Índice Crítica Curta 2025

Acompanhe aqui as críticas sobre a programação de 2025 do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo!

Neste ano, a oficina contou com mentoria de Isabel Wittmann

Textos:

Paixão Que Fere Sobre O Atirador de Facas sobre A Mulher do Atirador de Facas, de Nelson Villas Boas por Rafaela Morais

Mulheres trans no topo da narrativa sobre Americana, de Agarb Rocha por Rhero Silva

As estrelas brilham até o apagamento sobre Por Fim Ela Mata Todo Mundo, de Céline Novel por Gil Robin

Nos Pequenos Detalhes sobre Mãe da Manhã, de Clara Trevisan Farret por Manu Couto

Um Olhar Delicado Sobre A Beleza Do Ser Incompreendido sobre Kabuki, de Tiago Minamisawa por Lucas Detoni

O vexaminoso espetáculo do eu sobre Mostra Brasil 6 – Ame e Dê Vexame por Sofia Carlos

O incômodo do som da batida no aquário sobre Amarela, de André Hayato Saito por Maria Silveira

República Dissolvida em Tela sobre República, de Grace Passô por Ana Peixe

Subjetividade periférica em imagens: um retrato geracional sobre Rolês, de Nathalia Cristina, Matheus Alcântara, Fernanda Lima e Madson Pomponet por Aline Fátima

Diretoras mulheres e suas histórias de meninas sobre  Minha mãe é uma vaca e Akababuru: Expressão de Espanto por Tainá Bezerril

A memória em festa e em luto em O Rio de Janeiro Continua Lindo, de Felipe Casanova por Erick Aragão Pradela

Por mais mirabolante que seja o medo, o amor persiste: uma crítica da distopia cearense afetiva de O Medo Tá Foda, de Esaú Pereira por Estefane Araújo Barguil

sobre Fronteriza, de Rosa Caldeira e Nay Mendl por Maria Eudóxia Carvalho

O cinema e o ambiente como espaço ativo de memória sobre  Video Connection, de Sérgio Rizzo por Isadora Quaglia

 O cinema à beira do abismo sobre Mostra Limite 2 – Vereda Tropical por Clara Grosche

Quando o bizarro vira comum sobre Internacional 9 – A Parada dos Monstros por Caique Lima

O cinema contra a indiferença sobre Girassóis, de Jessica Linhares e Miguel Chaves por Caio Domingos 

O cinema como arma decolonial sobre A Dita Filha de Claudia Wonder, Picumã e Escorpiônikas – Contramanifesto por Bruny Derotzi

Uma virtuosa homenagem ao cinema de David Lynch sobre Malmequer por Lucas Detoni

Cinema com significativa importância cultural sobre Mostra Brasil 1 – Memórias e Metalinguagens por Erick Aragão Pradela

Mamá, yo quiero mamá sobre Feiura Comovente por Luan Souza

No futuro só tem sapatão sobre Meu Pedaço de Mandioca por Nina Neves

Paixão Que Fere Sobre O Atirador de Facas sobre A Mulher do Atirador de Facas, de Nelson Villas Boas

por Rafaela Morais

No picadeiro de um circo, Violeta está de pijamas no centro de um alvo redondo de madeira maior que ela. Um atirador de facas, interpretado por Ney Latorraca, está na frente dela, se preparando para acertar o alvo com suas armas grandes e afiadas. O clima entre o casal é tenso, e a personagem de Carla Camurati desvia o olhar para não ver o lançamento dos objetos cortantes em sua direção. A primeira faca fica cravada na madeira do alvo a centímetros do nariz de Violeta. As outras cinco são lançadas em seguida pelo atirador, que não erra nenhuma vez.

Em outra cena, acompanhamos a personagem comprando cetim vermelho em uma loja de tecidos, enquanto as atendentes do balcão cochicham sobre o perigo que deve ser uma briga do casal. “Quando a gente briga é que fica bom”, dispara Violeta. 

As cenas em questão não são a abertura de “A Mulher do Atirador de Facas”, mas descrevem bem a relação de amor apresentada no curta-metragem de Nilson Villas Boas, de 1988. No filme, acompanhamos o romance intenso e possessivo entre Violeta e o grande astro de um circo, o Atirador de Facas. A tensão caminha de mãos dadas com a malícia durante todo o filme e é esse casamento que só melhora a história. 

Uma atmosfera de paixão enlouquecedora é criada com diversos recursos muito bem usados pela produção. A trilha sonora, por exemplo, cria tensão durante os momentos solitários em que Violeta deixa um recado em um gravador de voz. É o recurso que sinaliza ao espectador que essa ação é importante, vale prestar atenção. 

Outro ponto alto é a câmera que explora o camarim apertado e cheio de cacarecos do casal. Com os enquadramentos bem próximos aos rostos dos atores, estamos expostos à intimidade de uma relação tão sufocante quanto o quartinho em que eles vivem. 

As atuações sensacionais de Ney Latorraca e Carla Camurati prendem o espectador. Ney exprime uma paixão doentia por sua companheira, mas ele avisa que não entende como ela pode confiar tanto nele. Em algum momento, ele poderia errar a mira. 

É na cena final que reencontramos outros elementos da narrativa que não estavam explicados. O Atirador de Facas encontra o recado de sua amada no gravador e descobre que será pai. Ele entra no picadeiro para sua apresentação e Violeta está vestindo o cetim cor de sangue que comprara na loja de tecidos. Imaginamos, nesse ponto, que o Atirador não suportaria dividir a atenção de Violeta com a criança que está na barriga dela. E talvez ela saiba disso. Com uma lágrima escorrendo no rosto, o atirador lança sua primeira faca e os créditos sobem. A tela preta anuncia o final aberto e deixa a dúvida sobre o destino de Violeta. O que segue daí é uma infinidade de desfechos possíveis, todos imaginados pelos espectadores e suas experiências individuais com o filme.       

Assistir a este filme dentro de uma mostra que homenageou Zita Carvalhosa, idealizadora e fundadora do Kinoforum, pesou ainda mais para a avaliação positiva do filme. A reação do público pode ser parâmetro de avaliação e, neste caso, a plateia era feita de amigos, colegas de trabalho e admiradores de Zita que estavam presentes para aplaudir o ótimo cinema que ela produziu.

Mulheres trans no topo da narrativa sobre Americana, de Agarb Rocha

por Rhero Silva

O filme começa com Bryana — a “Americana” — surgindo de forma exuberante, em look rosa vibrante, enquanto sua voz em off conduz a narrativa ao som de uma trilha alegre. Logo de início, ela enfrenta o assédio de alguns homens que jogam bola, revidando com um cotoco e declarando seu ódio por “homem hétero cis”. Em seguida, apresenta sua lista de aversões e, principalmente, sua ex-melhor amiga Josefina, a “Zé”. A partir daí conhecemos seu grupo: a Pisciana sonhadora, Ariel — pessoa não binárie viciada em fanfics sexuais — e Cassiane, agora convertida à igreja. 

O conflito central surge quando Bryana acusa Josefina de se envolver com seu namorado, Belo. A discussão vira briga física e é interrompida pela polícia. Só depois, na delegacia, descobrimos que Cassiane havia chamado as autoridades ao encontrar um homem drogado. A narrativa não linear embaralha a história, revelando diferentes perspectivas. Bryana quebra a quarta parede em alguns dos momentos, aproximando o público e dando à obra uma camada metalinguística.

O curta retrata também o relacionamento abusivo de Bryana com Belo: ele a proíbe de falar com suas amigas, critica suas roupas e, como ela relata, mexe em seu celular mas não permite que ela mexa no dele. Mesmo percebendo os abusos, Bryana permanece presa pelos seus sentimentos por Belo. Essa dimensão amplia o peso dramático, transformando a comédia inicial em retrato das violências afetivas.Vale lembrar que Bryana é uma mulher trans e Belo é um homem cis, o que torna essa relação ainda mais complexa, evidenciando como tais violências são parte da realidade cotidiana de muitas mulheres trans no Brasil.

Nos depoimentos, cada amiga traz sua versão até que Josefina revela: Belo a procurou para organizar uma festa surpresa e acabou forçando um beijo. A delegada conclui que Bryana precisa ouvir mais suas amigas, o que marca uma virada simbólica. No clímax, após a prova da traição, Bryana explode e enfrenta Belo, libertando-se de seu controle. O reencontro com Josefina é marcado por perdão e humor, quando Bryana propõe um beijo “apenas para terminar o filme”, quebrando a quarta parede outra vez. O desfecho celebra o aniversário da protagonista, agora cercada de amigas.

Visualmente, o filme se destaca pelo uso expressivo das cores, presentes nos figurinos, maquiagens e cenários, criando uma estética vibrante que dialoga com a personalidade das personagens. A fotografia, atenta aos enquadramentos e à iluminação, potencializa essa construção, enquanto as atuações sustentam uma naturalidade cativante, sem exageros artificiais. Para além de suas escolhas estéticas, o curta se mostra necessário e urgente, especialmente por colocar mulheres trans no centro da narrativa, interpretando personagens trans e contando suas próprias histórias. Essa representatividade amplia o impacto social da obra e contribui para visibilizar violências e afetos que marcam a vida dessas mulheres no Brasil.

As estrelas brilham até o apagamento sobre Por Fim Ela Mata Todo Mundo, de Céline Novel

por Gil Robin

Sabe aquele brinquedo com o qual você brincava quando era criança, mas que depois de crescer deixou de dar atenção? O mesmo pode acontecer com uma atriz de cinema: destaca-se na juventude e com o envelhecimento é esquecida. Esse etarismo comercial está perfeitamente retratado no curta-metragem francês de 12 minutos, Por Fim Ela Mata Todo Mundo. A obra conta a história de uma atendente de cinema que já foi atriz e ainda sonha com a sua retomada. Seu nome é Marilyn, evocando a figura da Marilyn Monroe. Essas duas mulheres têm várias semelhanças, sendo a principal a invisibilidade de seus sentimentos diante da visibilidade de suas imagens como atrizes.

O curta tem uma estética geométrica de perfeccionismo similar ao estilo do cineasta Wes Anderson. Os objetos de cena compõem o quadro ordenadamente junto com os personagens que estão centralizados a ponto de, em alguns momentos, olharem para a câmera. Desta forma, no filme há um contraste entre o aparentemente perfeito e o internamente caótico. São escolhas muito interessantes da diretora e atriz protagonista, Céline Novel, que nos transporta para esse mundo desde a primeira cena. O curta começa com uma projeção na sala de cinema em que a protagonista aparece na frente da tela informando a plateia sobre o filme e ali já pode ser identificado o seu desejo de brilhar. Ao longo da narrativa vemos seu chefe, um homem individualista que utiliza a sua posição para ordenar inúmeras tarefas a Marilyn. Ela vai se tornando cada vez mais revoltada, afinal, já foi uma atriz famosa, vencedora do prêmio de atriz revelação de Cannes em 1988.

         Sua insignificância é retratada também em uma cena em que aparece na janela de vidro do segundo andar do cinema onde, ao lado, há um poster de um longa-metragem brasileiro chamado Meu Nome é Bagdá. Neste momento, Marilyn está exposta como um produto na vitrine a ser consumido e mesmo assim não está sendo vista. Um outro exemplo, é quando escuta um quiz no rádio perguntando quem ganhou o prêmio de atriz revelação de Cannes em 1988 e a participante não sabe a resposta. Mesmo assim, Marilyn não desiste do sonho. Ela tenta aparecer na foto de uma jovem atriz, mas é retirada como se fosse um objeto que atrapalha a sessão. Além disso, tenta acenar para um diretor de cinema, mas é desprezada pelo olhar egocêntrico dele que só enxerga a jovem atriz. Em vista de tudo isso, o seu desespero é construído de uma forma leve e humorada, com o objetivo de criticar nossas escolhas de valores imorais por meio do riso do espectador, e isso funciona de uma forma excelente.

         Ao fundo do palco de angústia, predomina a cor vermelha: cor de alerta, sinal de que algo vai acontecer. Um dos sinais é o poster de um filme com o mesmo título, Por Fim Ela Mata Todo Mundo, em que a imagem mostra uma mulher sombreada segurando uma arma em um fundo vermelho. Conforme a história avança, parece realmente que ela vai matar todo mundo (e motivos não faltam). Essa dúvida, habilmente construída pelas roteiristas Céline Novel e Laurine Lagarde, impacta o espectador com suspense até o final. São diversas reflexões em um curta sobre cinema, mas principalmente a nossa falta de memória do passado e visão limitada do presente.         Como já dizia a personagem Norma Desmond, no filme Crepúsculo dos Deuses: Aqueles produtores idiotas. Aqueles imbecis. Não têm olhos? Esqueceram-se de como é uma estrela? Eu vou mostrar-lhes! Vou voltar para lá, juro!

Nos Pequenos Detalhes sobre Mãe da Manhã, de Clara Trevisan Farret

por Manu Couto

Olhos brilhantes de uma criatura olham para a câmera. Suas veias pulsam como pérolas. Um vazio que parece interminável em seu ventre. O cintilar de sinos que revela peixes dourados reluzentes. Em detalhes se conta uma história – até que o plano se abre para criar constelações.

Para conceber a narrativa mística de um filme sobre uma criatura estelar gigantesca, MÃE DA MANHÃ contempla a riqueza das miudezas. É até mesmo impressionante que um stop-motion, com elementos que parecem ser feitos em tecidos e feltros, adornados com botões, pérolas e outros berloques, aposte tanto em planos-detalhes e close-ups. Ainda assim, é nesses enquadramentos que encontram-se os componentes chave da obra. Ao dar destaque às minuciosidades, como o vento que bate no pelo do ser, o roncar de sua barriga, o acessório de sua orelha, os próprios materiais dos quais o filme é feito colocam-se em evidência, um dos grandes diferenciais deste trabalho. Desde estrelas que são engolidas como doces ao sangue que escorre do guerreiro empalado, voltar a atenção às pequenas coisas é uma decisão que, além de tecnicamente admirável, cria uma atmosfera ao mesmo tempo afetuosa e sinistra, em uma dinâmica que, embora pareça contraditória, transforma a essência do filme.

A proximidade da câmera com a criatura modifica a relação do espectador com ela, já que, ao invés de colocá-la como a besta imponente que é, estabelece uma intimidade. Observamos essa entidade quase como algo fofo, querido – uma sensação de pequenez. Este vínculo com o espectador é colocado em xeque apenas em duas ocasiões: a criação da constelação e a chegada do guerreiro. Nesses momentos a própria posição do ser é colocada à prova – primeiro se mostra pequeno em relação às estrelas e depois grande em relação à pessoa devota. Esse jogo de enquadramentos harmoniza também com a trilha sonora, que concentra-se em sons cintilantes em certos instantes e, em outros, sons misteriosos e monumentais. Todos, enfim, esotéricos, que ajudam a formar o ambiente astral e abjeto, que transporta-nos a um outro mundo, em que é possível a manhã transpor-se em uma criatura.

Um Olhar Delicado Sobre A Beleza Do Ser Incompreendido sobre Kabuki, de Tiago Minamisawa

por Lucas Detoni

Em certo momento, uma personagem se olha num espelho d’água, mas o reflexo que ela vê é outro. Essa é só uma das maneiras que subtextos e temas são expressos e abordados no estupendo e espetacular curta-metragem de animação Kabuki, dirigido, roteirizado e produzido como talento único de Tiago Minamisawa, um dos autores ao lado de Guilherme Petreca, da grafic novel que deu origem ao filme (Editora Pipoca & Nanquim, 156 páginas).

Kabuki conta a jornada da personagem título em busca de autoaceitação, resiliência e luta contra a intolerância.  A escolha narrativa não poderia ser mais assertiva, levando a história para um teatro kabuki, que é um drama musical estilizado ancestral do Japão (realizado desde 1603), que tem como característica principal o uso de máscaras, maquiagem elaborada, figurinos extravagantes, sempre sendo interpretado por atores homens, inclusive para os papéis femininos. Sim, a personagem principal de Kabuki é uma pessoa transgênero, que se reconhece assim desde a infância, e que luta para se esconder, podendo ser ela mesma apenas quando está sob uma máscara, maquiagem e roupas. É uma metáfora inteligentíssima para o ritual de passagem e aceitação da personagem, mas que não deixa de retratar a violência que a sociedade vê e causa nas pessoas trans (a cena dos lobos é um exemplo doloroso, triste e ainda assim poético). 

Sem nenhum diálogo, o filme se sustenta em belíssimas imagens coordenadas por Guilherme Petreca com direção de animação por Erica Valle, que une a técnica de stopmotion clássica, que traz movimentos travados, quase artesanais, criando uma ilusão de movimento. A trilha sonora exuberante feita a quatro mãos (Ruben Feffer e Gustavo Kurlat), uma mistura de sons de xilofone, teclados e batimentos cardíacos, levando o espectador a uma imersão até o final poético e lírico, um dos mais belos concebidos na animação stopmotion. É uma equipe técnica competentíssima, trazendo uma riqueza de detalhes impressionante, que mostra o quanto o cinema de animação no Brasil tem evoluído ao longo dos anos.

O filme estreou no 57° Festival de Brasília (2024) e continua uma trajetória vitoriosa pelos festivais do Brasil e do mundo. É um feito imenso para um projeto de animação em stopmotion, uma das técnicas de animação mais complexas no universo cinematográfico.

Kabuki é para ser aplaudido em pé, e ser celebrado como arte cinematográfica no seu mais puro sentido, mas se preferir, você pode simplesmente usar a frase clichê do cinema atual: ABSOLUTE CINEMA!

O vexaminoso espetáculo do eu sobre Mostra Brasil 6 – Ame e Dê Vexame

por Sofia Carlos

A materialidade do desejo transborda nos filmes deste programa. É como se cada obra, à sua maneira, celebrasse a plasticidade das vontades. O enunciado que dá a abertura — Ame ou dê Vexame” — parece indicar apenas uma via em duas opções: a do exagero. Os filmes aqui reunidos caminham, dentro de suas particularidades, guiados por um sentimento obsessivo que molda seus desejos plásticos, embora sempre de natureza orgânica.

Em Americana, uma suposta “talaricagem” leva cinco amigas à delegacia. O conflito se sustenta por uma enxurrada de referências da internet que não apenas constroem uma identidade para o filme e para as personagens, mas também materializam as inquietações que atravessam a narrativa. Já em Mensagem de Sergipe, essa materialização aparece nos áudios que, comparados às imagens, criam um ecossistema próprio, no qual flui a ironia cativante das mensagens de aniversário enviadas a Jean-Claude Bernadet. O charme orgânico desse gesto é curioso: não se percebe claramente os limites entre personagens e pessoas. Essa indefinição reitera a dimensão performática que confere identidade ao filme — e, de certo modo, a todo o programa. Não à toa, Americana também ecoa em Nati Natini Natiê Lohanny Savic de Albuquerque Pampic de La Tustuane de Bolda, mais conhecida como Danusa Deise Medly Leona Meiry Cibele de Bolda de Gasparri — afinal, até que ponto Leona Vingativa é performance ou pura realidade?

Em Quase Trap, a identidade também se materializa, mas de forma estilizada. O filme brinca com a aparência das coisas: Tiunai, querendo provar que é confiante e descolado, encontra espaço de conforto para atuar o que lhe falta, a pose. Isso basta. Sem moral da história, o gesto devolve ao espectador a superficialidade das vontades, sem necessidade de lições. Ele quer ser descolado; o filme também. Ambos alcançam esse objetivo ao assumir o caráter performático do desejo e correr com ele.

Já em Janete, a protagonista, mergulhada na solitude, encontra conforto em um robô aspirador de pó. Em O impulso e outras aversões, a atração entre dois personagens cresce aos poucos em um supermercado. Aqui, a materialidade está no entorno: a falta abre espaço para a possibilidade, e a performance surge em paralelo ao cotidiano. Janete encarna uma nova obsessão — o plástico e o motor que animam a engrenagem — sendo engraçadinha o suficiente para preencher os vazios das extensas imagens da casa de Cíntia. Do mesmo modo, no supermercado, tomates e a ala de frios torna-se matéria-prima para que o tesão se materialize no próximo corredor.

Tudo retorna, então, à afirmação Ame ou dê Vexame. Pois são justamente esses filmes que dão espaço ao banal para se tornar exagero, às vontades para se mostrarem efêmeras, ao humor e ao formato para se sobressaírem. Onde um tênis vira moeda de troca, um filme pode se chamar Americana, e um simples áudio de feliz aniversário termina em gozo.

O incômodo do som da batida no aquário sobre Amarela, de André Hayato Saito

por Maria Silveira

Em 12 de julho de 1998, os olhos do país estavam voltados para a final da Copa do Mundo entre Brasil e França. Palpites nas ruas rolavam entre uma conversa e outra, fogos de artifício estouravam, vozes da torcida ecoavam pela cidade. A expectativa era grande para o país do futebol. E é a partir desse contexto de resgate de um resultado amargo da nossa memória coletiva em que ocorrem os desdobramentos de “Amarela”.

O curta do nipo-brasileiro André Hayato Saito, que assina o roteiro e direção, percorreu por pelo menos 35 países, incluindo o prestigiado Festival de Cannes na mostra de curtas em 2024, até chegar na sua estreia paulistana no 36º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, quase 100 anos depois do primeiro filme japonês ser exibido no estado. Um longo caminho até os dias de hoje, em que podemos propor diálogos sobre a experiência amarela brasileira.

Assim como muitos torcedores, Erika Oguihara, personagem da estreante Melissa Uehara, aguardava ansiosamente o resultado da partida final nos dias que precediam o evento, ao contrário de seus pais que entendiam o “feriado nacional” da Copa como mais uma desculpa para não trabalhar. Entendemos também que as raízes se misturam quando ouvimos o português e o japonês, e vemos louças duralex âmbar (tipicamente encontrado em muitas casas brasileiras) e uma arrozeira elétrica (tradicionalmente usadas em casas asiáticas), por exemplo, como elementos simbólicos da direção de arte.

À noite, já na cama, Erika pega uma lanterna e ilumina os objetos da casa passeando pelos pôsteres espalhados na parede do quarto escuro. Enquanto observa as fotos da seleção, ela sussurra um Pai Nosso e imagina a vinda de um possível pentacampeonato. Um convite para entendermos um pouco do fluxo de consciência da personagem, que tenta encontrar uma espécie de pertencimento dentro da sua própria nacionalidade.

A Copa é desenhada por meio de conversas sobre jogadores que participaram na final, pôsteres e camisetas antigas, bem como o som da partida na TV – uma conexão temporal justa do diretor tendo em vista a importância em retratar as microagressões sofridas por Erika através de enquadramentos fechados e focados nas reações da jovem. O ápice emocional ao final de “Amarela” em que ela chora em silêncio nos faz refletir sobre a dor e o desgaste que atravessa a vida dessas famílias brasileiras marginalizadas.

República Dissolvida em Tela sobre República, de Grace Passô

por Ana Peixe

Um olhar que muda conforme a luminosidade informa o rosto. A mudança que percorre um corpo que acorda de um sonho, de uma mensagem xamânica. Sombra e luz em um rosto urgente em dizer. Dizer o que ninguém parece ter coragem ou vontade de verbalizar. O Brasil é um sonho. Tudo é um sonho. E a qualquer momento alguém vai acordar. O estranhamento de acordar ou de se perceber em um lugar que não existe ou que não deveria existir. A diegese ganha outra forma, perde o foco: o diafragma muito aberto oblitera a ilusão do filme ao passo que desmanchar a ficção a insere numa dobra em si mesma.

Grace Passô é crua, ativa, implacável. Desenha a paisagem de um Brasil aterrorizado, oprimido e brutalizado. Utopia, distopia, essa esquina o filme já virou. O Brasil está na corda bamba: catástrofe sanitária e colapso socioambiental do outro lado da linha, mas que grita no térreo de sua rua. 

“O seu Brasil acabou, e o meu nunca existiu!”. O estado de choque permanece em todos os rostos. Grace, Anastácia, a mãe, qualquer rosto da televisão. A rua está na sala, a sala virou rua: é voz, fogo, entidade. É seu rosto que está olhando de volta. Olhos firmes, marejados,  assemelham-se ao rosto de quem se olha. Uma violência salta da tela: um limite rompido entre realidade e representação, densidade e duração. 

Quem ousa sonhar um Brasil do jeito que ele é?

Subjetividade periférica em imagens: um retrato geracional sobre Rolês, de Nathalia Cristina, Matheus Alcântara, Fernanda Lima e Madson Pomponet

por Aline Fátima

O curta dirigido por Nathalia Cristina, Matheus Alcântara, Fernanda Lima e Madson Pomponet, produzido no âmbito das Oficinas Kinoforum, apresenta um retrato potente das expressões culturais da periferia paulistana, tendo como fio condutor as trajetórias de Ricardo Paiva, DJ e educador, e Felipe Cesar, pintor e pixador. Ao colocar em evidência o funk e a pixação, o filme reivindica a legitimidade dessas linguagens como manifestações artísticas de grande impacto e relevância, reconhecendo-as como atos de resistência frente à marginalização histórica que atravessa a vida de jovens negros e periféricos.

A estética construída pelos realizadores é marcada pela proximidade com o videoclipe e pelas referências às redes sociais, dispositivos fundamentais para a circulação de imagens e sons na contemporaneidade. Entre planos da zona sul de São Paulo, registros do metrô e cenas do cotidiano, o filme compõe um mosaico que explicita como o espaço urbano se torna suporte e palco da criação periférica. A direção de fotografia de Fernanda Lima e a direção de arte de Nathalia Cristina conferem densidade visual às falas dos personagens, por meio de intervenções e efeitos visuais em diálogo com os cenários e paisagens do território, equilibrando a força documental com uma dimensão estética que potencializa as narrativas.

Felipe, ao narrar sua vida dividida entre a pintura de muros e a pixação, evoca o percurso de outros artistas como Link Museu, que atravessaram o território da marginalidade até serem incorporados pelo circuito institucional das artes. A comparação revela a dimensão estrutural das barreiras enfrentadas: poucos, como Link, conseguem “furar a bolha” e alcançar o mercado formal, evidenciando o quanto o racismo e a desigualdade limitam a circulação de corpos negros. Já Ricardo Paiva destaca-se pela clareza com que articula o funk como expressão de uma “subjetividade periférica”, conceito trabalhado por Tiarajú Pablo. Seu discurso histórico e político dimensiona o funk não apenas como música, mas como prática de afirmação identitária e de enfrentamento às violências simbólicas que recaem sobre a periferia.

Assim, o filme se inscreve como documento geracional. Os personagens, hoje na casa dos 30 anos, cresceram nos anos 1990 experimentando a rua não apenas como espaço de lazer, mas como território ético, estético e político. Ao trazer suas vozes, o curta desloca estigmas e produz imagens necessárias sobre a diversidade periférica. O fato de ser realizado no contexto do projeto KinoAção, em parceria com Ibiralab e Academia Carolinas, amplia ainda mais seu alcance: trata-se de cinema produzido por corpos periféricos, em diálogo com seus próprios territórios. Nesse sentido, o curta não é apenas sobre os rolês, mas é, ele mesmo, um rolê audiovisual de resistência, que reivindica o direito à memória, à arte e à narrativa.

Diretoras mulheres e suas histórias de meninas sobre  Minha mãe é uma vaca e Akababuru: Expressão de Espanto

por Tainá Bezerril

Em parceria com o Sesc Digital, o 36º Kinoforum selecionou 11 filmes para estarem disponíveis na plataforma, com produções das mostras nacionais e internacionais, facilitando dessa forma o acesso daqueles que não podem estar presencialmente no festival. Neste formato digital, é possível fazer conexões entre aqueles que nas mostras não estariam tão próximos, e é assim que Minha mãe é uma vaca (2024), de Moara Passoni e Akababuru: Expressão de Espanto (2025) de Irati Dojura, se ligam lindamente. 

Crescer não é fácil, muitos sentimentos são descobertos durante esse processo, mas por outro lado, aprendemos a lidar e a enfrentar cada um deles aos poucos. Com essa premissa, Moara Passoni, diretora brasileira, e Irati Dojura, diretora colombiana e indígena, voltam seus olhares para a infância e a pré-adolescência de meninas para contarem suas histórias. Nelas as protagonistas enfrentam situações que as perturbam, encarando de frente essas questões, com muita coragem, porém de formas opostas. 

Em Minha mãe é uma vaca (2024), acompanhamos Mia, uma menina de 12 anos que está passando um tempo com sua tia, e morando temporariamente em uma fazenda na orla do Pantanal. Apesar dos numerosos passatempos e pessoas ao seu redor, ela não consegue se distrair, pois algo a atormenta: sua mãe, que pode estar em apuros, pedindo durante todo o filme que Deus a proteja. Todavia, Mia acaba criando uma conexão inesperada com uma vaca, passando por um momento de fortes emoções juntas.

O curta, traz uma atmosfera tensa, fazendo nós os espectadores sentirem a ansiedade de Mia em relação a incerteza da sua mãe. Além disso, o filme tem um belíssimo ambiente cenográfico, aproveitando os elementos externos da fazenda como: rios, cercados, árvores, e entre outros, acompanhados de uma fotografia sofisticada que sabe trabalhar com a sombra e a temperatura das cores em favor da narrativa, criando um clima tenso e fantástico, com seu ápice na cena final. 

Já em Akababuru: Expressão de Espanto (2025), Kari uma menina da etnia Emberá Chamí, após um momento de medo se esbarra com Kera, que lhe conta uma nova versão da lenda de Kiraparamia, na interpretação original, a mulher foi punida pelos deuses por rir de seu marido, porém na sua versão, seu riso a libertou. 

O curta indígena e colombiano, se destaca primeiramente pela linguagem: ele é todo falado na língua ameríndia Chamí. Acrescido do resgate das lendas, representa e apresenta aos espectadores a importância da preservação da memória de um povo. Outro ponto alto, é a animação em stop motion, em tempos em que cada vez mais largamos meios de construções manuais e migramos para o digital, essa técnica tem sido uma preciosidade cinematográfica, e, junto aos materiais usados, como papel e miçangas, fazem tudo ficar mais bonito e especial. 

Ambos são filmes potentes, tratam do sentimento de meninas de forma sensível e empática, sem julgamentos ou imposições, e encorajam toda mulher ou menina a enfrentar seus problemas de frente, gritando ou rindo.