Sobre a delicadeza e o amor profundo

na sua companhia

Complicado falar sobre o que um filme é ou deixa de ser. Na sua companhia foi exibido como parte de um programa intitulado LiberCine, de temática LGBTTT, mas se destacava muito das outras produções pela obliquidade com que se refere a esse universo. Diferentemente dos outros filmes do programa, a sexualidade não é um ponto em questão, e sua afirmação não se faz por meios tradicionais ou simplistas.

O filme se insere numa tendência contemporânea de ausência de confronto, e vai além, eliminando o conflito dramático. Forçosamente nada acontece em cena. Na sua Companhia é uma série de tableaux – o bar, a casa, a cama, a rua, o churrasco, o encontro – que dialogam entre si, mas que (por definição) tem pouca ou nenhuma transformação interna. A história se conta nas comutações, em uma constante reavaliação do estado em que se encontra a relação dos dois.

Esses tableaux são – principalmente no começo – marcados por códigos visuais muito expressivos e que acabam sendo fundamentais nessa narrata épica. O melhor exemplo é a primeira cena do filme, que estabelece uma relação ambígua de poder e voyeurismo/exibicionismo a qual nos remete a um certo tipo de filme de terror (Bruxa de blair, REC, The Poughkeepsie Tapes). Esse código visual cria em nós uma expectativa de que “alguma coisa dará errado”. Mais que isso, ela codifica nossa primeira leitura do protagonista como sendo um perverso (provavelmente, um vilão), distanciando-nos dele. Existe ao longo de grande parte do filme uma expectativa de que algo de ruim irá acontecer porque na primeira cena nossa relação com o protagonista foi formatada através de uma série de artifícios de linguagem – não se trata de uma característica da personagem, mas um determinado conjunto de expectativas que estão associadas a sua representação. Com o tempo, o filme vai adotando outros códigos de linguagem que vão transformando nossa relação com o protagonista branco sem que exista uma transformação da personagem. O contraponto entre esses códigos visuais muito diversos é parte do mecanismo de ‘contar a história’.

Não há propriamente drama, ainda que haja algo ‘acontecendo’. As quebras de expectativa existem a nível estrutural: coisas que, no início, estão postas como questão perdem arbitrariamente esse estatuto; aquilo que parecia essencial revela-se banal. Por exemplo, do código de terror do começo sombrio, o homem mais velho tem uma relação complicada com essa câmera e ele mesmo diz não querer que lhe filmem. De repente, sem pestanejar, ele cede ao pedido do amante e se deixa ser filmado.

Não obstante essa complexidade formal, o filme é sobre duas personagens e sobre uma relação que tem um arco muito claro. Ao contrário do que se pode dizer de grande parte da ficção recente, os protagonistas de Na sua Companhia são ativos e isso não é banal. A relação dos dois evolui a partir de concessões: um que topa o convite para o jantar, outro que topa ser filmado. O rapaz negro é o vetor fundamental das mudanças, e o fato de ele tomar a câmera em mãos, arrebatando o ponto de vista e o próprio protagonismo do filme indica a conquista do direito à própria representação. Essas personagens que no início estão à mercê dos códigos do narrador no final estão produzindo sua própria imagem; e esse é o grande turning point da narrativa.

E, ainda assim, em nenhum momento olhamos de frente para esse casal. Somos dados a conhecer recortes específicos de sua trajetória, fragmentos de uma história da qual o espectador tem grandes lacunas a preencher, ao contrário de uma ficção contemporânea onde a mais banal das coisas é passível de ser artificialmente trabalhada para ser impactante e chamativa. O exemplo paroxístico é o filme de Sam Raimi, onde Oz não é senão uma paródia da realidade: tudo lá é maior e mais colorido e as flores abrem-se ao passar do protagonista, numa tentativa de dar conta de uma sensibilidade amortecida.

Em Na sua companhia somos convidados a contemplar uma relação cujo momento apoteótico é um abraço e a frase “Você é o máximo”. Há uma pequenez nesse gesto que carrega algo de (neo?) realista e que dá conta de uma relação que não precisa gritar para se afirmar. Quem assistir a esse filme na expectativa de que o filme lhe “entretenha” ou lhe “diga algo” sairá frustrado porque o filme de Marcelo Caetano é a representação de uma conjuntura complexa e chego ao fim na certeza de que estou muito longe de dar conta do filme como um todo, mas muito grato a Rubens Rewald e a Heitor Augusto por sensibilizarem meu olhar para este filme.

Por fim, a temática homossexual é indispensável ao enredo deste filme. O filme iniciar em código de suspense não é ingênuo na medida em que o universo gay é tradicionalmente associado a “perversidade”. A narrativa de uma relação que começa num ambiente tenso e obscuro e termina solar só poderia ser o arco de uma relação cuja afetividade vem carregada de pré-conceituação social. A obra lida, entre muitas outras coisas, com essa não superada marginalização da homoafetividade, afirmando-a ao trata-la todo o tempo como premissa e não como dilema fundamental do relacionamento.

Na sua companhia, para felicidade geral da nação, é um filme de amor com final feliz.

João Pedone

Na sua Companhia está na Mostra Libercine. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Memória dela, memória nossa

memoria da memoria

Assisti a esse filme e pensei (não sem uma dose de delírio, afinal, estamos falando de “desbunde”): “Está aí um caminho de encontro entre os realizadores caseiros com as possibilidades de expressão estética!”. Paula Gaitán fez, ao mesmo tempo, muito e nada além do que qualquer realizador diletante faria: reuniu as pessoas próximas dela para mostrar o que havia gravado e guardado sem rebuscamentos plásticos evidentes, contando apenas com as características físicas do suporte.

Falando como nós, os hoje como nunca, capazes materialmente de registrar tudo ao nosso redor, em certa medida ela nos supera: pelo dispositivo adotado nesse “egodocumentário”, ela mescla os interesses íntimos (muito próximos aos que nos movemos a reencontrar quando revemos os registros audiovisuais antigos de aniversários ou férias em casa) oferecendo e também construindo um prolongamento de tempos e espaços entre seus interlocutores no mundo diegético e os espectadores atrás da tela.

Seja pelas contextualizações pontuais do passado histórico, seja por comentários sobre o que envolveu os momentos de captação de imagens específicas, ela coloca o público como parte daquela apreciação familiar dos registros esparsos, nos torna unidos com as pessoas que em certo momento descobrimos serem seus filhos, uma vez que como eles parecem demonstrar, também vemos aquele material pela primeira vez, e somamos a curiosidade meramente voyeurista (inerente do cinema, mas em certa medida só possível com uma sensação de viver certo pacto implícito próprio da intimidade) ao interesse cinéfilo, de procurar por expressividades amplas, que possam estar nas imagens e sensações resultantes de sensibilidades incomuns, com algo de extraordinário, no sentido etimológico do termo: para além dos indicadores das trivialidades cotidianas, mesmo lidando com elas.

O caminho que apontei no início do texto: tanto se fala na contemporaneidade como período histórico em que as fronteiras entre imagem pública e imagem privada, se confundem, se borram ou são literalmente derrubadas, talvez o curta aponte o lado mais positivo de um cenário correntemente tratado como apocalíptico: a chance de executar uma construção de memória que é igual e sinceramente espontânea e construída, acidental e intencional, intuitiva e consciente.

Honestidades e liberdades factuais e criativas. Alternativa possível aos aficionados por gravar algo que ultrapasse os acidentes cômicos e/ou emulações televisas vistas no YouTube, se for repetida e gradualmente “distorcida”, reinterpretada, aos sabores artísticos e possibilidades técnicas de cada realizador, por ser livre sem ser negligente, deixar à mostra o que da mesma forma também podemos abraçar e abarcar: as músicas que ouvimos, os espaços que conquistamos, as pessoas às quais nos afeiçoamos.

Rafael Marcelino

A Memória da Memória está na mostra Cinema do Desbunde 2

A cidade e seus personagens

os irmaos mai

Thais Fujinaga, diretora do belo curta-metragem L, que arrebatou mais de 50 prêmios e menções, volta às telas neste ano com mais um maduro filme e repete a parceria com o jovem ator Luis Mai King. O argumento de Os Imãos Mai, sobre um fragmento de um dia de dois garotos em busca de um presente de aniversário para a avó pode parecer simples. Se no seu curta anterior a realizadora desenvolveu com muita delicadeza o drama de Tetê e Hector – de aceitação da aparência, a partir da intimidade entre os dois amigos –, em Os Imãos Mai ela privilegia novamente as relações pessoais enquanto promove um profundo olhar sobre a metrópole.

Como num road movie, o trajeto é mais importante do que o destino. A partir das andanças nas ruas, quando de fato vivenciam a cidade, é que os meninos são transformados pelo acaso, pelas surpresas, pela convivência com os anônimos que cruzam o seus caminhos. São Paulo está lá tal como é: bela, agressiva, concreta e humana. Diferentes crenças, valores, relações de trabalho, posições políticas e sociais são apresentadas de diversas formas e colaboram para traduzir a capital paulista em imagens.

A cidade que desconstroi é a mesma que transforma e recria, promove mudanças e reflete o relacionamento dos irmãos chineses, ora conflituoso, ora de bem-querer. Nesse sentido, de maneira bem orgânica, os meninos respondem aos estímulos da cidade, que por sua vez, retruca com uma sinfonia de sons, empecilhos e acidentes. Uma tentativa de mandar fazer um presente, uma chuva fora de hora, vontades, raivas e desejos incontroláveis, tudo pode provocar novos sentimentos e reações. O que é inútil para alguns pode ser tudo para muitos outros.

Se o roteiro, também assinado por essa segura diretora, é excelente, o trabalho com som e trilha sonora também merecem destaque. Finalmente, a sequência final é uma síntese do curta. Enquanto os irmãos partilham de pontos de vista opostos e sentem a necessidade de interagir, mas guardam certo distanciamento, cada um em seu cantinho da varanda do prédio. No enquadramento, ao fundo, um caótico e fluido fluxo de carros, enfatizando mais uma vez, a relação dos meninos com a cidade.

Camila Fink

Os Imãos Mai está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Em respeito à solidão

au revoir

O minucioso controle e planejamento dos gestos, palavras, enquadramentos e cortes parece procedimento minoritário no atual contexto do cinema de caráter mais “autoral”. Em meio à um mar de planos propositadamente esgarçados, gestos “espontaneamente” rarefeitos em seus sentidos e uma certa utilização da ambiguidade como fator pré-legitimador a filmes que se querem “sérios”, Au Revoir, de Milena Times, chega como uma necessária recordação da riqueza e pertinência que a construção cinematográfica econômica e precisa em suas escolhas, sem receio de fazer sentido, pode agregar a um filme.

O corpo da protagonista carrega em cada gesto uma objetividade narrativa que, ao contrário do engessamento que tal escolha dramática aparentemente suscitaria, acaba por pontuar ao longo do filme – aliada sempre à fala precisa e à uma minuciosa exploração espacial – os exatos humores e níveis de familiaridade vividos entre a brasileira e a senhora sua vizinha ao longo da delicada relação ali estabelecida.

O hall do edifício em que moram é a primeira fronteira entre suas intimidades. Encontrando-se através de seus respectivos exílios, as duas mulheres percorrem um caminho de incômodas minúcias. O apartamento vizinho, que a mais jovem, a princípio, adentrava com acanhamento e retidão, passa a ser um prolongamento de seu lar: um imóvel do qual partilha as chaves e a solidão inabitável.

Se a fronteira entre seus apartamentos é logo transposta, a total aproximação entre as duas personagens só esboça se dar por completa sob a íntima e solitária lógica da dor humana, na qual, em sua excruciante plenitude, só é possível permanecer sozinha(o). Quando a jovem esboça partilhar de seu sofrimento, a convalescente senhora necessita partir: Não existe calvário com lugar para dois.

Os últimos planos do filme são os do apartamento da falecida, vemos a brasileira sozinha no quarto de cama vazia e a sala sem seu gato: nem mesmo Hércules resistiu. Idos aqueles poucos próximos de si, restam à jovem a indiferença do espaço e um cilindro de oxigênio, condições típicas para todos nós, exilados.

Bruno Marra

Au Revoir está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Do íntimo e do adolescente

No primeiro, duas amigas de escolas diferentes. No segundo, um grupo de meninos em férias. Em idades parecidas (ao redor dos 13 anos), sexualidade, intimidade, rebeldia, rotina. A Arte de Andar Pelas Ruas de Brasília, de Rafaela Camelo, e Mari Pepa, de Samuel Kishi Leopo, trazem a força dos gestos genuínos da idade.

Os cenários, no primeiro, são as ruas de Brasília. As duas amigas se encontram, trocam cartas, esquematizam a compra do primeiro cigarro, bebem pela primeira vez. Percebe-se nos diálogos um trato realista, com expressões e soluções com as quais o espectador, mais velho, se identifica, e que relembra.

O detalhe proporciona força para a narrativa. Esmalte descascado, mochila caída para baixo da cintura, o aparelho dentário. As personagens encontram-se nesse estágio meio adulto, meio criança, de descompasso com o corpo.

Da conversa com a mãe a menina pede, a Deus, para nunca ser vista pelada. Uma confissão para a amiga. Um momento de carinho, de cumplicidade em que ela questiona, sutilmente, a própria sexualidade. O filme é explícito, mas delicado no tratamento dos momentos de experimentar, tentar, questionar a forma de mostrar-se ao mundo.

O universo dos meninos, no segundo filme, tem outros paradigmas. Eles formam uma banda de rock, ensaiam na garagem, mentem experiências sexuais das mais diversas e mais intensas. E são também cúmplices no espaço da rua.

Na casa do personagem central, outro tipo de relação se dá com a avó. No ambiente privado da casa, da cama desarrumada para a disputa cômica entre os gostos musicais, o menino começa a assumir o lugar de quem cuida. Assim, o espaço da rua, da exposição, do barulho, da ousadia, contrasta com o espaço privado, do cotidiano.

É na direção de atores e na direção de arte que esses dois filmes se endossam. São sinceros no trato do modo juvenil de dizer “tenho ciúme”, “ tenho raiva”, “eu gosto de você”, tanto na construção visual dos personagens como nos lugares que habitam e nas relações com os outros jovens.

Luiza Folegatti

A Arte de Andar Pelas Ruas de Brasília está na Mostra Brasil 8; Mari Pepa integra a Mostra Latino-Americana 5.