Vailamideus: risos e incertezas

vailamideus

por Beatriz Couto –

Uma senhora, em sua cadeira de rodas, olha fixamente para frente. Ao seu redor, o caos de uma festa familiar. Convocados por uma animada mulher ao microfone, filhos e netos se posicionam para fotos com a avó, em uma procissão infinita de sorrisos para a câmera. A situação é incômoda, e a narração da mulher é tão absurda que dá ao documentário ar de ficção. Vailamideus, de Ticiana Augusto Lima, é um filme muito simples, mas capaz de levar a reações diversas.

São apenas dois planos. O primeiro, com a sequência de famílias tirando fotos, se coloca no lugar da câmera fotográfica. O afastamento causado pela burocratização do processo é acentuado pela expressão neutra da avó. Enquanto as pessoas mudam ao seu redor, ela continua ali parada. Um corte mostra ao público o rosto da senhora, e suas reações se tornam visíveis. Enquanto a mulher ao microfone canta e conduz a festa, ela sorri e se emociona.

Grande parte do estranhamento do filme é causado pela narração. Ter um microfone em uma festa familiar denuncia seu tamanho sem mostrar mais do que uma parede na cena. A mulher, animada, convoca os parentes para as fotografias; um tio é provocado por ainda estar comendo, outro é citado por estar cuidando de uma menina com febre – é perceptível a descontração e intimidade do evento.

O público na sessão ri. Ri da mulher ao microfone, de desconforto com a situação e das peculiaridades da família, mas não é um filme de humor. Toda a situação ao redor da matriarca tem cara de despedida, de aproveitar essa chance por não saber se haverá outra, talvez aquela seja a última festa e a última foto. Há uma tristeza nas entrelinhas de tanta comemoração.

Ticiana, a diretora do filme, é uma das meninas na última família. Ela é a 57ª neta, filha de um dos doze filhos da avó. A senhora, Myrthes, tinha 94 anos no documentário e hoje tem 96. Saber um pouco mais sobre aquelas pessoas torna reais as figuras na tela. Festas, como a retratada, acontecem duas vezes por ano, no aniversário da avó e no dia das mães, e a diretora não sabe o que acontecerá quando a avó morrer. É impossível o espectador não se envolver, caso já tenha passado por situação semelhante.

Vailamideus não é um dos maiores filmes do festival, mas é um dos mais íntimos. Ticiana fez escolhas certeiras de montagem e com certeza irá marcar quem o assistir.

Vailamideus está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Django indígena

o homem que matou deus-ed

Na época de seu lançamento, o longa Django Livre de Quentin Tarantino, que transforma o período escravista dos Estados Unidos num western spaghetti, foi categoricamente criticado pelo também cineasta Spike Lee. “Tudo o que posso dizer é que o filme é desrepeitoso com meus ancestrais”, disse o cineasta engajado. Existem muitas similaridades entre o último filme do cultuado diretor e O Homem Que Matou Deus, do diretor francês Noé Vitoux. Semelhanças que não se limitam à temática das obras, já que o curta de Vitoux parece muito inspirado na estética tarantinesca.

A proposta do filme é extremamente interessante: utilizar um humor ácido e irônico para construir uma crítica política aos crimes cometidos contra a população indígena no país. Ou seja, fazer com índios o que o Django de Tarantino fez com os escravos negros e o que o Machete de Robert Rodriguez fez com os imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. O resultado atingido é, inevitavelmente, tão controverso quanto o das duas obras citadas.

Em formato de falso documentário, a produção acompanha o cotidiano do índio Wem Tom, o melhor caçador de homens brancos da região. Nesse ponto o curta se difere dos filmes já citados: o nosso protagonista não vê no ato da caça um exercício de vingança, pois ele, como qualquer caçador, caça por prazer. Não pretendo de forma alguma por em debate os pilares do politicamente correto e taxar esse humor como ofensivo a moral e aos bons costumes. Sou entusiasta desse tipo de abordagem, e acho que vários filmes tiveram um êxito estrondoso nesse setor, como é o caso de Borat, personagem estrelado por Sacha Baron Cohen, que incomodou muita gente lá por meados dos anos 2000.

Compreendo muito bem a intenção do diretor, que fica bem clara através de um dos monólogos do personagem, de nos mostrar o quão desumano são os homícidios de indígenas que acontecem sem qualquer razão por diversas áreas do país e, de um modo geral, terminam impunes, através de uma inversão de papéis para ressaltar o absurdo da situação.Ora, se o homem branco mata um indígena por prazer, por que o contrário seria tão abominável? E é aqui que nasce o meu desconforto. Nesse processo, acho que de certa forma o autor causa um efeito reverso e acaba por desumanizar um pouco o protagonista. Na tentativa – fundamental para esse tipo de filme de protesto – de chocar o espectador constantemente, o discurso as vezes acaba sendo um pouco brutal demais. Ainda não encontrei a necessidade de se ter uma cena em que a tribo faz churrasco de um bebê.

Além dessas questões, o diretor também peca por não saber que rumo seguir, já que o roteiro abrange um excesso de recursos narrativos, esforçando-se desesperadamente em ter um aspecto cult. Narrativa não-linear, fotografia que alterna entre preto e branco e colorida, trilha sonora cheia de batidas eletrônicas contrastando com o bucólico das imagens, tipografia estilizada em cores neônicas e, até mesmo, uma desnecessária metalinguagem: tem de tudo um pouco nos míseros 18 minutos de duração do curta. São tantos apelos estéticos que o assunto central acaba perdendo um pouco de sua força, em meio a esse carnaval de referências a cultura pop.

No entanto, alguns méritos precisam ser dados a produção franco-brasileira. A iniciativa de tirar o indígena do papel de coadjuvante, quase sempre vítima ou marginal – ponto que o próprio Wem Tom menciona em determinado trecho – e colocá-lo não só como protagonista mas também como um anti-herói, é um grande passo, ainda mais quando se leva em consideração que não faz muito tempo que o primeiro ator negro protagonizou uma novela e o primeiro beijo entre pessoas do mesmo sexo aconteceu em um canal aberto.

É importante lembrar do papel intrínseco as obras audiovisuais na tarefa de quebrar preconceitos, e o melhor jeito de fazer isso ainda é através do desmitificação de estereótipos. Em meio a tantas boas intenções, é nesse pequeno detalhe que o filme nos mostra seu argumento mais incisivo.

Henrique Rodrigues Marques

O Homem que Matou Deus está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Mãe, você viu meu tripé?

no interior da minha mae

A situação não nos é estranha: uma viagem de visita a parentes distantes. Onde muitos jovens veriam apenas dias tediosos e bochechas apertadas à exaustão, Lucas Sá encontra um material valioso para a produção de um curta-metragem. No Interior da Minha Mãe é, em termos gerais, um simples registro de uma viagem de família – porém, a narrativa é habilmente conduzida pela sagacidade e irreverência de seu diretor, tornando-se um relato familiar (com o perdão do trocadilho) a todos os espectadores.

É fácil se identificar com as situações e piadas internas da família de Lucas, como se fosse possível sentir seu embaraço quando, por exemplo, sua mãe usa chicletes mascados nos puxadores do armário. Os momentos em que as personagens interagem com a câmera – mais precisamente, com o câmera – são particularmente divertidos, por mostrarem uma completa descontração nesta relação, como se as tias de Lucas já estivessem acostumadas com o “estrelato”.

Neste aspecto, pode-se discutir a ideia de privacidade. No filme, Lucas de fato expõe bastante seus familiares, em alguns momentos um tanto constrangedores. Mas, com o decorrer da história, nota-se que esse tom é próprio do autor (presente inclusive no título), porém não particularmente ofensivo. Não é como se ele usasse suas tias como fantoches abobalhados – até porque, notamos uma sintonia entre ele e os demais, como se o bom humor estivesse no sangue. Talvez esteja!

As cenas que incluem fragmentos audiovisuais da região dão um toque mais sarcástico ao curta, como o pequeno rádio de pilha tocando músicas antigas e a TV exibindo programas esdrúxulos – o inspirador monólogo da apresentadora de um programa de jogos por telefone é uma das cenas mais engraçadas (“Eu não gosto de falar isso não, mas eu vou falar!”). Outro momento interessante é a sequência de uma festa típica em que o áudio original é substituído por uma música eletrônica, de balada.

Daí, ficam claras as duas poderosas armas de Lucas: a montagem e a linguagem. A primeira faz uma verdadeira transmutação com o material capturado, dando-lhe dinamismo e tornando-o ainda mais divertido. A segunda é, talvez, a mais importante, uma vez que atribui um sentido mais profundo do que uma mera risada compartilhada: com uma linguagem bem definida, No Interior da Minha Mãe nos convida reinterpretar o conceito de família – não só como uma instituição necessária, mas com a ternura e a naturalidade que cada uma delas apresenta em seu habitat natural.

Letícia Fudissaku

No Interior da Minha Mãe está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

O que fazer com essa tal liberdade?

o sangue de jesus tem dende

Dentre as sessões especiais do 24º Festival Internacional de Curtas, a Tomada Única foi provavelmente a que mais instigou o público, lotando a sala de exibição do MIS no último sábado à noite. Feita em parceria com o Festival Curta 8 de Curitiba, ela se constituiu da seguinte forma: oito artistas, cineastas e artistas plásticos, receberam o convite para filmar um curta de três minutos cada um em formato Super-8. Mas se a liberdade artística foi total, os participantes encontraram a limitação de não editar o vídeo em pós-produção. Ou seja, os cortes precisavam ser feitos na própria câmera e não existia a possibilidade de voltar um plano. Se a descrição do exercício parece complicada, os variados resultados obtidos pelo grupo fazem parecer um passeio no parque. Ou melhor, parque não. Num jardim das delícias de dar inveja a Bosch.

Iniciamos a deliciosa jornada com Lagoa Remix, um bem-humorado manifesto dirigido por Leonardo Mouramateus. O vídeo mistura imagens de banhistas que dançam, brincam e fazem graça para a câmera numa lagoa ocupada em Fortaleza, enquanto o áudio, no melhor estilo “carro da pamonha”, nos presenteia com um ácido remix, indo do funk ao eletrônico, mas sem antes esquecer de passar pelo apresentador Datena que indaga “Isso é manifestante? Isso ai é vandalismo”.

A crítica política e a ocupação do espaço urbano também foram temas de Amor e Outras Construções ou Uma Boca/Que Abarcasse/Tanto Cu, de Gustavo Vinagre, no qual três homens invadem prédios em construção para fazer sexo. Com ares de pornô terrorista e uma divertida direção de arte (blusão com estampa de personagens Disney, máscaras de morte), a obra protesta contra a construção desses projetos arquitetônicos comerciais e as consequências que causam no espaço urbano.

A cidade e o sexo também se encontram em Falos e Badalos, de Anita Rocha da Silveira, que registra a cômica fixação de uma garota pelos monumentos fálicos da cidade do Rio de Janeiro. O Sangue de Jesus tem Dendê, de Daniel Lisboa, brinca com a iconoclastia de símbolos religiosos, mas com muita elegância e sublime beleza. A serena movimentação, tanto da câmera quanto dos personagens, causam um efeito hipnotizante no espectador, uma curiosa sensação de paz.

Paz que Karen Black busca em seu Delete Deleite. Cansada dos excessos tecnológicos do cotidiano, a artista se revolta e troca seu pequeno quadrado de concreto por uma praia paradisíaca, onde finalmente encontra sua vingança num catártico ritual, onde a agressividade dos gestos contrastam com a leveza de sua nudez. Nesse reencontro com raízes primitivas, surge a liberdade.

E é essa a questão que cria um ponto de intersecção entre os oito curtas: o que fazemos da nossa liberdade? Como ressalta a diretora do festival, Zita Carvalhosa, a escolha pelo formato Super-8 transcende a simples nostalgia e o inegável charme estético: “nos anos 70 o Super-8 representava a liberdade de ter uma câmera na mão e fazer o que você quisesse. Hoje em dia todo mundo tem um celular para a fazer o que quiser”. E no atual contexto político do país, após a onda de manifestações que ocorreu neste ano, essa reflexão se torna ainda mais necessária, tanto em relação à utilização desses aparelhos eletrônicos quanto nas maneiras de se exercer o próprio ato de protesto.

Um momento de Lagoa Remix resume o que o projeto apresenta de melhor. “Essa prefeita não presta, eu que tô falando” diz a voz em off que, momentos depois, volta para declarar “esse mergulho é pra você, prefeita!”. Esses oito artistas, a exemplo da personagem citada, mergulham, festejam e brincam pra demonstrar o seu descontentamento. É crítico e reflexivo, mas também é bem humorado e prazeroso, sem nunca perder a fé no poder poético e provocador da imagem. O que acontece na tela é assim… um desbunde!

Henrique Rodrigues Marques