toquem.

O Teto Sobre Nós está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

CICLO 7×1 e o legado da Copa

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por Lígia Hsu –

Este ano contamos com filmes produzidos durante a Copa do Mundo de 2014, uma oportunidade única para que cineastas apontassem suas câmeras para o olho do furacão: um evento de alcance mundial em terras tupiniquins. O diretor Gil Baroni soube aproveitar essa oportunidade através do documentário Ciclo 7×1.

Luana, carroceira, mãe de seis filhos, percorre as ruas de Curitiba durante o período da Copa do Mundo recolhendo material para reciclagem, seu ganha pão. A vida dessa mulher passa longe do maior evento do Brasil. Seus filhos estão de férias, ela não. A solução é carregar dois deles pelas ruas da cidade, enquanto a mais velha, uma pré-adolescente, dá conta dos outros três em casa.

A câmera ocupa diversos pontos de vistas: ora é Luana observando a euforia da Copa, ora observa o que Luana e seus filhos observam, ora se afasta e capta Luana interagindo com a cidade, ora se coloca dentro dos bares e mantém Luana à margem dos acontecimentos.

Existe também uma câmera instalada no interior do seu carrinho e essa proximidade revela algumas falas, na maioria corriqueiras, porém algumas bem relevantes, como por exemplo, dizer aos filhos que ninguém vai deixá-los entrar no estádio da Copa. Luana é uma mulher pé no chão e atravessa Curitiba de cabeça erguida fazendo seu trabalho. Observa os jogos nas televisões dos bares sem muito envolvimento, apenas deixa que seus filhos possam aproveitar um pouquinho da festa da qual claramente não foram convidados.

Para quem como eu não via sentido na realização de um evento desse porte frente às necessidades mais básicas e fundamentais do país, o filme vai de encontro a esse sentimento de que a Copa não foi para todos e que no dia seguinte ao fatídico 7×1, a vida e os problemas continuaram os mesmos, assim como Luana que na manhã seguinte sai com seu carrinho pelas ruas de Curitiba atrás do sustento da sua família.

Ciclo 7×1 está na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Em terra de rastejante, quem tem cadeira é rei

Já foram produzidos inúmeros curtas sobre desigualdade social. Não Há Cadeiras, de Pedro Di Lorenzo, nos traz essa temática de um ponto de vista muito interessante. Em uma terra onde as pessoas são diferenciadas como rastejantes e por quem tem cadeiras de rodas, é fácil perceber a relação que o diretor cria com a realidade.

Em busca de uma oportunidade, o personagem central necessita de uma cadeira de rodas para conseguir emprego e assim sustentar sua família, mas o caminho não é fácil e o personagem passa por diversas dificuldades para conseguir seu objetivo.

O modo de contar a história é intrigante, pois ao longo da jornada do personagem existem diversas referências ao cotidiano vivido pela grande maioria dos brasileiros que buscam uma oportunidade para mudar de situação e não conseguem devido à burocracia.

Em uma das cenas mais fortes, o diretor chama a atenção para um detalhe: o poder de calar a outra pessoa já é uma grande solução para o “problema” que são todos os que não têm dinheiro suficiente para obter nem mesmo o básico.

Ali estão todos os ingredientes: a oportunidade, a dificuldade, o preconceito com os menos favorecidos e a força de vontade – a única coisa que não pode ser tirada daquele que não tem praticamente nada.

Rodrigo Ferro

Não Há Cadeiras está na Mostra Brasil 7. Clique aqui para ver a programação do filme