De Profundis: o chuvisco corrosivo das memórias

de profundis

por Rodrigo Sá –

“Vivo numa casa colonial na calçada de sol do parque de San Nicolás, onde passei todos os dias da minha vida sem mulher nem fortuna, onde viveram e morreram meus pais, e onde me propus morrer só, na mesma cama em que nasci e em um dia que desejo longínquo e sem dor.”

Memória de Minhas Putas Tristes, Gabriel Garcia Marquez

De certo modo, o curta De Profundis, de Isabela Cribari, parece dar continuidade a uma reflexão bastante comum no cinema pernambucano contemporâneo: a investigação das relações entre o sujeito e a cidade. Ao enfocar tal relação, a obra une-se a um conjunto extenso de filmes como O Som ao Redor (2012), Boa Sorte, Meu Amor (2012), Um Lugar ao Sol (2009), Praça Walt Disney (2011), Em Trânsito (2013) e Eiffel (2008), que confeccionaram sua narrativa com as agulhas da crítica à cidade e seus processos coercivos de urbanização.

No entanto, a peculiaridade do filme de Isabela deve-se ao fato de a abordagem seguir na contramão dos demais filmes citados acima. De Profundis não trata de um problema circunscrito aos limites metropolitanos da capital Recife, mas investiga algo que irrompeu na cidade interiorana de Itacuruba. Isabela – que além de cineasta é também psicanalista – estava incomodada com o fato de a cidade apresentar níveis de depressão dez vezes maiores que a média nacional. Alimentada por esse incômodo e pela crença de que o cinema é um instrumento propício para refletir sobre o tema, Isabela foi até Itacuruba e filmou De Profundis, obra que desponta como um dos destaques da Mostra Brasil do Festival Internacional de Curtas de São Paulo, assim como destacou-se em festivais anteriores como É Tudo Verdade e Mostra do Filme Livre (onde chegou a ser premiado).

De antemão, acentua-se a semelhança do modo da diretora proceder à do filósofo Bachelard (autor do memorável Poética do Espaço), isto é, tomando o espaço como instrumento de análise para a subjetividade. Isso se deve a constatação de que os casos de depressão foram deflagrados após a destruição de Itacuruba Velha para a construção da Barragem de Itaparica. Os vestígios do deslocamento dos moradores para a Nova Itacuruba foram atravessados por contornos psíquicos. Se antes, era exatamente a proximidade dos rios que atraíam os povos indígenas para a região (vide o exemplo dos Pankararus). Agora, a proximidade fluvial desencadeou o processo de migração forçada do povo. O caso torna-se ainda mais gritante quando lembramos das recentes expulsões de povos de suas terras em virtude de grandes eventos como a Copa do Mundo

Assolados pelo afogamento da antiga cidade, uma gama de moradores de Itacuruba passaram a sofrer com os sintomas psíquicos da depressão. Trata-se da densidade das memórias perpetuando o eterno retorno delas à superfície. E com elas, a dor profunda.

As lembranças resistem ao afogamento, pois não se deixam levar pelas correntezas aquáticas, transfigurando-se em correntezas áridas de lembranças indeléveis como aquelas apresentadas na primeira sequência do filme, onde o sertão aparece delineado pelo turbulento vagueio de uma correnteza. Uma grandes belezas do filme está justamente na maneira de metaforizar esse pairar das memórias sobre as águas. Belas imagens de corpos e fotografias flutuando no rio simbolizam isso e dotam o filme de uma beleza alegórica que incrementa a narrativa documental.

Para penetrar na vida íntima dos moradores, o filme faz uso das entrevistas, as quais são marcadas pela tristeza profunda decorrente das alterações do modo de vida ocorridas após a migração. Ademais, o curta rejeita as tradicionais cabeças falantes e investe, em vários momentos, nos planos longos, com a câmera fixa, para retratar o vazio que habita a nova cidade. Enquanto isso, a voz em off dos moradores narra os casos psíquicos e seus evidentes motivos. Os relatos são ressaltados pelos sons de águas submersas que misturam-se às vozes das personagens juntamente com os ruídos das ruas da cidade onde subsistem apenas o vazio e um (quase) silêncio ensurdecedor. Quando são as imagens da água que invadiu a cidade que emerge na tela, é o som estridente de um violino que ressalta o padecimento que boia incansavelmente sobre a água. Assim, o elemento sonoro configura-se como um aspecto de bastante relevância para proporcionar ao curta uma perene atmosfera sufocante, tal como a que ressoa coercivamente entre os habitantes do novo território.

Imagens de arquivos são apresentadas para ilustrar imagens antigas da cidade, ancorando o filme na historicidade dos fatos e solidificando o conhecimento do contexto dos acontecimentos. O fato das imagens terem sido gravadas pelos próprios moradores – ao menos uma parte delas, como percebe-se pela narração que as acompanha – potencializa ainda mais a dramaticidade das imagens e o valor afetivo relacionado a elas. Uma cena onde vibra uma alegria aparente, na qual os moradores dançavam em um baile da região, é acompanhada pelo violino angustiante. Com isso, somos remetidos à noção de que o processo de rememoração é sempre permeado pelo presente, ou seja, de onde se rememora. Logo, ainda que naquele momento os moradores esbanjassem alegria, é a situação sofrível do presente que determina a maneira delas ascenderem, via memória, no presente. Em vista disso, o violino atribui a cena uma temporalidade que coaduna com a do momento que os personagens estão a contar seus relatos.

Uma espécie de anseio pode ser visto no plano em que é apresentada uma casa cuja decoração é repleta de guarda-chuvas pendurados. Talvez, o que os moradores da cidade mais quisessem era uma proteção como essa para não serem atingidos pelo chuvisco uniforme e corrosivo das memórias. Ou então, no limite, fazer o mesmo que aquela moça no último plano do filme: seguir rio a dentro, caminhar para as águas profundas, como se lá no fundo houvesse de surgir um atalho para a cidade antiga, para um tempo que não existe mais.

O escoamento das imagens da cidade submersa com as vozes narrando os acontecimentos é dilacerante. O pouco que resta da parte superior da igreja sobre as águas é consoante ao pouco que resta daqueles moradores, já que uma parte deles ficou no antigo território. Num momento pungente do curta, uma moradora relata um caso de suicídio e afirma não ter explicação para o acontecimento. Todavia, as imagens da cidade submersa não mentem: o desaparecimento da cidade é a única explicação possível.

De Profundis, ao tratar de maneira poética com relances experimentais da especificidade da situação dos moradores de Itacuruba – marcada pelos vertiginosos e surpreendentes casos de depressão – eclode como uma obra que não apenas serve como instrumento de crítica aos processos de migrações forçados, mas também para captar o sentimento da depressão, o qual insiste em não submeter-se à linguagem – nem mesmo a da própria psiquiatria, como dizia Foucault: “A psicologia não tem a verdade sobre a loucura, a loucura tem a verdade sobre a psiquiatria –, mas que por vezes é tangenciado por uma obra de uma profundidade tal como De Profundis. Além disso, em um tempo onde casos de depressão e de violência contra povos nativos é cada vez mais frequente, é imprescindível a construção de uma linguagem que abarque o tema fugindo do convencional. Apenas assim, a obra assume uma magnitude capaz de exceder os limites do comum e tornar-se algo de uma pertinência irrefutável.

O arquipélago: um retrato pelo espelho

o arquipelago

por Rodrigo Faustini –

Neste ano me encontro numa participação diferente no Kinoforum – encarando as críticas pela segunda vez e, também, tendo feito um trabalho de curadoria para uma sessão do “Programação em Curso” do festival, para minha universidade. Assim, chego ao festival já tendo visto a maioria dos curtas, ainda que comprimidos – aliás, a compressão digital (das versões que tive acesso dos filmes) apena acentuou um macabro clima de mesmice no atual curta-metragem brasileiro; difícil manter a atenção a cada vez que surge na tela mais um retrato mal formulado de um adolescente de classe média, um flerte com o cinema de gênero (que nunca chega…) ou a megalópole de lamentações sobre o “urbano”.

Não foi por acaso, então, que preferi começar minha escrita aqui por uma mostra paralela, “O realizador e seu tempo” – escolha fortuita, pois nela se encontram idiossincrasias que se destacam no festival, alguns pontos fora da reta – filmes longos demais para os padrões de inscrição, ou que não se adequavam por um motivo ou outro em outras mostras. Como o nome pela sessão indica, haveriam concepções de tempo narrativo interessantes ali.

O recorte certamente influenciou a recepção das obras – num dos momentos mais interessantes, uma boa parte da platéia aplaudiu o filme O arquipélago, de Gustavo Beck, antes mesmo que seu título aparecesse na tela, supondo que o filme havia acabado (o título só chega pela metade do filme); o filme reivindicava ali seu próprio tempo.

Um curta (média?) que abre com um grande prólogo, um monólogo intimista com um ser com o qual temos muita pouca intimidade, uma imagem numa tela que parece declarar algo a si mesma, embora fale para a câmera. Era difícil entender suas palavras, seu conflito, e mesmo em seguida o filme fazia poucas concessões: apresentava momentos cotidianos de uma família, como a espera de ônibus de uma mãe com seu filho; ficamos a olhar o carinho de um pelo outro (e o cofrinho do garoto), num plano parado. Não me lembro se o ônibus chegava ou não, mas a espera era ansiosa.

Ao invés de deixar o filme a esmo, a quase independência de cada momento, retratado em longos planos, criava micronarrativas, ilhéus. E dentre os recentes ensaios sobre o urbano, O arquipélago se destaca por se focar na paisagem emocional e humana que nela habita, isolada: no que me soou como uma releitura muito interessante de Zoo (de Burt Haanstra, 1961), o filme encerra-se num zoológico, onde ficamos a observar animais que, sem consciência disso, atuam para a câmera e a plateia (e para os próprios personagens). O que fascina na observação dessas vidas, mundanas e restringidas pela própria maneira com a qual os vemos? Suas semelhanças com nós mesmos, talvez – quando a câmera é estática e o enquadramento frontal, seus retratos assemelham-se aos de um espelho.

O Arquipélago está na mostra O Realizador e seu Tempo. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Em respeito à solidão

au revoir

O minucioso controle e planejamento dos gestos, palavras, enquadramentos e cortes parece procedimento minoritário no atual contexto do cinema de caráter mais “autoral”. Em meio à um mar de planos propositadamente esgarçados, gestos “espontaneamente” rarefeitos em seus sentidos e uma certa utilização da ambiguidade como fator pré-legitimador a filmes que se querem “sérios”, Au Revoir, de Milena Times, chega como uma necessária recordação da riqueza e pertinência que a construção cinematográfica econômica e precisa em suas escolhas, sem receio de fazer sentido, pode agregar a um filme.

O corpo da protagonista carrega em cada gesto uma objetividade narrativa que, ao contrário do engessamento que tal escolha dramática aparentemente suscitaria, acaba por pontuar ao longo do filme – aliada sempre à fala precisa e à uma minuciosa exploração espacial – os exatos humores e níveis de familiaridade vividos entre a brasileira e a senhora sua vizinha ao longo da delicada relação ali estabelecida.

O hall do edifício em que moram é a primeira fronteira entre suas intimidades. Encontrando-se através de seus respectivos exílios, as duas mulheres percorrem um caminho de incômodas minúcias. O apartamento vizinho, que a mais jovem, a princípio, adentrava com acanhamento e retidão, passa a ser um prolongamento de seu lar: um imóvel do qual partilha as chaves e a solidão inabitável.

Se a fronteira entre seus apartamentos é logo transposta, a total aproximação entre as duas personagens só esboça se dar por completa sob a íntima e solitária lógica da dor humana, na qual, em sua excruciante plenitude, só é possível permanecer sozinha(o). Quando a jovem esboça partilhar de seu sofrimento, a convalescente senhora necessita partir: Não existe calvário com lugar para dois.

Os últimos planos do filme são os do apartamento da falecida, vemos a brasileira sozinha no quarto de cama vazia e a sala sem seu gato: nem mesmo Hércules resistiu. Idos aqueles poucos próximos de si, restam à jovem a indiferença do espaço e um cilindro de oxigênio, condições típicas para todos nós, exilados.

Bruno Marra

Au Revoir está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Amor obscuro

Em Amores Passageiros, de Augusto Canani, partimos das imagens pálidas da cidade, de seus viadutos pichados, para adentrar a escuridão das galerias subterrâneas do esgoto, junto com o recluso Benites (Osmar Prado), e descobrir que seu trabalho solitário e distante do mundo espelha sua vida, que está prestes, estranhamente, a se transformar.

Lá embaixo, ele fica admirado com a descoberta do cadáver de uma bela garota. Esse acontecimento reativa a sua vontade de viver um relacionamento, trazendo um facho de luz à sua jornada na escuridão. Assim, nos tornamos quase cúmplices desse homem e de seu amor.

Amor que age como um sopro de vida para o protagonista. Paradoxalmente, é na morte que ele encontra uma razão para reviver. Dessa forma, percebemos o quanto ele mesmo era um “morto-vivo”. Mas o tema, tratado com sensibilidade, nos inspira compaixão em vez de repulsa pelo protagonista.

Afinal, nos afeiçoamos a Benites em sua tentativa de aplacar a solidão. Agora, ele se preocupa novamente em arrumar a casa, começa a consertar a porta e até compra um vestido para a sua “esposa”. As mudanças chamam a atenção dos colegas de trabalho e dos vizinhos, mas é o mau cheiro vindo de seu apartamento que se torna um problema para a sua necessária discrição.

O terceiro curta de Augusto Canani — ao contrário do seu anterior, o curioso Amigos Bizarros do Ricardinho (2010), que apostava em uma variedade de personagens e situações — investe no isolamento do protagonista, além da harmonia entre os enquadramentos, da paleta de cores e da maquiagem, que contribuem para o tom lívido e mórbido da história.

O diretor também se utiliza, para esse propósito, da trilha sonora que evidencia a cortante solidão dos ambientes, de uma interpretação de gestos e olhares, e em situações mais íntimas, como quando Benites e a falecida assistem à televisão juntos ou quando ele cuida da aparência dela.

Por fim, Benites, diante da chance de terminar seu relacionamento, escolhe ser fiel a ele, uma escolha difícil, mas coerente com a fatalidade de seu obscuro amor.

Marcelo Félix Moraes

Amores Passageiros está na Mostra Brasil 9. Clique aqui para ver a programação do filme