O menino, o velho e a árvore: um faroeste moderno

arapuca

“Sobre uma árvore” como descreve a sinopse. E de fato é mesmo, mas não apenas sobre uma árvore. Arapuca escrito e dirigido por Hélio Vilella é um daqueles filmes que você quer ver sempre e pra sempre sem cansar de assistir. O filme é marcado por planos abertos e algumas sequências no maior estilo faroeste, poucas falas e personagens carismáticos. Além de uma fotografia sensacional.

Começa com uma sequência belíssima de cenas onde um garoto come uma fruta, enterra a semente e urina em cima dela; há uma passagem rápida de tempo, a árvore já está grande, cheia de novos frutos, e voltamos ao jato de urina, mas agora o menino já é um senhor. A sequência anuncia uma forte relação dessa personagem com a árvore, eles cresceram juntos, apenas os dois. Só essa sequência já é digna de subirem os créditos e receber aplausos, mas o filme consegue nos cativar ainda mais com a chegada do menino que perde sua pipa perto da árvore e resolve subir nela pra pegar uma fruta. O velho, muito incomodado com a presença de outra pessoa perto de sua árvore, expulsa o menino que vai embora, mas volta.

A partir dai o velho vai tentando afastar o menino da árvore, como se fosse um pássaro que estivesse lá para destruir o que ele cuidou todos esses anos. O velho inclusive coloca um espantalho a fim de afugentar o garoto que, com a inocência de criança, leva tudo aquilo como uma brincadeira – ao mesmo tempo que quer irritar, quer se aproximar do velho.

O primeiro confronto entre os dois remete aos clássicos westerns americanos, o plano aberto com a sombra dos dois em meio a paisagem, um de frente para o outro mantendo uma certa distancia, passando para um plano aproximado de cada um e finalmente a troca de olhares à Clint Eastwood.

E assim um vai criando armadilhas para o outro. O ator mirim, muito expressivo, consegue fazer rir com as respostas que dá ao velho, às vezes passando a impressão de ser mais maduro que o próprio senhor, sabendo reconhecer quando ele tem que pedir desculpas.

No desfecho da história o velho acaba como começou – sozinho –, com a sensação de ter vencido o menino na brincadeira, só que dessa vez sem sua companheira a árvore.

Curta mais maduro em relação ao curta anterior de Hélio, A Mula Teimosa e o Controle Remoto, com grande potencial pra desenvolver um belo longa investindo nessa temática, leve, minimalista e delicada. Fica de minha parte um gostinho de quero mais.

Danielly Ferreira

Arapuca está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Lentes de adulto, olhos de criança

olho magico

É muito difícil tecer um parecer de um curta ou de qualquer outro trabalho voltado para o público infantil, porque parto do princípio, extremamente óbvio, de que conteúdo infantil foi feito para as crianças e tanto eu como quem produz conteúdo para crianças somos adultos. Crianças enxergam o mundo de maneira diferente. Não apenas pela altura, que já lhes garantem um ponto de vista deslocado da maioria dos adultos, como pela curiosidade instintiva e investigativa de querer descobrir o mundo e dotá-lo de significados.

Muitas vezes aquilo que um realizador acha que estará passando em um filme infantil não chegará nem perto da interpretação que este ganhará ao ser assistido pelo seu público alvo. Pode ser por isto que o curta de André Sampaio, Olho mágico, desperte a atenção: por ressaltar essa diferença de desconstrução/construção de um olhar.

Um olho mágico, objeto geralmente de alcance apenas dos adultos, desperta curiosidade e interesse dos mais novos. Através dele, podemos ver o que ou quem está do outro lado da porta. Ou, mais do que isto, como nos mostra o curta. Longe do seu lugar usual, nas mãos das crianças – e constantemente na visão do espectador que embarca junto na brincadeira – ele se torna um objeto capaz de instigar a imaginação, deformar o que está presente e até mesmo mostrar outros lugares que nem ao menos estão fisicamente por perto.

Somos transportados pela música, pelas imagens deturpadas e pelas brincadeiras constantes, que nem sempre nos permitem criar um significado concreto para o que foi visto. Talvez, apenas aquelas crianças brincando o possam fazer. E, provavelmente, muitas outras crianças serão instigadas a brincar e dar vida de outra forma à outros objetos, depois de Olho mágico.

Esta ideia da desconstrução aparece também em outro curta apresentado na mesma sessão, do diretor, ilustrador e animador Graciliano Camargo, One Man. Aqui, temos uma aposta no simples e pontual. Um curta-metragem que faz jus ao cronômetro, cria uma história de fácil interação e chamativa para o público infantil. Gosto de lembrar que esta é uma tarefa às vezes esquecida pelos realizadores, pensar naquilo que as crianças, seu público alvo, entendam e se reconheçam de certa forma no que veem. E mecanismos primários funcionam muito bem com o público infantil.

Através do uso da construção mais clássica e clichê possível, um herói que tenta salvar a mocinha presa nos trilhos de um trem que se aproxima (à melhor maneira montagem paralela de Griffith), os espectadores são entretidos pelas “super ações” do super herói galã para parar o trem. Quando a missão se completa, a cena enfim é aberta e vemos um plano geral revelador: na verdade, existiam três linhas de trem e o herói parou o trem errado. Pobre da mocinha. Risos de todo o público.

Uma história aparentemente simples que desperta o riso por este mecanismo desconstrutor do esperado. Quem, principalmente as crianças, iria esperar uma animação (infantil) que deixa a mocinha do filme ser atropelada no final? O uso da quebra e do inesperado construído em meios de identificação e captura da atenção do espectador, mais o uso de imagens e músicas que dispensam qualquer texto e enredos simples e bem construídos, garantem as risadas do público infantil.

De maneira quase oposta a essa, no sentido de imagens que guiam e conduzem as crianças de maneira limpa, é exibido na mesma sessão Apocalipse de verão, de Carolina Durão.

Em pleno verão carioca, o menino Daniel se depara e fantasia com as algas surgidas pela poluição na praia frequentada por ele com a avó. Daniel escuta constantemente informações da TV e do rádio, e até pesquisa mais no seu Ipad, sobre a poluição e possíveis destruições do planeta Terra.

A grande questão aqui é a mistura entre real e imaginário. Ou, mais do que isso, o imaginário que é construído através de dados e notícias advindas do mundo real. Se pararmos para pensar, qual a quantidade de informação que as crianças (e não apenas elas) são bombardeadas voluntaria ou involuntariamente nos dias de hoje? E, destas, quantas são explicadas ou submetidas a qualquer tipo de diálogo e contextualização?

Nesse sentido, apocalipse não parece uma palavra forte ou descabida para o imaginário de um garoto de oito anos e suas interpretações de mundo…

Dessa maneira, o que conta e encanta no curta são as belas e encantadoras imagens da imaginação de Daniel (vale aqui um adendo para a ótima fotografia e excelente arte), principalmente as debaixo da água com luzes negra e neon. Mais uma vez, temos a tentativa de lentes controladas por adultos de captar o olhar e a mente de uma criança. Mundo adulto versus mundo infantil, onde tudo pode acontecer.

Raquel Arriola

Olho Mágico, One Man e Apocalipse de Verão estão na Mostra Infantil 1. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013

Reflexo do medo

O Duplo, de Juliana Rojas, é daqueles filmes assustadores por despertarem um medo de um tipo de maldade diferente. Maldade que encontrei em filmes de Roman Polanski, como O Inquilino (1976), apesar de o curta da diretora paulista não estabelecer essa relação. A maldade presente em O Duplo é uma maldade de outro tipo, aquela que pode estar adormecida dentro de qualquer um, até mesmo da pessoa de quem você menos espera.

É muito simbólico que uma professora do primário de um colégio católico seja afetada por essa influência maligna. Contribui ainda mais para o clima assustador e terrível do filme, completado também pelas crianças (crianças conseguem ser terrivelmente assustadoras). O som do colégio, das cantorias infantis, aquele som permanente de crianças e seus barulhos de meninice.

Esses barulhos do ambiente colegial conseguem ser tão perturbadores quanto o som do elástico batendo na pasta da professora de português, freneticamente. O ambiente construído vai se tornando gradativamente assustador e insuportável.

O Duplo se desenvolve sem mistérios narrativos. As alucinações, o sexo arisco, a transformação da professora angelical em espectro de maldade, tudo leva à mudança drástica da professora. O que é mais aterrorizante neste curta é que essa transformação gradual ocorre sem retorno.

Parece que desde o momento em que viu seu duplo, a professora foi capturada, apenas cedendo aos poucos àquela influência inevitável. A escolha de Sabrina Greve para protagonista não poderia ser melhor; existe algo de paralisante em sua face, olhos profundos que passam um sentimento de angústia e medo.

Não é necessário falar do talento de Juliana Rojas; além de notável, já é bem reconhecido. A direção segura, o ritmo de encadeamento dos planos, a escolha de enquadramentos perfeitos, a economia seguindo a receita “menos é mais”. Nas duas sessões em que assisti a O Duplo, a plateia ovacionou o curta-metragem. A direção madura e consciente de Juliana Rojas produziu um filme de “gênero”, sem abrir mão de escolhas estéticas e sem facilitar para ninguém.

A narrativa sedimentada nos detalhes, as interpretações dos atores, o desenho de som, o ritmo da montagem, tudo funciona organicamente, sem exageros nem apelações. A maldade presente em O Duplo assusta porque é parte da personagem, ainda que seu duplo, seu reflexo sombrio, mas parte dela. Como se existisse em cada um de nós essa faceta reprimida.

Renato Batata

O Duplo integra a Mostra Brasil 8 e a Semana da Crítica. Clique aqui para ver a programação do filme