A Mensagem Através da Estética sobre Ouça-a com seus Olhos, dirigido por Ting Chi-Wen

Por Thiago Barboza

Uma viagem atribulada entre Rio e São Paulo me trouxe a oportunidade de viajar para bem mais longe em menos tempo. Ouça-a com seus Olhos faz parte da mostra de curtas Taiwan – A Geração Pós-90, com o intuito mostrar a visão e os anseios desses novos realizadores pós-década de 90.

É importante entender a razão deste “Pós-90” ser destaque para a mostra de Taiwan. Durante a última década do século 20, a província testemunhou um movimento cinematográfico conhecido como a “Nouvelle Vague de Taiwan”. Este movimento se utiliza do termo em francês que significa “Nova Onda”, em referência ao cinema francês da década de 60. 

A Nouvelle Vague original e a de Taiwan possuem similaridades, principalmente na proposta de alterar a forma de se pensar o cinema produzido na região, trazendo identidade própria ao movimento. A realização taiwanesa foi fundamental para expressar as características e identidades de seus realizadores e da região, buscando fugir da hegemonia de um cinema chinês mais tradicional. Ele influenciou não só os filmes da época, como também alguns mais atuais.

Um dos filmes apresentados é Ouça-a com seus Olhos. A produção de 2023, dirigida por Ting Chi-Wen, bebe da fonte de seus antecessores, como Tsai Ming-Liang e Hou Hsiao-Hsien. Mesmo com pontos em comum como as tomadas longas e grande uso de cenas externas, a produção ainda assim traz atualidade em sua linguagem. Destaca-se a edição do curta, muitas vezes acelerada na pós-produção, com o intuito de traçar um paralelo entre a velocidade da sociedade contemporânea e a necessidade de debater o ponto principal do filme: em sua trama, acompanhamos um grupo de mulheres que buscam lidar com uma questão, infelizmente, cada vez mais comum em nossa sociedade: o assédio.

Tanto a Nouvelle Vague de Taiwan como o movimento pós-90 tem em seu âmago a crítica social, mudando apenas as formas de abordagem. A abordagem do curta vem de seu roteiro, com humor ácido e diálogos que parecem sair do dia-a-dia, assim adicionando um tom pertinente ao curta. Ainda que o roteiro dê momentos de humor para as personagens, o tom sério da abordagem temática não desvia o filme do acerto.

A obra também utiliza de uma linguagem visual híbrida, com planos bastante longos e abertos. Seja em cenários fechados como um escritório ou um parque, a escolha desses planos mais duradouros faz com que o espectador se sinta parte da história, quase como um observador dentro de cena. Com a câmera estática, o filme às vezes evoca a linguagem do teatro em sua direção de atores e reforça o papel de quem assiste como observador.

Na equação dessas ferramentas, o resultado é convidativo. O espectador é convidado a fazer parte da realidade taiwanesa, imerso entre paisagens vibrantes, diálogos frenéticos e questões contemporâneas.

Ouça-a com seus Olhos já nos traz a dica em seu título. À medida em que vamos desvendando suas escolhas criativas, o curta se torna uma reflexão pertinente sobre um tema universal, utilizando do cenário e da realidade da sociedade taiwanesa. Um recorte geográfico específico, mas que reverbera para todos que têm a sorte de assistir a este olhar, através da lupa de Ting Chi-Wen.

Biografia: Thiago Barboza, carioca de 29 anos, é estudante de cinema. Desde os meus quinze anos escrevo sobre filmes, e de um tempo para cá tomei a decisão de tornar meu hobby em algo mais sério. Entusiasta do cinema oriental com foco na China e Taiwan, este apaixonado por gostar de filmes tenta instigar seu leitor a enxergar o lado positivo do cinema.

Aquilo que constrói a protagonista sobre La Asistente, dirigido por Pierre Llanos 

Por Thamires Uchoa (Marginalia)

De que são feitos os personagens? De traumas, objetivos, querer e precisar? Qual é a essência de um personagem? Nas primeiras cenas de La Asistente (2024), o diretor e roteirista Pierre Llanos apresenta uma personagem que aparenta ser uma pessoa comum. Clara, interpretada por Lllari Pérez, é uma menina de 13 anos trabalhando como assistente na clínica informal de odontologia de seu pai. Em meio ao caos da cozinha de um restaurante peruano-chinês no horário de pico, conhecemos Clara. O breve diálogo entre os personagens nos mostra mais características: ela parece não se intimidar com o mundo ao seu redor. Em seguida, vemos o catalisador da narrativa, onde a protagonista é tirada do seu mundo comum. A paciente sem horário marcado, Antonia, está ali diante dela, pedindo informação. Não é sobre extração de dente e, sim, sobre o que o filme trata: a procura por um aborto clandestino. 

Clara tem a responsabilidade de marcar consultas, corrigir erros gramaticais do pai e organizar os instrumentos de trabalho. Só que não é nessa rotina que ocorre a sua evolução. Podemos pensar que trabalhar desde cedo pode ser transformador, mas não é o trabalho que transforma, e sim as condições impostas. Nesta história, a condição era a jovem de 20 anos, que estava preste a realizar um aborto. Os caminhos das duas não serão mais os mesmos, especialmente o de Clara. 

Poderíamos focar na temática do aborto, na condição da clandestinidade que muitas mulheres enfrentam. Mas a narrativa nos mostra a dimensão do aborto não pela perspectiva da paciente, mas sim pela de uma menina assistente. O que nos leva a pensar: em que momento a sociedade nos ensina as condições de ser mulher? 

A sua curiosidade e insistência em permanecer no consultório, mesmo com o seu pai pedindo para sair, foi o momento mais lúcido sobre a sua transição para uma nova perspectiva. Clara poderia se recusar a auxiliar diante do momento de complicação da operação, mas continuou — afinal, ela era assistente. E, ali, tentando ser rápida, por conta da urgência da situação, ela tenta extrair o porquê disso. Esse é o risco de ser mulher? A paciente carrega essa simbologia do mundo externo. Este lugar em que eu e você vivemos, o mundo em que levamos mulheres a sangrar, muitas das vezes até a morte, na clandestinidade.

O roteiro do curta-metragem chama atenção pela abordagem de não tornar o aborto um plot twist para trama, já explicitando desde o início o que vai ocorrer ao longo da narrativa. O que gera espaço para explorar a perspectiva de Clara diante desta situação. A fotografia compõe esse ponto de vista, posicionada sempre para acompanhar a protagonista. Ela nos indica o lugar para onde se deve olhar — para Clara. Os espectadores são guiados por uma direção sutil e respeitosa, que utiliza, sem qualquer dificuldade, a linguagem do drama. 

Com o peso de carregar o saco de lixo ao seu destino no ato final do filme, notamos que o barulho que antes habitava a cozinha agora está dentro de Clara. A sua inocência foi rompida. O escritor Kurt Vonnegut diz para fazer coisas terríveis com os personagens inocentes, para que os outros possam ver do que eles são feitos. Ao final do curta, me questiono. Este é o mundo que lhe espera? Amanhã terá outra paciente? Conseguimos sentir as emoções de Clara. Toda essa situação é maior do que ela pode imaginar. Mas essa urgência está na imensidão externa, para ela não é o momento de pensar nisso, mesmo que tente, pois o próximo paciente já está à espera. 

Biografia: Thamires Uchoa, conhecida como Marginalia, é Assistente de Roteiro e Desenvolvimento e Roteirista iniciante. Começou a sua carreira como fotógrafa do movimento Hip Hop e trabalhou como assistente de direção em séries brasileiras e publicidades. Atualmente, dedica a sua carreira às narrativas ficcionais e documentais. Escreveu e dirigiu os curtas-metragens “Daria um filme” (2018) e “Aos olhos de uma criança” (2020). Recentemente, desenvolveu uma série documental que aborda o tema da escravidão. 

O Cinema que Não Agoniza sobre Este Cinema tão Augusta, dirigido por Fábio Rogério

Por Renan Galcci

A sala de cinema é um espaço de encontros e parte essencial da experiência cinematográfica. Os cinemas de rua, com suas curadorias especiais pensadas fora do circuito comercial e por um espaço único, direcionado à sua própria atividade, são também possibilidades de se pensar o cinema e estimular nosso amor pelos filmes. Assim como o cinema vem se transformando desde sua criação, os cinemas de rua também se reinventam e lutam pelo direito de pertencimento na cidade.

Este Cinema tão Augusta nos convida a passar pelo último dia de funcionamento do anexo do antigo Espaço Itaú de Cinema (atual Espaço Augusta de Cinema), após uma longa batalha entre o espaço de exibição e a construtora Vila 11, dona do imóvel, que pretendia construir um prédio no local. A perspectiva do diretor Fábio Rogério é de mostrar o cinema como um espaço importante para o desenvolvimento cultural do centro de São Paulo, e evidenciar a importância do cinema de rua como parte da preservação do audiovisual brasileiro. 

A referência ao curta Esta rua tão Augusta (1968, Carlos Reichenbach), não se limita apenas ao título do filme; ela também se manifesta na perspectiva participativa do diretor em cada decisão artística. A ironia está presente na história do centro de São Paulo, caracterizada por suas inúmeras transformações, incluindo a especulação imobiliária, uma ameaça constante. A narrativa é estruturada a partir de entrevistas e imagens do último dia de funcionamento do local. O espaço de exibição divide o protagonismo da narrativa com alguns de seus funcionários, que compartilham histórias de dedicação ao espaço, e a escolha dos planos é pensada justamente para fazer essa conexão. Essas escolhas permitem um olhar íntimo para essa tentativa de apagamento, e a resistência surge exatamente dessa sensação de insegurança e da importância da preservação da memória do espaço.

A experiência torna-se ainda mais valiosa por sua exibição no atual Espaço Augusta de Cinema, durante a 35ª edição do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, após esse momento de incerteza retratado no curta. O filme foi apresentado na mostra “Fina Flor Marginália” que, assim como sugere o nome, celebra a arte independente nacional. Com uma sessão lotada, o espírito da força audiovisual brasileira se fez presente.

Biografia: Renan Galcci é  estudante de Produção Audiovisual e apaixonado pelo cinema. Ele acredita na arte como uma maneira de expressar seu interior através das imagens e sons. Desenvolve seu lado artístico entre a escrita de roteiros e direção, e pesquisa sobre cinema.

Imagens que recuperam a identidade sobre FLUXO – O filme dirigido por Filipe Barbosa

Por Nathália Ract da Silva

 Fluxo – o Filme começa com uma paisagem vista de cima dos prédios de habitação popular localizados na Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, distrito conhecido como o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina. Dirigido por Filipe Barbosa, o  filme conta a história de Fábio, jovem negro de 22 anos, e resgata suas memórias entre os amigos Joel e Gabriel, que se conhecem desde a época da escola. É dia de baile da Sorte! São quase seis horas e Fábio está em seu quarto, deitado na cama, fumando cigarro. Na mesa de cabeceira está o cinzeiro e um porta-retrato que preserva uma fotografia com sua ex-namorada. 

Depois de ser convocado pelos amigos, Fábio se arruma para ir ao baile da Sorte: abre o guarda-roupa e veste sua camisa da Lacoste, estampada com a bandeira da África do Sul. No filme, a moda periférica é um tema importante, que valoriza a cena dos bailes funks enquanto referência de estilo, mesclando peças de roupa atuais e também peças antigas, que marcaram época. 

No caminho para o baile, Fábio enfrenta uma série de desafios que o levam a confrontar seus sentimentos após o término do relacionamento amoroso. A música assume papel fundamental, e  o som aumenta progressivamente no momento em que eles chegam no fluxo. Na tela, algumas fotografias captadas são sobrepostas aos efeitos visuais glitches e aos efeitos sonoros da música “Brota na Tiradentes” do Mc MN do DJ Biel Mix. Na sala do CineSesc, recebemos o som não somente com os ouvidos, mas com o corpo inteiro, no momento em que “É o fluxo” começa a tocar — música que carrega o nome e a presença especial do Mc Nego Blue na obra audiovisual. 

No filme, a dança é um recurso narrativo e expressivo da juventude. O filme nos lembra dos passinhos que marcaram o movimento funk e dominavam as batalhas de dança que aconteciam no horário do intervalo da escola — momento em que os estudantes formavam uma roda e dançavam livremente, muitas vezes sem música, apenas com os gritos e as palmas das mãos dos jovens reunidos. A câmera acompanha os movimentos e escolhe enquadrar  os pés em destaque, o que parece convidar o corpo do espectador para dentro da batalha de dança.  

Durante o baile, quando Fábio finalmente consegue ‘apaziguar a mente’, curtir a presença dos amigos e se aproximar de Daniele (uma garota da época da escola na qual está interessado), somos interrompidos com cenas de violência e terror. 

O filme conduz o espectador a um olhar crítico, a partir de imagens de arquivo que foram registradas no mês de Dezembro de 2019 em Paraisópolis, na periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo. Somos impactados por imagens de uma câmera de celular que registra a intervenção da Polícia Militar no baile funk, ação que provocou a morte de nove jovens, dentre outros feridos. O caso ficou conhecido como o “Massacre de Paraisópolis”, e é considerado a mais letal intervenção policial na  cidade de São Paulo, segundo relatório do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Barbosa denuncia a violência policial contra os bailes funks e compartilha com o espectador uma homenagem aos familiares dos jovens Mateus dos Santos, Bruno Gabriel dos Santos, Luara Victoria, Marcos Paulo, Eduardo Silva, Denys Henrique Quirino, Dennys Guilherme dos Santos, Gustavo Xavier e Gabriel Rogério, mortos durante o massacre. 

Após a exibição do filme na Mostra Brasil intitulada “Somos Embarcação”, do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o diretor conta que existiam poucos registros que tornassem possível retratar o baile funk e oferecer essa visibilidade negada historicamente. Fluxo – O filme é um espaço de disputa de narrativa a favor da cultura e memória do funk. Ao relacionar a imagem e o movimento funk à construção da identidade, Filipe Barbosa demonstra a importância que as imagens têm para a visibilidade da juventude negra e periférica.

Não foi possível estrear o filme no território que foi produzido, conforme conta o diretor. A equipe planejou o lançamento oficial do filme no dia 21 de abril de 2024, dia do aniversário da Cidade Tiradentes, para que seus habitantes pudessem assistir. No entanto, a exibição foi impedida pela Polícia Militar. A instituição acusou a equipe do filme da intenção de vender armas e drogas, e interrompeu o evento. A acusação foi espalhada, inclusive, no programa do Cidade Alerta e do Brasil Urgente. “Era só uma exibição do filme”, Filipe conta, expondo como mesmo quando a quebrada busca se apresentar por meio do cinema, atravessa a mesma questão de violência que procura denunciar.  

Biografia: Nathália Ract da Silva (Nara) é moradora da Zona Norte de São Paulo. Possui graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (2022). Atua como pesquisadora, roteirista e fotógrafa. Em 2019, produziu o documentário Chile de Olhos bem abertos via Lei Aldir Blanc/São Paulo. Seu primeiro roteiro de curta-metragem, Água Bonita de Maíra (2023), foi selecionado no programa Meu Olhar – Filmes curtos feitos pela Juventude Periférica de São Paulo. 

As palavras valem um escrito sobre Uma Promessa Para o Mar de Hend Sohail

por Michele Nadima

Quão longe estamos dispostos a ir para honrar as nossas palavras? Uma promessa para o mar nos leva diretamente a esse questionamento e mostra como cada jornada é singular e tem o seu próprio peso. 

Acompanhamos o protagonista do curta em uma missão que pode ser a mais importante de sua vida. A sinopse é sem rodeios: durante os preparativos do funeral de sua mãe, o jovem Zayn decide roubar o seu corpo. O que em um primeiro olhar pode soar estranho, percebemos ir além de um sequestro. É uma história introspectiva, que carrega as suas complexidades, mas que é apresentada de maneira sútil. Com seus encontros e desencontros, serve de reflexão sobre como fechamos o ciclo quando uma pessoa querida se vai. É uma trama envolta em detalhes que dizem muito sobre a jornada de Zayn e seu único companheiro – um cachorro caramelo que habita as cidades do Egito, que por um acaso é encontrado pelo caminho e acompanha o garoto até o fim.

Seguimos estrada afora com eles em uma caminhonete vermelha e percebemos que o plano de roubar o corpo da mãe, na verdade, é uma medida que busca ser sagrada. Zayn quer levar o corpo de sua mãe ao encontro do mar. E a ingenuidade do garoto é tocante, porque mesmo com a morte da mãe, ele ainda quer ter a chance de realizar seu desejo. Não é por acaso que podemos ver cartões-postais com imagens das pirâmides, girassóis e praias coladas timidamente na parede do quarto onde a mãe está sendo velada.

Na cultura árabe, o pedido das mães é sagrado e é este objetivo que o rapaz carrega, sem se distanciar do seu propósito. Como se fosse a última coisa que ele deve fazer em sua vida.

Em dado momento do filme, podemos ouvir a música Mawoud, na voz de Abdel Halim Hafez – um dos cantores mais populares dos anos 50 e 60 no Egito. Mawoud, em árabe, significa “prometido”, e na cena da loja de conveniências ouvimos o trecho que aborda “o caminho que ali está seguindo e onde vai dar”. É uma escolha muito bem feita da diretora Hend Sohail, que confirmou, após a sessão no Festival Kinoforum, o peso exercido pela música. Ela reforça que o propósito de Zayn é emocional, e nesse momento passamos a torcer por ele.

O filme carrega uma dualidade entre o objetivo de Zayn e as pessoas com quem nos deparamos no caminho, ao longo de nossas vidas. Não é à toa que o cachorro surge por meio de um desses encontros e o segue rumo ao oceano. Seja para o bem ou para o mal, o que está no nosso propósito não se desvia. Zayn se depara com assaltantes que, ao perceberem que ele carrega a sua mãe, recuam e dão passagem à sua jornada. A forma como o filme constrói o laço entre espectador e protagonista é divina, pois o enredo nos tira de um lugar estranho, para posteriormente nos cativar, à medida em que acompanhamos o garoto nas estradas da pequena cidade de Minya. 

Ao final, o cenário conclui o filme de forma sublime: Zayn contempla o mar ao lado do caixão e seu cachorro e a promessa é revelada em um cartão-postal que o jovem deu à mãe. Zayn finalmente fecha o ciclo do luto por sua mãe, cumprindo uma promessa antiga. Isso dialoga com o público quando olhamos para os nossos laços, tradições e promessas e refletimos sobre em que medida estamos dispostos a ir a fundo para realizá-las.

Certamente, essa é a grande sacada do curta, pois em uma mostra sobre histórias líquidas, na qual os filmes tratam da fluidez da vida, Uma promessa para o mar rouba a cena com uma história tocante e com tamanha força cultural. O filme nos convida a contemplar costumes e tradições que destoam da nossa realidade. As promessas foram feitas para serem cumpridas e Zayn vai até o fim sem muito contestar.

Biografia: Michele Nadima é roteirista, documentarista e produtora audiovisual. Bacharel em Rádio, Televisão e Internet, vem atuando no audiovisual desde 2013 em projetos publicitários e independentes, com o olhar apurado em diversas vertentes artísticas. Dirigiu o documentário Raízes, que fala sobre a produção do curta-metragem Brêu (2024) e os moradores locais da cidade de Lagoa Formosa – MG.

O Telhado da Elite sobre Dependências, de Luisa Arraes

Por Menato Relo

O curta-metragem Dependências (2023, de Luisa Arraes) é uma sátira bem-humorada que conta a história de uma família abastada de classe alta, com gosto brega, composta por uma mãe e seus dois filhos. Prestes a receber em sua casa colegas do escritório, incluindo o  novo presidente da empresa, em um jantar em que pretende reforçar sua candidatura à vice-presidência, tudo foge ao controle com a inesperada ausência de Dadá, a empregada da casa.

Na falta de conhecimentos básicos de sobrevivência, a narrativa se desenrola em meio à histeria dos personagens. A direção de atores é rica, teatral e altamente performática, com expressões exageradas que, no entanto, não provocam distanciamento do espectador, pois estão perfeitamente situadas no contexto da comédia do absurdo. A fotografia, assim como a direção de arte, é notavelmente bem construída, com uso em algumas cenas de luz natural e planos cuidadosamente elaborados, além de movimentações de câmera que acrescentam dinamismo à narrativa. A escolha de objetos na cena, como o quadro Colheita de Djanira da Motta e Silva, enriquece a mise-en-scène, acrescentando camadas de significado visual que complementam a atmosfera do filme, e resulta em uma experiência cinematográfica visualmente rica e com uma narrativa envolvente. Embora tenha uma proposta simples em sua execução, o filme é visivelmente bem estruturado.

A história diverte ao explorar a mediocridade dos personagens financeiramente privilegiados, cumprindo seu papel de crítica social, ao mesmo tempo em que mantém o público cativado do início ao fim da narrativa. Um dos momentos mais significativos em relação à ausência da empregada é quando a filha entra no quarto de Dadá e observa desenhos e fotos suas e do irmão colados na parede. A cena em que a filha se deita na cama, como um bebê à espera de consolo, revela muito sobre a dinâmica da família e sobre a importância da personagem ausente.

Trata-se de um filme tecnicamente refinado, e pensado com cuidado em sua execução, com uma construção sólida e rostos familiares, de modo que parece feito para ser um sucesso. O último quadro do filme é uma poesia pichada no muro, de autoria do dramaturgo Bertolt Brecht: “Perguntas de um trabalhador que lê; Em cada página, uma vitória, mas quem preparava o banquete? Tantas histórias, tantas questões”. Embora a escolha da frase seja quase perfeita ao contexto do filme, ao optar por uma referência estrangeira, o filme parece cair na armadilha de subestimar as vozes locais, que são igualmente, senão mais, capazes de capturar as complexidades e contradições do contexto nacional. Essa escolha, ainda que coerente dentro da proposta da obra, deixa uma sensação de que algo essencial foi deixado de lado, perdendo a oportunidade de se conectar de forma mais profunda com o público brasileiro.

Biografia: Menato, cineasta e multi-artista nascido e criado na periferia de São Paulo, descobriu sua paixão pelo audiovisual em 2013. Com uma formação robusta que abrange animação, fotografia e especializações em pós-produção, ele tem deixado sua marca em projetos significativos como a série “AFRONTA!” e os documentários “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo” e “Motriz Roda de Afeto”. Atualmente, Menato atua na indústria audiovisual e publicitária, colaborando com marcas e projetos de prestígio, sempre com um olhar atento à representatividade e um compromisso inabalável com a qualidade.

Delicadeza Intimista sobre Vento Dourado, dirigido por André Saito

por Mel Emiliano

Os desafios da senilidade e a intimidade nas relações de um indivíduo que se encontra no limiar entre a vida e a morte são temas retratados no curta metragem Vento Dourado (2023). Dirigido por André Saito e produzido pela MyMama Entertainment, o filme é uma docuficção que revela a vida de Haruko Hirata, avó materna do diretor, e a sua relação com Sumiko, sua filha.

André Saito é um diretor e produtor nipo-brasileiro que tem buscado explorar sua ascendência japonesa. Saito encontrou no cinema uma forma de retratar suas descobertas, e realizou uma trilogia de curtas-metragens que conta com as obras De Coração a Coração (2022), Vento Dourado (2023) e Amarela (2024). Esses filmes, apesar de contarem histórias distintas, retratam relações interpessoais de pessoas de ascendência asiática vivendo no Brasil. O cineasta esteve recentemente no Festival de Cannes com seu último trabalho Amarela, onde afirmou estar contente por representar o Brasil e também feliz por ser um filme realizado majoritariamente por pessoas de origem asiática.

Vento Dourado é ambientado em volta do caseiro cotidiano de Haruko e Sumiko – mãe e filha que, apesar de viverem no Brasil, ainda possuem fortes laços com a cultura do país de origem. Sumiko é responsável por todas as tarefas domésticas, desde se encarregar pelos cuidados de Haruko até realizar funções para prover o alimento da família. Ao decorrer do curta, as personagens revivem fantasmas de seus passados, principalmente após a descoberta de que Haruko não tem muito tempo de vida.

O curta-metragem utiliza planos longos e delicados como forma de aproximação do espectador, fator que evidencia a fragilidade da família em um momento tão decisivo. Vento dourado cria um espaço de intimidade entre filme e público que é capaz de emocionar toda uma sala de cinema.

O filme é uma rara representação da cultura nipo-brasileira dentro do cinema nacional. É importante pontuar a força da ancestralidade japonesa presente nas personagens, que se evidencia principalmente no idioma e costumes dessas. Entretanto, Sumiko e Haruko não deixam de lado a brasilidade presente no seu dia a dia, visto que, na maior parte do curta, seus diálogos mesclam a língua japonesa com o português abrasileirado.

Assistir a Vento Dourado é como ser consolado diante de uma situação difícil. Apesar de propor um tema desconfortável e melancólico, o filme não se prende somente aos seus momentos tristes. Mesmo cientes da condição da avó, a família decide sair de casa e eles aproveitam uma tarde em conjunto, criando novas memórias com Haruko.

A leveza do filme revela uma vontade única do cineasta de registrar a vida ou, por outra, o fim da vida de alguém. Essa vontade fez com que André Saito criasse um documento cinematográfico íntimo sobre sua avó e sua ancestralidade, que é tocante do início ao fim, além de ser uma grande homenagem a Haruko Hirata — que veio a falecer pouco tempo depois da gravação da obra.

Biografia: Mel Emiliano tem 20 anos e é uma amante de filmes de longa data. Atualmente está cursando o segundo semestre do curso de Cinema na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), onde desenvolveu apego pela criação de filmes, curadoria e críticas de cinema.

2 Brasis com Z sobre 2 Brasis, dirigido por Carol Aó e Helder Fruteira

Por Lourenço Brito

“A Invenção do Brasil” é a frase que nomeia a Mostra Brasil 8, da 35ª edição do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo. Os filmes presentes nessa sessão dialogam sobre a formação histórica do Brasil e sobre como um passado cheio de injustiças nos leva a um presente coberto de mediocridades. Para encerrar essa mostra, a curadoria optou pelo curta-metragem 2 Brasis, de Carol Aó e Helder Fruteira.

A narrativa se passa em um mundo distópico no qual o Brasil, refém de disputas ideológicas e culturais entre suas próprias regiões, é dividido em dois: o Brasil do Norte e o Brasil do Sul. Em meio a essa divisão, a revolucionária Estrela (Thainá Duarte) precisa atravessar a rígida fronteira para continuar sua luta em prol da unificação dos dois países.

O filme inicia com uma montagem dinâmica que alterna entre notícias de jornal ficcionais, vídeos ao estilo found footage e imagens com efeitos tecnológicos exagerados, que remetem às características introduções de séries policiais americanas. Através dessa montagem que vai direto ao ponto, o espectador é inserido no contexto desse mundo distópico.

Em seguida, somos apresentados às locações em que a ação irá ocorrer, espaços distópicos criados de forma esplêndida em termos de sua caracterização artística. O sinistro posto de fronteira, o simples e animado boteco localizado no Brasil do Norte e a extensa muralha, criada artificialmente na pós-produção, são perfeitos. Perfeitos até demais.

Em 2 Brasis, tudo parece artificial. O cuidado por um aperfeiçoamento estético e a vontade de impressionar o espectador, por meio de uma produção de “alta qualidade”, afasta a oportunidade de um maior aprofundamento narrativo. Isso também compromete a conexão do público com a trama, algo essencial ao colocar a prova um conflito já conhecido no contexto nacional. Esses dois Brasis se tornam distantes: um país qualquer, estrangeiro, de forma que seu conflito já não tem nada a ver com o conflito político, cultural e regional brasileiro, que presenciamos tão fortemente durante as eleições de 2022, na polarização entre um norte majoritariamente lulista e um sul majoritariamente bolsonarista. 

Toda gama narrativa é afetada por essa escolha. Os personagens se tornam caricaturas de arquétipos hollywoodianos, rasos e desinteressantes. Estrela, personagem cujas ações levam o filme para frente, fica em segundo plano na maior parte do tempo, e só recebe seu devido protagonismo no final, trazendo uma mensagem sobre unificação e união dos povos dos dois Brasis — fala que, apesar de emocionante e bela, se torna supérflua ao dizer o óbvio.

Como é possível discutir uma questão essencialmente brasileira se, mesmo através da arte, procuramos fugir para a linguagem de um outro país? Nesse sentido, 2 Brasis apresenta uma temática interessante e um enorme potencial narrativo, mas se perde em sua insistência de tentar ser um filme de Hollywood.

Biografia: Lourenço Brito é estudante de cinema na Fundação Armando Álvares Penteado, onde já participou da produção de dezenas de curtas-metragens passando pelas mais diversas áreas. É apaixonado por cinema e cultura desde criança, tendo sido durante 2020 e 2021, redator e gerente do Cineclube Viva.

A intensidade como linguagem do cansaço sobre Zagêro, dirigido por Márcio Picoli e Victor Di Marco

por Giuli Gobbato

Quem conta a nossa história, se não pudermos nós mesmos? Também na primeira pessoa, assim começa o filme Zagêro (2024), que conta a história de Ian — ou melhor, ele conta sua própria história. Como a maioria das pessoas com deficiência (PCDs) antes dele, também foi internado numa clínica psiquiátrica pela própria família. Filho híbrido de autobiografia e mockumentary (sátira documental), o curta é protagonizado por Victor Di Marco, ator PCD, acompanhado pela verdadeira equipe de filmagem num documentário fictício gravado na instituição em que Ian está internado. Outras versões da sinopse incluem “Nesse filme, todas as cabeças de equipe são pessoas com deficiência. Sim, isso é uma sinopse.” e “É tão normal ser normal, não é?”, já estraçalhando a quarta parede antes mesmo de assistirmos ao filme.

O conforto autorizado pelo gênero da ficção se mostra frágil com a claquete em tela, registrando o filme “Doc aleatório” com “Diretor: padrão” e o “Câmera: 1 homem”. Tal generalização poderia causar distanciamento, ao ser parcialmente lúdica e demonstrar uma estrutura ficcional, com nomes e situação fictícios, que sugerem a ideia de que qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Porém, aqui não há acaso. Zagêro e sua claquete em tela apontam as mesmices dos documentários, comentando o cinema nacional e a cultura real do nosso país. E em meio a tantos profissionais, do audiovisual e da saúde, que estão dormentes no sistema engessado para tratar do assunto, Ian é o personagem mais lúcido ali, o mais verdadeiro, o mais desperto. A equipe registra com paciência sua voz exaltada, sua maquiagem colorida, a tinta verde espalhada pelo seu corpo e sua dança sensual ao som de funk alto. 

Todos exageros banais quando comparados à verdade escancarada das pessoas com deficiência no Brasil. Acompanhadas da perspectiva pessoal de Ian, números e taxas de exclusão são ditados por ele durante sua terapia de desestresse: uma “aula cu(linária) para fazer um bolinho”, como ele se refere. Já no uso de suas palavras ele reconhece a ironia da situação, e termina a sessão com um buraco socado no meio do bolo. É esse desabafo intenso que resulta da tentativa de interrupção do protagonista pelo diretor, manso e servo da narrativa falsa da vida com deficiência. Como já aponta o título e sua grafia extravagante, estão errados em censurá-lo: o protagonismo também é do exagero, já cansado de ser redatado.

O roteiro e nosso orador assumem a exposição literal para contrariar a ideia de que o cinema não pode tratar o espectador como burro, se ele não tem empatia. O exagero e a intensidade são revertidas por Ian em linguagem do cansaço e do desabafo. Como se a gravação fosse seu diário falado, ele fala com a câmera e conosco com frequência. Pergunta ao diretor: “Tu queria tá no meu corpo?”. O silêncio dele – e possivelmente do espectador, que em sua maioria, não é PCD – mostra a angústia de lidar com tudo isso de forma lúcida. O prédio da clínica se revela em ruínas. Tão fraco como a verdade que sempre contaram para nós e para Ian, de que a internação é para seu próprio bem. Diretor e personagem se misturam na saudação final, agradecendo pela atenção e interditando o prédio e a mentira. Doa a quem doer, a verdade sobre a realidade PCD não é demais para ninguém.

Por apresentar o paradoxo da normalidade do exagero, não surpreende Zagêro estar justamente na mostra nomeada como “Pane no Cis-tema” – Mostra Brasil 11 do Kinoforum. A escassez de filmes sobre deficiência no cenário de festivais nacionais também é um paradoxo – o exagero na ausência. Zagêro é o retorno da dupla de diretores gaúchos Márcio Picoli e Victor Di Marco ao Kinoforum, depois de realizarem “O que pode um corpo?” (2020), o primeiro filme da história da seleção oficial do Festival de Cinema de Gramado a ter uma pessoa com deficiência como produtor. Mais exagero ainda é perceber que a mesma dupla de diretores sentiu a necessidade de retornar pessoalmente a um festival para manter a temática viva e deixar bem claro: inclusão não é quando um representante da minoria conquista seu lugar dentre os “normais”; é quando existe tanta pluralidade que não dá mais para apontar a diferença e se torna demais ser normal.

Biografia: Giuli Gobbato é cineasta e escritora. Bacharel em Cinema pela FAAP-SP, foi montadora e diretora de som em diversos projetos, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Na escrita de ficção e crítica, busca discutir a acessibilidade no audiovisual, partindo da sua vivência com dor crônica e TEA. Também faz parte da equipe administrativa da plataforma literária Maratona.app, que pensa a leitura de forma acessível e emocional.

Nas Teias da Estrutura Social sobre Tato, dirigido por Pedro Carvalho

Qual é o grau de escolha que os indivíduos de classes baixas têm para decidir se seguem uma profissão ou outra? A inserção em uma esfera profissional é uma questão de escolha individual ou há estruturas sociais pré-estabelecidas a organizar tais decisões? Esta é a discussão central da história contada pelo diretor Pedro Carvalho, em Tato (2024).

Wellington é um jovem trabalhador de classe baixa. Sua vida laboral é dupla. A fatia maior de tempo é dedicada ao emprego como ajudante de pedreiro na construção civil. E, com as sobras, ele toca seu estúdio de tatuagem. Sobreviver exige alguma fonte de renda minimamente estável. Então, enquanto o rapaz não se estabelece no ofício dos seus sonhos com tintas e agulhas, marretas e concretos lhe sustentam.

O objetivo de Wellington é definido desde as primeiras cenas do filme. O roteiro deixa o protagonista e o espectador sonharem juntos. No horizonte há um artista de peles. Mas também há um pedreiro. Todo trabalho constrói tipos específicos de corpos. O labor na construção civil esculpe um ajudante de pedreiro com seus ferimentos cotidianos, as calosidades e o enrijecer dos dedos. A mão a quebrar paredes não pode ser a mesma a manejar habilmente as agulhas de um tatuador. A corporeidade do trabalhador braçal, forjada entre uma marretada e outra, é o obstáculo para o sonho do rapaz.

Um dia, há um acidente no trabalho. Gotas de sangue salpicam o chão. Não é apenas uma mão ferida. É um sonho a se esvair  de um corpo. Perde-se o tato, ficam os dedos rústicos do pedreiro. Wellington se aflige. Sobreviverá de marreta nas mãos ou de agulhas entre os dedos?

A maioria dos planos que mostram o protagonista no trabalho são fechados. Nos aproximam de suas aspirações, mas também expressam as limitações estruturantes da vida de alguém como Wellington. Será mesmo o esforço a chave para a ascensão social? Ele se esforça, mas parece condenado ao seu destino de classe. Quantas chances de sucesso as estruturas sociais reservam para trabalhadores pobres e de classe baixa, como o protagonista desta história? O que há no horizonte daqueles para os quais a única moeda de troca é a força dos braços com a qual tentam enfrentar as agruras do mundo capitalista?

O filme de Pedro Carvalho não crava respostas, semeia perguntas. É um recorte da vida de um rapaz pobre da sociedade do dinheiro. Para estes, raramente há respostas, somente dúvidas. A marreta torna-se, ao fim e ao cabo, a lápide sobre o túmulo do sonho de Wellington.

Biografia: Eduardo Barbosa é cientista social, sociólogo e crítico de cinema. É membro do Núcleo de Estudos em Ambiente, Cultura e Tecnologia do Programa de Sociologia da UFSCar, onde trabalha com sociologia do cinema em uma tese de doutorado. Não vive sem cinema e sem escrever críticas de filmes.