Ameaçados: retrato de um povo perseguido

ameacados

por Pither Lopes –

Reinterpretar o novo mundo que à nossa frente se coloca, cada vez mais instável, hostil e inseguro, tornou-se como nunca essencial. A mídia globalizada, com seus crescentes processos de manipulação, não oferece as investigações, respostas e análises com a densidade necessária. A câmera jornalística, genérica e superficial, foi sequestrada pelos interesses dos conglomerados empresariais.

Nesse embate pelo novo front do olhar, o documentário, que se constitui a um só tempo escudo crítico e pausa reflexiva, vê-se como gênero eleito de primeira necessidade; uma linguagem que se revela inevitável à sobrevivência do espírito ético. Em Ameaçados, a diretora Julia Mariano se apropria com maestria dessa ferramenta cinematográfica para investigar a tragédia de um Brasil profundo, a história de sujeitos abandonados a própria sorte.

Figurando entre os favoritos do público na 25° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, Ameaçados retrata o cotidiano de pequenos agricultores do sul e sudeste do Pará que lutam por um pedaço de terra para plantarem e garantirem sua subsistência. Lugar onde a lei está do lado dos poderosos, a luta pela sobrevivência e por um pedaço de terra virou questão de vida ou morte.

Para compor seu documentário, Julia optou por dar voz àqueles que não são ouvidos, aos marginalizados e perseguidos por um sistema opressor. A diretora construiu um retrato revelador e coerente do estado que registra 70% dos casos de trabalho escravo no Brasil e que possui o maior número de assassinatos no campo. O mesmo estado que em que foi assassinada a missionária Dorothy Stang, perseguida por fazendeiros porque defendia o uso sustentável da terra.

O documentário, que se utiliza de voz off e entrevistas, adquiriu uma estrutura certeira, abordando as questões mais caras ao tema. Além de trazer à tela a saga de trabalhadores vítimas de um sistema que controla pessoas e compromete a qualidade de vida de milhares de brasileiros, a cineasta parte para a denúncia das violaçãoes dos direitos humanos e da omissão do estado.

A intervenção do próprio poder público, tentando impor um modelo de desenvolvimento para essas regiões nas últimas décadas favoreceu grupos econômicos, pecuaristas, madeireiros e grandes mineradoras. Consequentemente, elimina e expulsa indígenas, quilombolas, trabalhadores e sem terras.

Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista, é necessário que alguém faça documentários. E, mais que isso, estabeleça asserções sobre o mundo que é mostrado na tela. O cineasta alemão Wim Wenders gostava de dizer que “a política mais importante é aquela que fazemos com o olhar”. Em Ameaçados, Julia Mariano honra com esse compromisso, trazendo a tona uma história que permanece soterrada, fruto da alienação de boa parte dos brasileiros.

A exibição de Ameaçados na programação do festival acontece num ótimo momento para o Brasil. Em tempos de eleições, é preciso trazer para a pauta as discussões em relação ao equivocado modelo agrário do país, que concentra a maior parte da terra nas mãos de poucos. Para propor uma reforma agrária, é preciso contrariar os interesses do capital financeiro que cresce enquanto o cidadão comum perece.

Ameaçados está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Para além do preto e branco

parque sovietico

por Lucas Navarro –

Comecemos por Parque Soviético. Um casal com encontro marcado dentro de um parque construído em homenagem aos sovietes discute a relação e sua inadiável separação. Na medida em que o diálogo vai tomando a forma prevista do desenlace, a escuta atenta-se para o eco fantasmático dos monumentos cuja reverberação equivale ao mistério da crise. A voz desses obeliscos mudos fala aquilo que o casal silencia. Ambas são, salvo as dimensões, guerras frias.
Há, porém, entre discussões e reconciliações, uma pista, contada somente nas imagens, da natureza misteriosa dessa relação. Ela sucede a abordagem do rapaz nas moças que se fotografam. Consiste em uma série de planos corriqueiros dos gestos retirados da cena que acabamos de ver, só que, agora, vista “de fora” pelos olhos da mulher que os individualiza em fragmentos: sorriso, carícia, olhar: signos que, convertidos pelo olhar ciumento em indícios da culpabilidade do parceiro, compõem o secreto idioma do qual ela não participa. Resta aquela conhecida violência em sua absoluta magnitude infringida contra si própria, decifradora – fracassada – de cenas. A sequência termina com uma segunda suspensão que poderíamos chamar de montagem dialética pouco ortodoxa ao princípio eisensteiniano. Refiro-me a interrupção do fluxo narrativo que des-cobre, em três quadros, o estado desses personagens que, destacados sobre batalhas opostas, convergem na síntese de um mesmo fundo. Entretanto, mal nos acostumamos à terceira via refletida no abraço, voltamos à afirmação da diferença.

Se existe uma lei que aproxima essas duas potências ela está na mútua seriedade com que não participam do encanto contido num mesmo corpo. Tanto isso é verdade que todos os defeitos são levantados até que não reste mais nada com que se possa ornamentar a matéria rochosa. A força contida na diferença cumpre o gesto de ferir lembranças encararando o rosto livre de códigos decifráveis.

O preto e branco conecta Parque Soviético e La Llamada. Não há a intensão de justapor os curtas apenas porque empregam esse efeito, mas sim lidar com as particularidades a partir desse ponto de contato. Enquanto que no primeiro caso essa opção funciona como um personagem norteador que acentua uma diferença primordial – ela veste branco; ele, preto – no segundo ela aparece como resistência à cor – tão cara a Cuba – contrastando o peso da memória ao vazio cotidiano. Ambos os filmes motivaram esse texto menos por suas relações exteriores do que pelo impacto que tiveram iniciando e concluindo uma mesma sessão. Reduzi-los em conceitos significaria ignorar a insolubilidade da experiência que provocaram.

Divididos por uma grade, o cineasta faz perguntas ao seu personagem até que esse assine o termo de contrato para instalação do telefone, o dispositivo que envolverá o filme. Já temos aqui um modo muito original de aproximação do assunto por meio de uma brincadeira metafórica que conecte o interior ao além-grades. A partir desse primeiro contato passaremos para o outro lado sem mais abandoná-lo. Ficamos então a observar pequenas cenas onde a intensão previamente organizada compete com o acaso circundante, gerando mais-valia nos termos do cinema.

Nos dois filmes lidamos com relacionamentos cuja crise pouco se sabe. Aqui as memórias de um filho, esposa, amigos e revolução são atenuadas via furacões. Já o advento do telefone pouco lhe altera o horizonte, pois a chance de ouvi-lo tocar é desacreditada meio que por antecipação, afinal ninguém possui seu número. A respiração das cenas parece, contudo, sugerir a chance de ouvir, a qualquer momento, a chamada.

O filme passa então a crescer sobre o abismo do seu personagem até o ponto em que esse, durante a simulada conversa com o filho, desvela o sadismo desse dispositivo, colocando em xeque todo um modo de olhar para si que escapa ao cineasta. A notória abertura dessa cena para autocrítica mostra como, por vezes, personagens diante do filme estão como bebês diante do canibal.

A resignação se revela potência. Isso por que Gustavo Vinagre parece ter plena consciência de que qualquer imagem quando projetada no quadro suscita questões que são, antes de tudo, questão de cinema. Pois é exatamente sobre uma tela autossuficiente que se exprime o ponto de chegada de La Llamada, sendo o seu valor documental meramente acessório. Resta, porém, a secreta vontade de conferir se o número revelado romperia as conhecidas grades que separam personagem e espectador.

Parque Soviético e La Llamada estão na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

O muro do arrebatamento

salomao

por Ivan Ribeiro –

Vivemos em uma época em que grupos religiosos, sejam eles ligados a qualquer crença, têm sido arquitetos de ações diversas e mudanças relevantes para a sociedade, ao redor do mundo, de um modo geral. Entenda “relevantes para a sociedade” por diversos aspectos. Proporcionando ajuda humanitária a populações necessitadas e devastadas pela miséria ou proporcionando guerras intermináveis. Propagando o amor ao próximo, a compreensão e, no mínimo, a tolerância ou disseminando preconceitos e ódio. Discutindo, junto à sociedade civil, temas de interesse público como o aborto, por exemplo, ou procurando impor seus preceitos e regras através de alianças e “cartadas” políticas.

No Brasil, onde a constituição declara que o Estado é laico (neutro ou imparcial no campo religioso, não apoiando ou discriminando nenhuma religião e não permitindo que nenhuma delas interfira em decisões sociopolíticas), temos visto, incoerentemente, o crescimento da influência cristã, sobretudo dos evangélicos, sobre as práticas políticas e ações do governo. Isso fica evidente em determinadas situações como, por exemplo, na inauguração do Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no bairro do Brás, na cidade de São Paulo, ocorrida oficialmente em 31 de julho de 2014, cerimônia à qual estiveram presentes diversos políticos brasileiros de alta cúpula, incluindo o prefeito da cidade, o governador do estado e a presidenta da nação. Presenças de importância estratégica no evento em ano de eleições.

Os líderes evangélicos e suas bancadas políticas no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, têm cada vez mais demonstrado seu poder e influência em assuntos vitais de interesse comum da sociedade deste país. A construção do já citado Templo de Salomão, além de ser obra de intesse dos fieis da IURD por se tratar de mais um local de orações e prática religiosa diária, foi também vista pela mídia e diversos segmentos da sociedade como uma demonstração física e visual deste poder.

E é sobre o surgimento desse “colosso arquitetônico” em plena região central da maior cidade do país que trata o preciso, sucinto e, ao mesmo tempo, assustadoramente poético, Salomão, curta-metragem dos diretores Miguel Antunes Ramos e Alexandre Wahrhaftig, também responsáveis pelo roteiro, produção, fotografia e edição do filme.

É por meio de imagens dos tapumes que cercam as obras do imenso templo que os diretores nos apresentam a monumentalidade do que está para surgir. Os tapumes são decorados com plácidas ilustrações do prédio que terá suas instalações erigidas no local. Gigantescas colunas, paredes imponentes de pedra impenetrável, paisagismo e arquitetura de deixar qualquer crente ou ateu sem fôlego e de pêlos eriçados, por onde, nas mesmas imagens, passeiam pessoas felizes, sorrindo, casais de mãos dadas com seus filhos, fieis tão pequenos perplexos diante da grandeza da obra de Deus (e dos homens), ofuscados não pelo sol que os acolhe, mas pelo matiz dourado do templo que acolhe e ofusca ainda mais.

Contrastando com os paineis que protegem a construção e a enchem de mistério e promessas de dádivas sem fim estão os transeuntes que passam pelo bairro, em frente aos tapumes. Pessoas comuns. Gente que vai de lá para cá atrás de seus afazeres diários, de seus empregos, preocupações cotidianas, vidas que seguem enquanto aguardam (ou não) a conclusão das obras atrás do muro. Gente que continua existindo e sobrevivendo independentemente do que é erguido no local.

Da construção do templo só ouvimos os sons de máquinas, tratores, escavadeiras, martelos, serras, ferramentas tão humanas que darão forma a obra tão divina. A brilhante direção de som do filme deixa no imaginário do espectador a relidade por trás daquelas tapadeiras que exibem o que foi idealizado por seus engenheiros e arquitetos. Mesclada ao som dos trabalhadores, começa a crescer, em off, a voz de um pastor que prega maravilhas. O pastor, possivelmente repleto da inspiração do Espírito Santo, se empolga cada vez mais, num ritmo e intensidade crescentes, exaltando-se e exaltando o poder (de sua fé) de Deus:

“Depois da tempestade vem a bonança”. “É preciso existir guerra para que haja vitória”.

Os tapumes já não existem mais. Andaimes imensos, intrínsecas teias enormes de barras de ferro, emaranhados de madeira, pregos e metal santos surgem na tela diante dos olhos extasiados ou indignados do espectador da sala de cinema.

O Templo de Salomão vai surgir, o templo está de pé, Aleluia!

Enquanto isso, as pessoas na rua apenas passam. E param. E seguem.

E Salomão, sem fazer qualquer crítica contrária nem apologia à construção do Templo ou à IURD e seus representantes, deixa para o espectador a responsabilidade da reflexão. O que é necessidade real e o que é dispensável? O que é fundamentalismo e o que é fé? O que é realidade e o que é utopia? O que está à vista o que se faz oculto? O que é caridade e o que é ostentação? O que é divino e o que é humano?

Mas uma certeza fica. Este deus tem uma nova casa na Torre de Babel que é esta cidade sulamericana com nome de santo. Paraíso para uns, inferno para outros tantos.

Hosana nas alturas!!!!!

Salomão está na mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A emergência do silêncio

vao livre

por Lucas Navarro –

Antes de tudo, claro, o impasse. A fala que tenta voltar après-coup ao gesto da irmã busca desfazer os lacres que encobrem o inefável que a sustenta. Esvaziada de significações compartilháveis, ela respira o fracasso da intenção comunicativa. Todo esforço está mobilizado para aprender a “dizer de outro jeito” aquilo que o maquinário da linguagem não consegue mais submeter em discurso assimilável (“podia ter dado certo no jornal”, lamenta a mãe) tendo que, para isso, adequar sua voz à violência da atmosfera. Aprender a dizer de outro jeito requer, porém, um trabalho rigoroso sobre corpos em cena para que, somente a partir dessa organização, a voz reconcilie o sentido original sobre o qual vacila, devolvendo a autenticidade da experiência narrada.

Dividido em datas que funcionam como uma espécie de antecâmara daquilo que ouvimos nos créditos, as cenas de Vão Livre mostram uma identificação progressiva da protagonista com a continuidade das lutas deixadas pela irmã. Contudo, essa luta é sempre prorrogada entre discussões e palpites sobre possíveis datas e possíveis pautas. Essa espera no interior dos tableaux é responsável por uma aparente passividade que, por sua vez, é antes efeito da intensificação da sensibilidade, de uma atenção excessiva, que aproxima a crítica do advento desejado. Uma variante dessa imagem está justamente na passividade produtiva da mulher que gera, em seu silêncio, o sentido da conversa. Se aquilo que conhecemos de sua irmã é pura ação, aquilo que vemos, do seu lado, é pura hesitação – detalhe que dá à personagem o peso de duas memórias conflitantes: a tranquilidade, tão cara à sua avó, e a coragem mobilizadora da irmã. Tradição e ímpeto, como soma de lembranças, são forças antagônicas que movem o filme de uma disposição não contaminada pela percepção entorpecedora do passado ao privilégio do instante como único possível de afirmar seu compromisso com o presente.

Concebido como projeto de conclusão de curso momentos antes à irrupção das manifestações de junho, a produção de Bruno Marra e Steffi Braucks atravessou o evento incorporando alguns elementos junto àqueles já existentes na ideia inicial. Isso para esclarecer que não incorro aqui afirmando a redução da obra como reação direta ao calor episódico do protesto, mas na tentativa de perceber a capacidade transitiva interiorizada no processo. Responde ao seu tempo histórico sem trai-lo ou ser seu escravo. Esse amálgama entre crítica e contexto fica ainda mais claro se notarmos as diferenças brutais entre esse filme e aqueles realizados in loco (Rio em Chamas, 20 Centavos, Junho), cuja força reside tão somente numa descrição irrefletida dos fatos acreditando, pela proximidade estabelecida, enxergá-los objetivamente. Quando revistos no momento atual suas imagens parecem esgotar um referente aflorado sob uma pressa vertiginosa pela qual experimentamos outrora o prazer de nos deixamos violentar as retinas. Vão Livre, por sua vez, evoca uma violência simbólica, e silenciosa, tão atual que poderia ter sido feito amanhã.

Se já acostumamos a ver na produção universitária uma conformidade estética (política, portanto) com tendências já consolidadas cujo preço se dá na abdicação da tradução ativa no curso da história, observo que, aqui, não é o caso. Vão Livre compõe solitariamente o panorama da mostra Cinema em Curso. Isso por que ele nos apresenta um conflito irredutível ao núcleo da família ou do indivíduo tomado como berço dos sentimentos e expressões, preferindo revelar um colapso que transborda os limites do espaço privado, dentro da qual era ainda possível reconhecer um princípio de causa. A emergência desse novo olhar está em perceber que a obra, antes de encerrar o assunto que a engendra, ascende, num movimento de luz, o impacto estético fundamentado naquilo que Rivette chamou de um “elo entre algo exterior e muito secreto, que um gesto imprevisto desvela sem explicar”.

Vão Livre está na mostra Cinema em Curso 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Antropofagia, tecnofagia, autofagia. Bulimia.

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Mas não está claro que o problema está na terra? Essa aí com a letra minúscula que a gente pisa em cima e às vezes esfarela ou afunda, mas que começou a crescer e a engolir o Sol: febre do cimento, aço fálico.

Mudo. No quarto, um cigarro e o amanhecer: Não estamos sonhando. Ligou o gravador: o som das novas construções invade o filme, a febre é barulhenta, pede, além das palavras de um discurso de resignação, ação.

Vandalismo. São as pessoas que sempre estiveram ali com seu som e seus corpos reboliços que invadem a tela em Lagoa Remix. Parte da sessão Tomada Única, o filme superoitista traz a dança e as brincadeiras de quem frequenta a lagoa, a qual será também alvo futuro de reapropriação. Em volta da lagoa, carros de som com volume muito alto compõem a trilha do filme; o cenário, talvez pela proximidade das sessões, lembrou o de Céu sobre a água de Agrippino, revestindo-o da contemporaneidade da dança do bumbum, do período tão atual de manifestações e “datenismos” e explicitando o comum que se tornou a mediação. “Esse prefeito não presta, é eu que tô falando”, diz a moça pra câmera.

É eu que tô falando. “Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça o seu! arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde. Mostre. Isso é possível”. Torquato Neto em 1971 bradava pelo que hoje é quase hábito, senão demanda. O olhar sobre o contemporâneo e sobre o referencial ao qual pertence o artista, fez a produção superoitista na década de 70 resistir ao que pregava instituições e a cultura oficial, enfatizando a experiência pessoal como espaço de crítica política, econômica, etc. É a partir de seu próprio chão que o funcionamento do espaço é reavaliado (maldito foi o dia em que Adão resolveu fazer um testamento), quase um happening na vizinhança, o registro de um ato performático que rompe com o comportamento socialmente aceito. Dentro dessa política, o corpo ganha espaço no filme Super-8, e é por aí que caminha a dança do bumbum de Lagoa remix ou a masturbação e transa em espaços públicos de Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu.

Risse de tanto cu. Com certeza, de todos os filmes, Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu foi o que mais risadas trouxe à sala de exibição. Não foi só pela atitude a la Jackass com suas máscaras e bichinhos masturbatórios que as bocas se encheram de risos, algo ali incomodou e, se incomodou, deve ser bom, deboche é isso (também). Três rapazes espalhando amor pela cidade onde uma nova Dubai vai crescer monumental acabam por se jogar nos campos cercados nas proximidades do “haver avencas” relembrando os planos finais de Toques.

Monumental. O desmaio diante do monumental falo de cimento, depois da trajetória que percorre estátuas e outras construções “postais” (em forma de poste) é sedução que mata em Falos e Badalos. Mata sim e pra não morrer é preciso merda. Como disse o professor Rubens Machado após a exibição: “O 35mm dedica-se a construir monumentos; o 16mm a questioná-los; o Super-8 vem jogar merda nos monumentos”. Merda em forma de efeito visual, em trepidação, a bitola não é Super-8, mas se faz necessário a ação, a ação imaginária ou o terrorismo imagético. Buscando construir “o mundo que queremos”, Não estamos sonhando joga bombas nos prédios ao redor, destrói a imagem deles.

Terrorismo, aí vêm as câmeras de segurança, de vigilância, uma violência contra os corpos em planos contra plongée. Mas a suspeita de bomba é outra, é a que está na caixa de Marcelo Pedroso em Câmara Escura e que entra pela porta ou pela caixa de correio em uma propriedade privada, que filma e é logo julgada e condenada, uma arma, claro, a caixa preta de Vilém Flusser é logo tratada como criminosa, então é hora de fazer o filme.

Filmes bulímicos. Sem generalizações didáticas, vão pras telas. Nem sempre muitas telas, infelizmente. A produção superoitista de 70 já não tinha o público como grande preocupação, sendo assistido por quase ninguém em sua própria época. Espero que festivais como o Curta Oito, Kinoforum, youtube, vimeo e outros canais possam fazer essa interface. O desbunde aparenta muitas vezes como atitude vazia ou apenas risível, mas febres precisam baixar antes do colapso, não se vomita ar.

Carol Neumann

Não Estamos Sonhando e Câmara escura estão na Mostra Brasil. Clique aqui e veja as próximas sessões dos filmes

Lagoa Remix, Amor e outras construções e Falos e Badalos estão na mostra Tomada Única. Clique aqui e conheça o projeto

Memória, chumbo e cinzas

O momento da história do país mais revisitado pelo cinema nacional é, sem dúvidas, o período que compreende a ditadura militar iniciada em 1964. Filmes documentais, ficcionais ou experimentais reconstituem, cada um à sua maneira, a violência do poder institucionalizado, a supressão de direitos civis e políticos e a luta de todos os que se colocaram na linha de frente, armados ou não, pela defesa da democracia e liberdade de expressão.

A vasta produção sobre o tema, no entanto, não impede que o cinema contemporâneo brasileiro continue a se debruçar sobre os chamados “anos de chumbo” com criatividade, originalidade e crítica. Um dos melhores exemplos é Ser Tão Cinzento, premiado no É Tudo Verdade e no Festival de Brasília. O diretor Henrique Dantas apropriou-se de diferentes linguagens para contar a história da perseguição política sofrida pelo cineasta Olney São Paulo.

A partir da projeção de Manhã Cinzenta (1969), uma das mais marcantes obras de Olney, nas paredes de uma construção em ruínas com elementos do cenário que remetem às torturas, quem não sabia a situação em que o realizador baiano Olney foi preso passa a conhecê-la.

E quem já sabia acompanha uma riquíssima série de depoimentos. Profissionais da equipe do filme e outros cineastas contam sobre as filmagens, falam das circustâncias em que Olney foi perseguido, preso e torturado, vindo a falecer em 1978. Orlando Senna, José Carlos Avellar e Luis Paulino dos Santos são apenas alguns dos entrevistados.

Da instalação que reproduz a obra de Olney, o espectador guarda algumas das mais belas imagens da única cópia que restou do filme, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dantas traça um panorama político e da própria história do cinema brasileiro.

Se Manhã Cinzenta já fazia a crítica ao contexto da época — ao falar de um país imaginário da América Latina em que os estudantes manifestam-se, são presos e interrogados por um robô –, o curta de Henrique Dantas alia o experimental ao documental para refletir, e não apenas sobre os abusos da ditadura; para relembrar e trazer à tona para o público a importância de pessoas muitas vezes esquecidas na nossa memória como Olney São Paulo, a quem Glauber Rocha chamava de “mártir do cinema brasileiro”.

Camila Fink

Ser Tão Cinzento está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme