HERANÇA ANCESTRALCipó Tupi, de Léo Mendez e Célia Tupinambá

por Victor Adriano Ramos

“Cê ouviu falar da Patioba?”. Essa é a pergunta que movimenta Cipó Tupi, nos fazendo entrar nesse universo que parece estar tão distante de uma realidade urbana, mas que se mostra muito mais familiar do que imaginávamos. O Patioba a que a pergunta se refere é uma espécie de palmeira de onde é possível extrair o cipó do título. As personagens que conduzem essa narrativa nos apresentam a raiz exposta, mostrando a forma correta de remoção do cipó, que podemos visualizar ocupando todo o campo da imagem.

O plano aberto nos ajuda a ter dimensão da imensidão das terras, os cipós parecem ganhar vida e se entranham um no outro, mas há um alerta: ao remover as raízes, elas acabam por matar a “mãe”. É preciso cuidado, existe uma sabedoria para a remoção sem causar desgaste à natureza. Esse conhecimento é passado de geração para geração. Mas na atual circunstância, com o avanço do desmatamento e a não demarcação das terras indígenas, aqueles que lutam para preservar a tradição e a memória de seu povo se veem minados. A mensagem é clara: é preciso demarcação já, para a preservação não só do espaço ocupado, mas das tradições milenares.

A herança ancestral não é manifestada apenas nos cuidados com a natureza. O curta explora a produção artesanal que conduz o dia-a-dia daquela população. São itens como bassouras e cestos produzidos a partir do cipó extraído sabiamente por essas famílias. A presença diária desses objetos está intrinsicamente ligada à memória daqueles que se beneficiam da prática. A personagem principal compartilha sua história de fuga: ainda jovem, ela pensava em abandonar a família, e para isso usaria um cesto produzido por ela mesma, no qual levaria os seus pertences. Ao rememorar esse fato, ela sorri, assim como todos os rostos que o olhar da câmera captura, revelando não só a familiaridade com a prática, mas o bem-estar provocado pelo hábito, herdado dos parentes distantes.

Naturalmente, algumas coisas eventualmente deixam de existir ou não são mais produzidas, e as habilidades do trançado do cipó encontram novas utilidades. Esse processo é natural, mas corre o risco de ser aniquilado pelas invasões, pelo desmatamento. A entrada de outros grupos revela uma outra lógica de se relacionar com a herança dos antepassados. “Nada se acaba, tudo serve pra gente” é a lógica que prevalece dentro da comunidade; “a pessoa não nasce sabendo, tem que aprender”. O que é ensinado dentro da aldeia é justamente a preservação não só da natureza, mas de toda a cultura, que se vê ameaçada pela falta de uma política que assegure os direitos das populações indígenas.

A partir da intervenção estética, a tela se enche dos vários termos que designam os objetos feitos a partir do cipó. Estes não são apenas itens; eles mantêm a função de materializar uma herança ancestral. Cipó Tupi funciona como um documento político, um registro histórico feito através da imagem. A enchente de palavras que domina a tela para pontuar os diferentes produtos e as imagens dos vários cestos e bassouras nos remete às histórias de um povo que tem a sua voz e sua imagem constantemente apagadas. Num grito em consonância com a imagem, exigimos: Demarcação já!

 

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