Umbigo à francesa

voltamos a aleia das castanheiras

Talvez o problema seja meu: azar ou intransigência. Ou talvez seja mesmo algo entre a tradição e a fórmula: rememorando as sessões que assisti nos anos anteriores, uma constatação: filmes de perfil confessional, usando voz over, com tom de voz baixo e imagens oriundas de real ou suposto arquivo familiar, com estáticas ou tendendo ao ato de imobilização, nove em dez vezes são falados no idioma francês.

Voltamos à Aleia das castanheiras (Nous sommes revenus dans l’allée des marronniers) não escapa dessa regra, tem todos os elementos de uma forma que demonstra indisposição, fraqueza em lidar com recorrências. Se do filme ou do crítico, ainda resta saber… Ou, enfim, seja algo visto em ambos. Será a língua de Voltaire referendada como oficial da melancolia e/ou subjetivação no cinema? Na arte? Será tudo parte de um clichê que se perpetua? Ou sinal de respeito aos nomes literários de Proust, Camus, Dujardin? Ou cinematográficos de Chris Marker, Agnès Varda, Resnais e boa parte da Nouvelle Vague?

Afora uma boa recordação de Adeus Mandima em 2011, nada mais dos desdobramentos contemporâneos da subjetivação no curta-metragem francófono tem me empolgado tanto. Tenho razão em me inquietar? Existem exemplos contrários? Uma coisa é fato: tais questionamentos nublaram minha visão da volta à aleia das castanheiras, das memórias afetivas da diretora Leslie Lagier.

Há embaçamento também na paisagem outonal na tela. Espero que o filme não mereça a minha avaliação contaminada, espero que me desminta, que não tenha, como resultado emocional, realmente desperdiçado a chance de um novo enfoque. Lanço mão da possibilidade de ação interativa para que quem me leia possa me dizer se me equivoco nessas considerações.

Rafael Marcelino

Voltamos à Aleia das Castanheiras está na Mostra Internacional 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas

Uma quase morte

memento mori

Memento Mori, avisa o título. “Lembre-se da morte”, é o que quer dizer. A expressão latina, uma das divisas da literatura barroca, ecoa nessa animação coproduzida entre Bolívia e Bélgica, mantendo algumas conexões com o momento histórico em que a arte primou por lidar com fenômenos contraditórios.

Quem esperaria flertar com a própria extinção por meio da dança? Intercalar situações monocromáticas com banhos lisérgicos da cor? Sim, estamos diante de uma caixa de surpresas. Poderia predominar o tom sombrio, de escritores românticos ou expressionistas, que de fato existe aqui. Mas nos vemos diante de uma forma de expressão mais mística do que necessariamente fantasmagórica.

A menina (que guarda em si uma imagem infantil de certa forma localizada entre o século XIX e a primeira metade do XX, imagem que tem como maior exemplo, talvez, a Alice de Lewis Carroll) que executa a passagem “transcendental’ em que pode-se, em um momento acreditar estar num sonho, em outro vendo um funeral é recepcionada por uma entidade mágica, com uma aparência exótica, “étnica”, algo africana. Uma dança, em que se libertam corpos e almas.

Coreografia de movimentos que se interrompem e sobrepõem, num fluxo capaz de evocar sim algo muito caro ao imaginário cultural latino-americano: os rituais xamânicos do(s) mundo(s) possivelmente existente(s) no limiar entre matéria e abstração.

Bad trip? Vez por outra é evocada, mas não permanece. Experiência de quase morte, que eventualmente se conclui? Hipótese a se considerar, mas também reducionista. Algo que chama a morte pra exercitar a ideia de ressurreição. Lembrar da morte para viver algo de onírico. Afinal, Memento Mori.

Rafael Marcelino

Memento Mori está na Mostra Latino-americana 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Entre a fé e a “perdição”?

Ainda durante os créditos iniciais, uma voz off de depoimento, falando em vida, sofrimento, mundo e Deus. Logo após, outra voz externa, um rádio, locutor popular, relembrando os momentos iniciais de O Bandido da Luz Vermelha (1968), que fala de um crime passional.

Um hospital. Voz externa em oração. Montagem rápida intercalando insinuações de uma operação, e apresentações em um cabaré. Vemos, então, um órgão genital masculino, inerte, ensanguentado, posto em uma bandeja hospitalar; pode simbolizar morte de uma identidade para nascimento de outra, mas também, e isso parece reverberar no curta, uma forma de castração, gerando sofrimento.

A oração continua. Estamos dentro de uma igreja envolta em luzes celestiais. Em seguida, sem a oração, voltamos ao “inferninho”. O protagonista transexual Joel(ma) seguirá desafiando o senso comum, sendo, de sua forma extremamente religioso(a), vítima de conflitos internos.

O filme trabalha em sua montagem com uma lógica que combina antecipação e retorno. Depois de voltar para a cidade natal acompanhada de um companheiro é que descobrimos como a relação começou, mas temos também o prenúncio de uma prisão, antes de um julgamento, e um julgamento antes da consumação de um crime.

É de se pensar se essas alterações cronológicas da narrativa evocam, na verdade, o pré-julgamento social das escolhas de orientação sexual tomadas por Joelma, que nasceu em um rincão nordestino de atmosfera oligárquica (remetendo ao município de Sucupira, no Bem Amado de Dias Gomes).

Falando em “evocações”: voltemos ao locutor de rádio, que anuncia a abertura da nova delegacia da cidade em um carro que passa. Ele enfatiza o aumento de capacidade da retenção (“Para mais de 20 presos”) e o dado bizarro: o primeiro detento capturado ganhará um rádio de pilha (anúncio de “modernidade” e pompa, de novo, a mesma que toma Odorico Paraguassu quando da inauguração do cemitério de Sucupira). Nesse exato momento, Joelma retorna; há uma insinuação de tragédia por vir.

A ironia que une “céu” e “inferno”, espírito e carne, igreja e cabaré, torna o curta uma espécie de obra levada a cabo por um “Almodóvar Agreste”: o transexual tenciona abrir o seu templo, mas um auxilar nessa tarefa tenta estuprar Joelma. O ex-mendigo, atual marido desta, arrisca-se a defendê-la, mas acaba morto pelo agressor, que é morto, em legítima defesa, pela protagonista.

Qual a saída depois de constatado o crime? A culpa cristã acomete Joelma; ela se entregará, roupas sujas de sangue, faca ainda na mão. Recebe das mãos do próprio delegado, dentro da “jóia da coroa” local, o rádio ao qual tem direito, ironia máxima, tocando uma melodia religiosa erudita.

A assassina terá seu pecado maior expiado, será inocentada pelo juiz Edmundo da Crucificação. Outro sarcasmo do filme, unindo o mundano e o divino em uma mesma lei, não sem um riso patético (nos dois sentidos, trágico e ridículo).

Ao final, Joelma terá voltado ao mundo da “carne”? A última cena diz que sim, mas a estrutura narrativa de idas e voltas do filme nos deixa na dúvida. A única certeza, também irônica, logicamente é a de que, graças a Deus, não vivemos em uma teocracia, que proibiria a existência de uma personagem com esse tipo de contradição, entre fé e “perdição”. Mas apenas Bolsonaro e seus asseclas ainda creem que isso só existe na ficção de “mentes doentias”.

Rafael Marcelino

Joelma está na Mostra Brasil 1. Clique aqui para ver a programação

Uma ética de cumplicidade

A Cidade começa com um plano de ambientação, o bastante para saber que existe uma certa “ironia inevitável” no seu título. O que um espectador urbano pode fazer é chamar o local, no máximo, de “vilarejo”. Até o som do vento, que certamente não encontra prédios em seu caminho, é perceptível.

Uma mulher idosa dirige um Fusca, por caminhos de terra, e depois parcialmente asfaltados. A dinâmica de montagem parece acompanhar o movimento do veículo, com cortes em planos de detalhe da mão da personagem passando as marchas, ou seu pé pisando no acelerador, antes de adentrarmos o ambiente da narrativa.

Esse é o único momento do filme em que existe de fato alguma referência ao que pode ser veloz. Daí para a frente sobram tempos, esperas e memórias.

Todos os indivíduos colocados diante da câmera nesse documentário têm mais de 60 anos. Aparecem principalmente em suas casas, falando sobre doenças, entre outras coisas. Não seria exagero dizer que as próprias paredes das construções parecem filmá-los. A abordagem do filme com relação aos espaços e às pessoas que encontra é a de observação paciente. Os próprios idosos, que são apenas 35 no total, dizem claramente esperar, entre conversas e jogos de bocha, “que algo aconteça”.

Algo acontece. Vemos pessoas trabalhando em uma cozinha industrial, único vestígio de “progresso técnico” que o filme mostra para além do carro do início. Há um grande bolo sendo preparado, uma fanfarra juvenil aparece e toca. Um salão com algumas mesas preparadas… E tudo acaba, com  pucos comentários residuais posteriores.

Sequência com sete personagens na praia. Falam de suas memórias afetivas, casamentos, namoros. Aqui, pode-se pensar que a fotografia corrobora uma sensação geral que permeia o filme como um todo, mas recebe ênfase nesse  trecho: a luz solar ganha tons marrons, quase sépias, num momento em que se tem a plena certeza de que o presente daqueles que falam é construído de “remontagem dos cacos” do passado. Até o agora já passou.

A sequência da praia se encerra com uma senhora que canta “Quem Sabe”, que ganhou o status de emblema do século XIX e da primeira metade do XX no cinema historiográfico brasileiro. Não posso dizer com certeza se o ato de cantar foi totalmente espontâneo (o que a lógica “observacional” assumida pelo curta-metragem quer supor) ou pré-combinada (o que minha consciência sobre as “encenações negociadas” do documentário presume). O fato é que a letra da música parece constatar a relação entre o tempo, as lembranças e os seres humanos aí envolvidos (“Tão longe/De mim distante”…) e do próprio filme para com essas pessoas (“Onde irá/Onde Irá/Teu Pensamento?”).

Uma possível resposta ao perguntado na canção: imagens de arquivo do surgimento dessa cidade de Itapuã (RS), acompanhadas de cartelas de texto, explicando a condição extraordinária de surgimento do local: era uma colônia de isolamento compulsório para acometidos de hanseníase, popularmente conhecida como lepra, nos idos de 1940. Três décadas depois acaba o isolamento, mas quem não tem relações externas, mesmo curado, fica.

A pergunta que fica ecoando nos personagens: o que fazer lá fora?

Voltamos aos olhares para dentro das casas, agora se entende uma certa “claustrofobia aceitável” atuando no próprio método do filme. O isolamento, antes forçado, agora é desejado. E A Cidade assume uma ética de cumplicidade com os que lá estão, e que atinge e conquista o público.

Rafael Marcelino

A Cidade está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme