A publicidade venceu: sobre o Cinema em Curso

manchas de sangue no porcelanato

por Rafael Dornellas –

Serge Daney, crítico da Cahiers du cinéma, já na década de 1980 atentava seus leitores e escrevia sobre como a publicidade e suas práticas ganhavam força e se inseriam nos filmes de forma já naturalizada pelos novos cineastas. “A vizinhança já turva entre o cinema e publicidade já não era mais razão de ser”. Gerações de diretores se postavam inocentemente assimilados pela legitimação cultural e estética da publicidade. Daney alertava para como o cinema já não era mais uma “aventura do olhar”. Era claro para o crítico francês que entrávamos em uma fase em que a imagem era impressa através de inúmeros arquivos e spots televisivos de um mundo já visto e codificado: que não podia, ou não conseguia mais, ser redescoberto. As circunstâncias eram observadas de um patamar superior, de uma concepção pré-catalogada de centenas de anúncios destinados ao lucro e as imagens não mais resultavam de um exercício de olhar – de descobertas –, mas de conceitos pré-fabricados resultando em filmes que mais pareciam, a princípio, vender algum produto.

Destas primeiras análises às conjunturas contemporâneas entre publicidade e cinema pode-se perceber filmes produzidos a partir de práticas publicitárias de criação: apuro técnico impecável, um juízo específico e duvidoso daquilo que é considerado belo, uma “grande ideia” balizadora por trás de uma obra, abstrações frágeis e fuga do conflito para o etéreo “belo” porém vazio. O que se vê, portanto, são filmes carentes de uma história concreta, de um olhar frontal para o conflito e de um receio de se aproximar de suas personagens – de uma não-tomada de posição e uma recusa inconsciente de olhar para o mundo.

Ter as sessões de filmes universitários como um panorama é, primeiramente, a percepção de algo sintomático também presente no cinema brasileiro em geral – uma possível consequência do tecnicismo contemporâneo que procura, cada vez mais, formar técnicos capacitados para o mercado de trabalho. Procuro através deste texto levantar algumas questões a partir de filmes presentes nas sessões Cinema em curso – e um filme da Mostra Brasil 9 – e suas estratégias de linguagem, sob a ótica da publicidade, de práticas provenientes da comunicação: vídeos institucionais e internet, e de caminhos tomados pelo cinema, já a algum tempo, no ambiente contemporâneo.

A busca pelo belo, informativo e ágil

Look-fashion film, Mulheres desenhadas e Janelas imprimem a estética publicitária em suas belas imagens e afastam ainda mais o cinema de sua constituição. Look-fashion film carrega em seus planos a recusa pela progressão narrativa. Assume o sensorial e tece seus quadros buscando a sucessão de símbolos e a perfeição – publicitária – da imagem, que mais parece comercializar um produto do que desenvolver uma sensação.

Mulheres desenhadas contenta-se com a informação, como vídeos institucionais realizados dentro de empresas. Não há busca pela progressão em seus temas. Sua estética informativa e regressiva é freada na superfície e segue, até o final, na mesma baixa intensidade. Em Janelas, a internet, o vídeo sob a ótica do YouTube, o formato ágil, narração sagaz e bits que se distanciam muito do cômico e do experimental que o curta parece flertar. Vemos enfim a imposição da linguagem da internet, de vídeos publicitários e institucionais, sobre a lacuna dramatúrgica.

Vazio abstrato

A abstração como válvula de escape. As não-tramas etéreas que parecem possuir em sua concepção uma “grande ideia presente por trás do filme”, mas que carecem de conflitos reais e concretos, se fazem sentir em O asfalto e Debaixo das cerejeiras. Nesses filmes há a sugestão, o simbolismo, a metáfora, aquilo que não se vê mas deveria se sentir: a busca pela reflexão. Personagens melancólicos – também uma tendência – perdidos meio à contemporaneidade opressiva e turva. E uma câmera que olha seus objetos de modo ainda mais cauteloso e sub-reptício. O resultado é o vazio. Uma carência de concretude que catalise as abstrações e atinja o sentimento desejado no espectador. Não há materialidade o suficiente para a apreensão do público – sem algum amparo material, as tramas já nebulosas se dissolvem em um desguarnecido enigma impossível de se decifrar.

Debaixo das cerejeiras dedica sua quase totalidade para criar sua atmosfera, seu apreço pelo desconhecido no corpo do jovem protagonista, pelo mistério que a câmera parece querer descobrir junto dele. Pequenas pistas são lançadas apenas para aumentar a expectativa. Expectativa esta que se abandona antes mesmo de ser quebrada e revelado o cadáver no clímax. Temos uma sucessão de bem fotografados exercícios de sensações sem posicionamento.

O asfalto explora um acontecimento trágico e o suspense por sua repetição. A tentativa de hipertrofia do prenuncio do desastre, do momento do acidente, de composição da dúvida daquela personagem enigmática desfalecida, da progressão da descoberta do espectador para finalmente em seu final a revelação impactante. Mas mais uma vez, a assepsia da imagem frígida excessivamente bem tratada, o protagonista vazio e perdido meio à metrópole. A carência do choque, da tomada de posição e da exploração das intensidades nas interações. Não há conflito, não há suspense, não há sentimento.

A abjeção do YouTube

Vídeos filmados e postados na internet de atrocidades e aberrações, que dia-a-dia são manchetes e temas de programas de TV e agora estão nas telas de celulares, são apropriados e expostos pelo filme Este ambiente está sendo filmado?, curta universitário presente na Mostra Brasil 9.

A narração o carrega com tom sério e o coloca naquele patamar que observa o mundo de cima, pregando sobre as mazelas e os pensamentos humanos, distanciado, intensificando seu peso já excessivo. O exercício do olhar se revela uma seleção da violência cotidiana presente dentro de um grande catálogo de imagens que é a internet e uma realização de escolhas dentro dos próprios vídeos: congelamento da imagem, aproximação dos rostos, divisão de tela. O exercício de descoberta de mundo inexiste. Ao contrário, dá lugar a uma perversão fílmica cegada em meio a procedimentos de agressão a seu espectador.

Apesar da diferença de formato, Este ambiente está sendo filmado? remete a filmes contemporâneos como Relatos selvagens e diretores como Lars von Trier. Ou seja, um cinema perverso, sádico, que retrata a violência do ser humano acobertado por sua estética autoral, por um cinismo amparador da crueldade construída. Novamente: a carência do olhar, a observação vil do ser humano, de cima, confirmando a deformidade de um mundo já descoberto – a construção abjeta de um filme que se afunda em suas próprias imagens, banalizando-as ainda mais e tornando-se apenas mais uma janela sensacionalista além da internet e da TV.

Bem longe da alteridade

Por fim Mancha de sangue no porcelanato, um curta metragem resultado de uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo de tentativa de discussão, contextualização e problematização da classe média/alta e seu papel social (O som ao redor, Casa grande e Brasil S/A, por exemplo). Partindo de um anseio de aprofundamento crítico sobre uma classe e exposição da mesma em observações de costumes, são desenvolvidas muitas vezes obras límpidas, higienizadas, em que a visão autoral do diretor suprime o objetivo primeiro. Terminamos pela anti-dialética. Pela exposição de excessos e caricaturas que prega para convertidos em salas de cinema constituintes, em sua grande parte, de uma classe média pronta para rir de si mesma.

Mancha de sangue no porcelanato explora o que já havia sido cena do filme de Kleber Mendonça. Uma assembleia de condomínio. Desta vez um condomínio residencial de alto padrão, fechado, cercado por muros. Não há um caminho a ser tomado pela discussão. Nem uma reflexão acerca das origens de tais comportamentos mesquinhos. Há, apenas, o riso fácil, o esgarçamento do que de pior pode haver nesse convívio social e a exposição de tais caricaturas para o público. Distanciamento irônico nefando: consequência também da publicidade – limpidez e brilho frente a uma ideia pré concebida de mundo. Higienização da linguagem. Não há contradição, alteridade e uma possibilidade de problematização de valores. Há somente o olhar debochado e cínico sobre um universo matematicamente construído para criticarmos suas interações com um riso no canto da boca.

Ausência de obstinação

Concluindo, é importante resgatar o texto de Luiz Carlos Oliveira Jr, publicado na revista Contracampo em 2008 com o título de A publicidade venceu, em que ele não somente retomava Daney, mas alertava que além da diluição perversa da estética publicitária no cinema, a crítica – e último refúgio de resistência a tal prática – parecia haver também perdido a capacidade de percepção: “A publicidade e suas práticas mais hediondas se naturalizaram no cinema (brasileiro, mas não só). Nessa visão de cinema, o ‘criar’ não é mais identificado a um trabalho dinâmico com a matéria; é um retrocesso simbólico, onde a ideia passeia livre, leve e solta – a ideia sobrevive à perda de vínculo com o pensamento e com o olhar.”

A crítica em Daney, assim como em Oliveira Jr, é diagnóstico de práticas naturalizadas dentro do cinema, mas que se distanciam dele próprio, e, se não são novidades no contexto contemporâneo – pelo contrário, estão presentes há algumas décadas no meio – se desenvolvem, progressivamente, despercebidas e perniciosas, tomando de assalto aqueles que seriam os últimos redutos de combate a elas.

Brasil, o país das mulheres que são… mulheres!

no devagar depressa dos tempos

por Mariana Moura –

O curta-metragem No devagar depressa dos tempos nos mostra uma visão sensível, contrastada e colorida da cidade de Guaribas, no Piauí, cidade-símbolo do lançamento do programa Fome Zero. Estima-se que lá cerca de 85% da população da cidade receba o benefício Bolsa Família, citado no filme.

E pelas ruas de terra da cidade sabemos que há uma mulher e uma câmera. Na frente desta vemos outras mulheres, olhando pra nós, meros espectadores, sentados no conforto de uma poltrona e privilegiando uma sessão de cinema. Há miséria, descaso e muita, mas muita esperança na vida. É dessa esperança que o filme trata.

Conhecemos as mulheres que são mulheres, simples e complexo, não?! “O que é ser mulher?”, a voz feminina pergunta, e é nesse momento que eu me sinto no calor de Guaribas, me vejo sentada naquela cadeira, ao lado dessas mulheres e tento, em vão, responder a essa pergunta, que é no mínimo ousada para aquela realidade.

Aquele rosto, maltratado pela vida e com um filho no colo, nos responde sorrindo e depois chorando, porque ser mulher é isso, um exercício diário de resistência e de persistência.

Ser mulher é achar que tem que aturar o marido bêbado a estuprando nas noites; não ter como alimentar seu filho, que quer um biscoito de R$ 2; aceitar calada todos os insultos que a família lança em sua mente, todos os dias; aprender que outra mulher não é irmã, é rival; aceitar calada ganhar 30% a menos que um homem que ocupa o mesmo cargo; não poder andar na rua de roupa curta, porque ela mesma pode provocar um estupro. É isso e tantas outras violências que as mulheres sofrem constantemente e que muitas delas aceitam.

Guaribas é São Paulo, Sorocaba, Mauá, Franco da Rocha, Jundiaí, Belo Horizonte, Mairiporã, São José dos Campos, Itajubá, Penápolis, Piracicaba… Guaribas é o Brasil, com um zoom enorme em todas as suas injustiças.

Com a câmera parada nas mulheres ou em movimento, seguindo o “Chefe”, eu me movimento por essa realidade, cruel como muitas, mas que é retratada com uma belíssima fotografia, um contraste que dói dentro da gente, um realce nos rostos, dos objetos da casa, das paredes rachadas e cada detalhe da vida daquelas pessoas. Em alguns momentos, enquanto as mulheres narram, vemos close de algumas imagens do cotidiano das mulheres, algumas cenas compostas por fotografias das pessoas e seus cotidianos, e também planos abertos da natureza de Guaribas, enfatizando a seca do lugar.

Também conheço as crianças Guaribenses, em especial, as meninas, que são pobres, mas falam de seus sonhos e que por enquanto desconstroem todo o machismo que há por trás das falas de suas mães. Uma quer ser doutora, cortar bucho, a outra quer ser e elas também querem ser mulheres, independentes e apropriadas, donas de suas próprias vidas. Parece que aquela cruel realidade já ensinou que se não estudarem, continuarão nesse legado da miséria.

Que venham mais trabalhos tão significativos como esse, que vem para ressignificar realidades, desconstruir preconceitos e fazer com que vejamos outras realidades e saiba que ainda estamos muito longe da igualdade nesse país.

No Devagar Depressa dos Tempos está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

O Teto Sobre Nós: a desocupação não terá lugar

o teto sobre nos

por Lucas Navarro –

A história do cinema revela a singular posição que seu meio ocupa no trabalho de interação entre o romanesco e o testemunho no ato da narração. De Robert Flaherty a Pedro Costa, a arte de transmitir a experiência dentro das garrafas que a História lança ao mar a fim de, no descarte, encontrar um pescador-espectador que lhe restitua vida implica, na maior parte dos casos, em partilha de um mesmo espaço com o próprio cineasta que agencia o contingente em discurso. Pois é justamente essa implicação de estar “sob um mesmo teto” que tenciona a objetividade implícita ao termo – na acepção radical do testemunho, testes, que deriva tristis, ou seja, aquele que assiste na condição de terceiro que pode descrever os fatos com isenção, isto é, como espectador.

Antes de tudo, o espaço e seus moradores. Há uma evidente opção em encerrar o filme dentro do prédio ocupado em oposição a uma diluição da perspectiva que caracterize a sensação de totalidade da experiência. Antecâmara, o quarto, onde se concentra ainda mais essa perspectiva mínima, é palco do encontro entre duas figuras antagônicas: ela aguarda sob uma goteira, armando-se quixotescamente contra o curso das coisas; ele seduz à fuga desse mesmo estado de coisas. Curiosa estrangeiridade de uma terceira figura no espaço, com o qual não parece estabelecer qualquer vínculo evidente. As aparências de um desenho convertem-se em aparições constantes, até vermos a mulher o matar num gesto pouco naturalista, seguida pelas paredes sangrando. Não faz muito sentido falar, aqui, em personagem uma vez que não há paisagem psicológica que os sustentem através de uma história pregressa, mas em corpos com os quais a câmera estabelece uma relação de posse sem tocar, filiação sensível da percepção que imprime um reconhecimento afetivo e corrosivo sobre nossas retinas.

Nesse sentido, O teto sobre nós, de Bruno Carboni, nos serve de caso exemplar não só pelo envolvimento que ele engendra com o seu campo, recusando um estatuto de imagens legitimadas porque produzidas sob uma jurisdição exterior, mas, sobretudo, pelo trabalho de encenação que alça os intérpretes a um cadafalso de queda trágica cujo interior, de moldura que beira o teatral, desnaturaliza o evento e o inscreve num jogo simbólico externo ao circuito de seu espaço e tempo. A voz de Cassandra a nos alerta logo na primeira cena – que começa e termina com uma mulher que vê (plano recorrente no filme): a decisão judicial, outorgada pelo fora de campo (Estado ou Olimpo?) insensível à situação que levará a tomada dessa labiríntica masmorra traçada à ruína não deixa dúvidas: a guerra de Tróia é aqui e a qualquer hora.

Essa recusa à abertura e autenticidade da observação privilegiando a presença da clausura do olhar, próprio da tragédia, antes de invalidar o testemunho, lhe confere a fragilidade de um evento traumático e sua precariedade de restituição. Também o “fantasma” tentar restituir uma memória com seu pandeiro e canto, que caracterizam o dispositivo do poeta clássico, responsável por transmitir os feitos de seu povo, com o qual ele estabelece uma relação de distanciamento no pertencimento: alegoria do cineasta dentro do filme.

Que certos valores do poeta Homero se projetem sob uma Tróia de poetas morto hoje prescrevem uma série de questões, como a romantização do representado. O travestir-se é o melhor exemplo desse romantismo. Não se trata de idealismo travestido com aura de fatualidade se, com conhecimento de causa e sem inibições criativas, mantem-se uma solidariedade com o representado, em vez de fazer da própria falta sua virtude, como sempre somos tentados a fazer. A saída (se é que se pode usar esse termo) é forçar a dialética até que os extremos se toquem.

O Teto Sobre Nós está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Action Painting: a transa de Pollock

action painting

Raphael B. Gomes –

Um filme que não seria incomum encontrar em um museu, dentro de uma exposição, está na grande tela de cinema. Fato que não é digno de tanto alarde, já que em um festival de curtas metragens tem-se espaço para todo tipo de experimentação. Sem juízo de valores ou busca de significados, Action Painting Nº1/Nº2 traz um interesse digno de ser analisado, ou melhor, a reação causada por sua exibição traz um interesse digno de ser analisado.

Em uma sessão em que já estava acordado, entre os espectadores, o aplauso como forma de reverência para cada fim de obra. Por que um filme como este não merece essa reverência? O que o diferencia tanto para que aquela microssociedade tirasse um valor de igualdade dele?
O curta aborda as artes plásticas de uma maneira explicitamente sutil. Explícito na forma, já que tem corpos nus e sexo, isso choca (nem tanto assim). Sútil no conteúdo, pois, aparentemente, traz uma forte influência do expressionismo abstrato.

Esqueçamos o nome, que remete diretamente a uma obra de arte. Olhando agora apenas para o produto audiovisual, o que sobra? Poucos minutos, único enquadramento, ausência de áudio, uma sequência de cortes, sexo entre um casal heterossexual – com toques de BDSM. À grosso modo é isso, mas não é só isso. O que muita obra de arte tem que este trabalho também tem é o fato de poder prender o espectador, que se deixa ser prendido. É uma espécie de troca, que tem de ser feita para poder dar certo, para conseguir que o filme chegue a quem assista – e consiga assim contemplar a projeção com seu devido valor à obra.

Reiterando, um ponto importante é: curta metragem explora um universo que, a princípio, é muito mais livre que o longa, uma série ou uma novela. Pensando no campo da experimentação. Ao entrar em uma sala de cinema de rua, com uma programação de curtas, dentro de um festival (tem coisa mais alternativa que isso? Provável) espera-se ao menos, mente aberta. Esperar apenas o velho feijão com arroz é uma problemática que poderia estar longe do universo do cinema. Ao passar pela cortina preta (no caso do CineSesc) seria mais interessante deixar do lado de fora o pensamento “o que espero ver” e manter aberta a oportunidade de desfrutar de uma experiência audiovisual, tendo ela um enredo ou não.

Action Painting Nº1 / Nº2 está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

A questão do roteiro nos curtas brasileiros

feliz aniversario-ed

por Adriana Gaeta –

Acompanhei com muito interesse as mostras Brasil, Latinos e Panorama Paulista. E o fato é que neste apanhado de curtas que assisti, o cinema brasileiro está em atraso em pelo menos um aspecto: o do roteiro. Sim, nós brazucas somos extremamente criativos, inovadores, temos um ritmo de narrativa e de montagem que faz com que nossos filmes (em geral) sejam gostosos de assistir. Sim, temos uma gama de temas abordados absurda, personagens reais (no caso dos documentários) interessantíssimos, nosso país tem histórias incríveis para contar. Mas como diz Nelson Rodrigues em sua famosa frase “teatro não é bombom com cereja” está faltando algo mais também em nosso cinema.

Minha impressão é que os filmes estão aí para agradar, são de fácil assimilação. Está faltando roteirista. Roteirista que acredite não na grande ideia, mas em ir mais fundo nos temas. Roteirista que acredite na inteligência do espectador. Roteirista que me convide para dançar, mas não conduza a ação da dama. Por outro lado, os latinos veem com uma força e um grau de maturidade na abordagem das personagens impressionante. Os hermanos tem técnica cinematográfica, mas também tem uma narrativa madura, densa, complexa. Eles fogem do maniqueísmo que é tão caro a nós brasileiros e em filmes como Bezerra, Feliz aniversário e O passado partido as personagens são complexas, contraditórias e por isso mesmo extremamente vivas.

Verdade que essa escolha pelo paradoxal faz de mim uma espectadora menos “emocional”. Não torço pelo final feliz. Aliás, algo me diz dentro da sala de cinema, que não haverá final e muito menos feliz. E essa libertação me aproxima de maneira muito diferente dos filmes latinos. A construção da personagem é mais ampla e por isso, elas não ficam restritas à situações simplistas. Não há o som de berimbau para ilustrar um documentário sobre a situação dos negros (USP 7%) ou a valorização passional da personagem feminina (Ciclo 7X1). O que quero dizer é que a abordagem da personagem não é única nem reta.

O curta O rapaz se masturba com raiva e ousadia é um exemplo disso. Filme sobre um bailarino que faz programas para sobreviver, não há na construção do filme trilhas, enquadramentos ou qualquer outro catalizador de minha emoção. Jonathan não é bom, nem mau, nem o que ele faz é certo ou errado. É a luta pela sobrevivência e ponto. Sem indução do espectador. O que posso concluir é isso: o que falta no cinema brasileiro é mais maturidade e menos mimimi.

Retrato de Carmen D.: jogar para a câmera

retrato de carmen d-ed

por Valéria Tedesco –

O curta-metragem carioca que encerrou a sessão Mostra Brasil 5, na quarta-feira úmida do festival, foi claramente o auge da noite. Retrato de Carmem D., da diretora Isabel Joffily, se destaca pela intensidade de emoções e angústia que transmite através de seus personagens.

Tão complexo quanto a relação de mãe e filha que acompanhamos durante a narrativa seria tentar escrever sobre esse filme de maneira linear, na tentativa de criar argumentos que atingissem seu ápice no clímax da narrativa. O mundo em que a psiquiatra Carmem Dometto e sua filha Marcela vivem é, e aparenta sempre ter sido, marcado por picos e momentos de sossego que pouco fariam sentido em uma única linha temporal.

Vou começar pela piscina. O plano mostra uma mulher mexendo com as plantas cobertas de musgo que estão onde um dia foi (como nos narra a personagem) uma piscina limpa e em constante uso. Desde esse primeiro momento somos introduzidos a uma memória de infância cortada, modificada. Marcela se lembra rapidamente dos tempos em que a piscina ainda era utilizada, mas o assunto logo segue para o relacionamento difícil com a mãe.

Somos apresentados ao olhar de Carmem, e depois a ela. Sua primeira fala aborda os obituários como um de seus passatempos diários. A senhora, que passa de seus 70 anos, afirma que todos os dias olha o jornal para certificar-se de que está viva, e também para ver se algum de seus inimigos já morreu. Deseja, com calma e certeza, uma morte dolorida a todos eles, e que se lembrem dela no final, se possível.

Esse primeiro momento de Carmem é um dos mais fortes do filme, tanto narrativamente como com o reflexo do público. Os risos e descontração cessam de uma só vez quando vemos uma mulher de aparência frágil dizer aquelas palavras duras e frias. A partir desse momento, todo o filme será pautado na depressão e no cotidiano de mãe e filha, e as fortes consequências de um ato no passado.

A psiquiatra que agora atende seus pacientes na sala de sua casa, fora acusada pelo suicídio de um de seus pacientes, há década atrás. Nesse momento, cria-se a relação de sentido para a piscina vazia, o relacionamento distante e complexo que se criou entre as duas, o telefone que toca sem que Carmem se preocupe em atender.

E assim cria-se o ambiente de difícil convivência entre essas duas mulheres, com mágoas de infância, com cicatrizes de vida, com pequenos detalhes na casa que denomina o universo daquela senhora. Mas nada é tão forte até o momento em que a câmera torna-se o verdadeiro psiquiatra dessa relação e mostra em dose única e de maneira intensa todo o drama que envolve a vida de mãe e filha, ao menos nas últimas dezenas de anos.

O cenário é a cozinha. Toda a discussão começa com Carmem demonstrando seu primeiro ponto de fragilidade de forma escancarada, quando diz para a filha que ela deveria gostar de ter outra mãe. Poderia ser uma pequena discussão ou desabafo de qualquer relação materna, mas o diálogo a seguir cria um cenário de angústia, mágoas e de uma convivência extremamente dolorida ao mesmo tempo que amorosa entre as duas.

E então a câmera faz sua grande atuação. É para a câmera que mãe e filha jogam as cartas na mesa e assumem para o mundo um tratamento arisco que mantém, é para a câmera que elas afirmam estar enfim cansadas dos tratamentos baseados em insultos e discussões. É para a câmera que carinho e mágoa se unem em uma dança inseparável, pois finalmente desabafam uma para a outra suas loucuras e suas inseguranças, frente a frente, e na frente de todos nós, que outrora acompanhávamos com um leve riso a espontaneidade complexa dessa mulher, acabamos com nosso riso e nossas certezas junto com os musgos no fundo da piscina vazia.

Retrato de Carmem D. está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Quintal: mergulhar no portal cinematográfico

quintal1

por Adriana Gaeta –

Quintal é um experimento sobre linguagem. Se inicialmente mostra um casal de idosos e seu cotidiano, o curta rapidamente nos insere no universo do realismo fantástico, com o qual o diretor André Novais (Fantasmas, Pouco Mais de um Mês) vem flertando em outros curtas. Desse reconhecível mundo da casa e do quintal, o filme nos leva em uma viagem por universo nonsense e muito divertido.

Ele parte da observação do cotidiano da casa dos pais do diretor, Maria José Novais Oliveira e Norberto Novais Oliveira, na casa da família. Uma sacola de fitas eróticas é achada. O protagonista masculino se deleita com as imagens. Enquanto isso, um forte vendaval quase leva Maria pelos ares. Da mesma maneira que ele surge, vai embora. Mas, no quintal um estranho “portal” é aberto.

Enquanto isso, Norberto se deleita em seu aparelho televisivo, onde bundas prefeitas em poses provocativas se besuntam de óleo. Fascinado pelas imagens, Norberto mergulha no portal. Maria por sua vez não sente falta do marido durante todo o período e mantem suas atividades cotidianas. Norberto ressurge, sem explicar a nós espectadores onde foi. O elemento fantástico no filme está inserido em um cotidiano e não carece de explicação. Cabe a nós, espectadores, recriarmos esse lugar.

Nas cenas seguintes, Norberto apresenta sua tese “Bundas e óleos”, tema que foi objeto de um profundo estudo. O portal do quintal então poderia ser uma metáfora do portal televisivo, do mergulho no universo erótico, ou uma abertura para a consciência da sexualidade na terceira idade. Nada nos é explicado. O filme não dá possíveis trilhas a serem percorridas. Cabe a nós espectadores também mergulharmos no portal cinematográfico. O mergulho é de Norberto em um mundo paralelo e também o de nós, na nossa própria capacidade de (re)criação. Quintal nos teletransporta para o interior de nosso mundo imaginativo, e nos convida a ser co autores do curta metragem. E o mergulho, é bom avisar, é de cabeça.

Quintal está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Da organização fílmica do sujeito

como sao crueis os passaros da alvorada

Rodrigo Sá –

À sua maneira, um filme pode ser muitos filmes. Dada a não produção de uma impressão geral que permita uma interpretação do sentido, o filme constrói-se por meio de um processo de negação de síntese onde não se atribui aos elementos determinações semânticas permanentes. Filmes que se utilizam desse procedimento fogem daquilo que comumente se espera de uma narrativa fílmica. Em uma narrativa tradicional, a unidade do geral e do particular verifica-se sem mediações: sublinha-se o caráter orgânico de tais obras. Nas obras inorgânicas – nas quais conserva-se uma abertura em si mesma –, a unidade do geral e do particular não está dada. A negação do sentido produz um choque no receptor, no momento em que esse percebe que apenas ele é capaz de produzir o momento de unidade da obra. A estética do choque é um procedimento para acabar com a imanência estética e conceder à obra um potencial de transformação do comportamento daquele que entra em contato com a ela.

Como São Cruéis os Pássaros da Alvaroda é construído sob essa inorganicidade estrutural. No entanto, não é apenas a forma do filme que assume esse aspecto. A própria vida do personagem dialoga com essa ausência de um sentido fixo, fechado em si mesmo. Os acontecimentos do personagem parecem sempre palpebrear a vertigem dos seus abismos interiores. Forma e conteúdo – ambos marcados pelo caráter inorgânico – fundem-se e promulgam uma narrativa que outorga ao próprio vazio uma capacidade explosiva. Tudo se passa como se o fogo pudesse surgir mesmo no vácuo. Construído sob essa esfinge indeterminista, o filme de João Toledo desponta como um dos curtas mais promissores da Mostra Brasil.

As indicações do GPS no início do filme já indiciam o desnorteamento de uma busca fadada a nada encontrar, senão o vazio da própria (in)existência. Logo em seguida, a visualização do personagem atrás das grades da janela denunciam o aprisionamento pelo qual se dilacera a existência do personagem. As primeiras informações verbais acerca dele são obtidas a partir da descrição feita por aqueles que seriam seus pais adotivos. Esse modo de apresentação do personagem é muito significativa se pensarmos em algo que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade: uma impossibilidade de falar de si. O discurso do sujeito sobre si mesmo é invalidado em função da miríade de instituições que colonizam o discurso e detém a verdade sobre eles. O filme, já em seu começo, põe em questão duas delas: a família e a psiquiatria. Ambas estão instaladas no cerne da sociedade capitalista, constituindo-se, assim, como um dos seus principais aparelhos controladores.

Neste ponto, é necessário lembrar que a sociedade capitalista põe em ação seus modelos hegemônicos de subjetividade, reproduzem e internalizam, com seus aparelho sociais de reprodução, um sistema de repressão e limitações que inviabiliza o discurso do sujeito. Uma nova gramática do ser nasceu com a psiquiatria e moldou de maneira decisiva a percepção do sujeito contemporâneo, funcionando como uma peça importante para a consolidação dos modos de gestão social do capitalismo. O personagem “D” é analisado, descrito, codificado por uma psiquiatria que acredita possuir a verdade quanto à loucura; quando, na realidade, é a loucura que possui a verdade sobre a psiquiatria.

A família, por sua vez, opera uma reificação do indivíduo ilustrada tanto nas ordens que lhe fizeram de pronto quanto no distanciamento inscrito na própria fala do pai que, na presença do filho, fala com a mulher utilizando o pronome da terceira pessoa, evidenciando as formações insulares desenvolvidas no seio da estrutura familiar. Aparentemente acostumado a esse tratamento, o filho chega ao café de costas, como se assim pudesse passar despercebido, sem a necessidade de escutar os pronunciamentos dos “pais”.

Essa indeterminação pessoal terá como consequência uma despossessão de si mesmo, um esvaziamento do ser. O curta retrata essa decorrência quando o personagem, na presença dos pais, desaparece subitamente, deixando à vista apenas um quadro composto por uma infinitude de formas geométricas sem conexão entre si. A desconexão das figuras do quadro simbolizam a própria desconstrução a qual o sujeito está submetido na sociedade capitalista. A cena nos faz recordar Os Residentes (2010), outro filme da nova safra do cinema mineiro que guarda semelhança formais com o curta em questão.

A sequência seguinte, além de contar com uma beleza plástica exuberante, acentua ainda mais esse vazio. A cena transcorre aparentando que as pessoas que andam de patins estão deslizando sobre um nada flutuante. Destaca-se o plano-sequência do travelling lateral executado com uma matemática dos movimentos bastante preciso. O espectador fica sob o estase da experiência do voyeurismo.

Desde cedo, é possível perceber que o filme configura seus protocolos de organização de narrativa, planos, montagem, etc por intermédio das disposições psíquicas do personagem principal. O todo do filme é redefinido a partir do interior do sujeito. Em outras palavras: trata-se da construção de uma espécie de dramaturgia subjetiva centrada na figura elementar do personagem principal, o “D”. Ao adotar essa estratégia, o filme constrói sua diegese e mobiliza seu personagem cujas ações organizam um tempo fora do comum e variável em sua complexidade, mas mantendo uma conexão particular com a experiência social, isto é, com a sociedade permeada pelas estrutura hegemônicas de construção de subjetividade.

Buscando relacionar o filme ao contexto das produções nacionais, busquemos um fragmento do ensaio de Hernani Heffner, publicado na Cinética, intitulado “Sem Futuro”. Analisando o cinema brasileiro contemporâneo, o crítico e conservador da cinemateca do MAM-RJ escreveu: “Não interessa mais, porém, a denúncia da opressão político-econômica, do colonialismo, do autoritarismo, por exemplo. O eixo desloca-se da luta coletiva para a afirmação individual pelo desejo, pela sexualidade, pela criatividade.” A partir dessa conceituação, é facilmente assinalável que o filme de João Toledo, à sua maneira, se insere nessa tradição desse “Novíssimo Cinema Brasileiro”

Em seus desvelamentos, o curta assinala um conjunto de situações marcadas por uma repetitividade do gesto. O bonequinho do banheiro que executa um movimento eternamente igual, o telefone que toca indefinidamente, a chamada que ninguém atende, a bola de tênis que salta de um lado para o outro, as cigarras que entoam exaustivamente suas cantigas noturnas, o carro que insiste em não funcionar, as paisagens da cidade que se repetem avenidamente, o cabelo que teima em não obedecer ao movimento do pentear. A ausência de sentido acentua a ineficácia dos gestos, tão sem solidez como a própria materialidade do vazio. Tudo se passa como se a vida houvesse de ser repetida sempre a mesma assim como a piada dos mineirinhos contada várias vezes durante o filme. No limite, o ato mais rebelde parece consistir em contar uma piada até pulverizar a imaginação.

Numa cena fatídica, um amigo liga para “D” convidando-o para sair e ele responde mecanicamente: “não, não dá, tenho que trabalhar, não rola, não dá, não, não, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola”. A reiteração da fala é consoante ao mesmo ritmo de trabalho, atividade essa que impede-o de sair. O trabalho, enquanto atividade produtiva, requer uma uniformidade e repetição extenuante dos gestos. A relação profunda entre os regimes sociais de trabalho e a construção da subjetividade individual permite-nos compreender a associação entre trabalho e a repetição da fala. A instituição trabalho funciona como mais um elemento definidor do sujeito e, por consequência, de seus sofrimentos psíquicos.

A inadequação ao mundo do personagem é semelhante a do peixe que navega nas águas de uma privada, impedindo que o personagem urine, ainda que um mictório esteja posicionado ao seu lado. Até mesmo o estado orgiático da festa em que ele está não é capaz de retirá-lo de sua indiferença. A vida é revestida de uma inoperância como a fila de bebedor paralisada pela lentidão do personagem em beber água.

O final do filme permanece em aberto. O eclipse das circunstâncias – deambulação noturna e tanque de gasolina vazio – levam para um quarto de motel o personagem e um galão de gasolina. Não se chega a saber o que aconteceu. No entanto, tal indefinição não é nada mais que uma redundância. Afinal, o que é uma morte para quem parece já estar morto há muito tempo?

Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada está na Mostra Brasil 8. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

USP 7% e Mater Dolorosa, filmes necessários

mater dolorosa

por Armando Manoel –

USP 7%, de Daniel Mello e Bruno Bocchini, e Mater Dolorosa, de Daniel Caetano e Tamur Aimara, apresentados respectivamente no Panorama Paulista e na Mostra Brasil deste 26º Festival de Curtas Metragens de São Paulo, chegam em boa em hora aos circuitos nacionais de curtas-metragens em tela grande. Afinal, 2015 está ai e o Brasil ainda assiste dia após dia casos de racismo e preconceito de classe explícitos, mas até certo ponto inapontáveis (ou quando, discutidos em canais menores) em certas instituições sociais. USP 7% apresenta depoimentos sobre a implementação de cotas raciais na maior universidade da América Latina e Mater Dolorosa acompanha a mãe do dançarino DG, nos momentos que seguiram sua morte na comunidade Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro.

A Universidade de São Paulo, casa maior no que se refere a produção intelectual do país, ainda se vê imersa em vícios conservadores que a impedem de avançar na questão racial. Do universo de estudantes que ingressam anualmente em seus quadros, cerca de 7% são negros (dados de 2012). O curta parte justamente desta informação para abordar um debate até então pouco exercitado no ambiente universitário: cotas raciais.

USP 7% apresenta uma série de narrativas de pessoas que vivenciam plenamente a questão das cotas. Acompanhamos, por exemplo, a jovem Fernanda Moreira durante o processo de vestibular da Fuvest. Em seus depoimentos, a estudante, trabalhadora e militante do Núcleo de Consciência Negra da própria universidade aponta para a diferença entre a preparação de vestibulandos que vêm de camadas privilegiadas em relação a outros concorrentes, como ela mesmo, negra e oriunda de camadas populares. A emoção e o conhecimento de causa nas falas, bem como o nervosismo da jovem nos levam a uma visão muito próxima da questão – uma pena os diretores não terem dado mais tempo à produção do filme e nos revelado o desfecho da narrativa de Fernanda e o vestibular.

Afinal, por que a USP, uma das primeiras universidades a debater a questão racial, reluta tanto em aplicar artifícios que visam corrigir o racismo institucional em seus quadros? Se a USP é a maior em pesquisa, maior em numero de alunos, enfim, a maior em diversos aspectos, o racismo no campus também tem de ser maior? A força deste curta esta justamente em formular e apresentar, quase que na forma de denúncia, estes e outros questionamentos.

Mater Dolorosa é um filme intenso. Já de início nos vemos perdidos em meio a uma manifestação no Rio de Janeiro, tudo muito rápido, como o samba que preenche ao fundo as imagens. Maria de Fátima da Silva puxa uma manifestação tocando incessantemente um surdão pelas ruas até chegar às regiões centrais da cidade. Seu filho Douglas Silva, o dançarino DG, acabara de ser assassinado numa ação policial no Pavão-Pavãozinho.

Em meio a trechos de poemas de Eurípedes sobre crianças que são lançadas em um mundo em guerras (contexto da guerra entre Grécia e Esparta nos quais foram escritos), Mater Dolorosa nos leva a uma reflexão sobre a realidade de extrema violência que acompanha o cotidiano de diversas regiões do Rio de Janeiro. Muita gente segue o bonde que presta sua última homenagem a DG, as imagens de manifestação pelas ruas, mas principalmente de seu funeral, poderiam enganosamente sugerir uma festa de rua, se descontextualizadas. Mas a energia ali canalizada é clara e direta: os morros, as quebradas, as favelas não aguentam mais a violência instalada. Não aguentam mais inclusive ser vítimas do Estado e da sociedade que pelas mãos da polícia que cada dia mata mais nessas comunidades. Os principais alvos: jovens, negros e pobres, como DG. Justiça! Justiça! Justiça! Grita o povo na rua.

USP 7% e Mater Dolorosa, trabalham com a linguagem do documentário. Ambos fazem refletir sobre a questão do negro no Brasil. Trazem para as telas pontos nevrálgicos da questão do racismo, mostrando como este se manifesta na Educação em São Paulo e na Segurança Púbica no Rio. Os dois curtas são bastante diferentes em seus ritmos e cadências: USP 7% é capoeira Angola, resistência e luta; Mater Dolorosa é samba, combate direto, o morro descendo pro asfalto. Ambos sobre a condição do povo negro em duas das maiores cidades do Brasil em plena década de 10 dos anos 2000. E acima de tudo, filmes necessários, se quisermos mesmo acreditar numa sociedade mais justa e democrática para todos.

USP 7% está no Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015
Mater Dolorosa está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Cordilheira de Amora II: inventar para sobreviver

cordilheira de amora II

por Adriana Gaeta –

Cordilheira de Amora II é um filme sobre a reinvenção. Na vila indígena de Amambai, no Mato Grosso do Sul, vive a menina Guarani Kaiowá Carine Martines. Menina brilhante, Carine, seu primo e seus amigos imaginários criam um mundo próprio que nos leva, além de qualquer possibilidade material, para um lugar mais interessante e melhor.

Quintal metáfora do mundo, Carine, a pequena inventora, faz da escassez de brinquedos sua riqueza. Munida de tijolos, de restos de móveis e lixo, a menina cria sua casa própria, motivo de tanto orgulho quanto o de nós adultos quando conseguimos realizar o sonho de ter um teto para chamar de nosso. Pequena brincante, Carine não vai para Marte ou faz alusão à universos estranhos. Ela debruça toda a sua capacidade criativa sobre o mundo real dos adultos. Replicando o seu mundo, ela nos conta um pouco mais sobre ele. E o mundo dos adultos visto por nossa indiazinha é o mundo urbano: salão de beleza, computador, shoppings e pontos de ônibus. O conto de fadas é o europeu: Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos. E é desse registro que o curta nos coloca nesta relação de identificação/estranhamento, dessa menina que vive dia a dia a perda de sua cultura original.

Para entendermos melhor a força do curta, temos que lembrar que os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul vivem um cotidiano de guerra civil. Nos últimos dez anos, as degradantes condições de vida e o confronto entre índios e grandes proprietários de terra se tornaram tão dramáticas que a taxa de assassinatos de Kaiowás, ultrapassa qualquer estatística de países em guerra e é 495% maior que a média brasileira. A cada seis dias, um jovem Kaiowá Guarani se suicida. E esse são dados oficiais.

A Cordilheira/ Xanadu é logo ali. A redenção possível também. Carine não precisa ir muito longe porque sabe intuitivamente que toda a riqueza que precisa está dentro de si. Uma criança/personagem de uma nobreza e força que nós espectadores torcemos para que nunca se perca. Seu “filme invisível” já está sendo feito, é este curta que assistimos. Sua mensagem está sendo dada e nós espectadores, também se tivermos sorte, teremos lugar em seu coração e seremos seus amigos invisíveis, torcendo para que o mundo lúdico de Carine jamais se perca na mediocridade da vida ordinária.

Em um lugar onde resta aos Guarani Kaiowá trabalhar na lavoura de cana ou ser mendigo, o futuro é um não ser aquilo que se é. Assim, dentro de uma realidade tão dura, o escapismo infantil de Carine talvez signifique mais que um brinquedo, talvez também seja uma estratégia de sobrevivência.

Cordilheira de Amora II está na Mostra Brasil Infantil e Infanto-Juvenil. Clique aqui para ver a programação do filme no Festival de Curtas 2015