CRÍTICA CURTA 2022 – ÍNDICE

MOSTRA BRASIL 3 – Estranhas Relações – por Adriana Gaeta

MOSTRA BRASIL 4 – Que Futuro é Esse? – por Gabriela Zanatta

MOSTRA BRASIL 8 – Fantasiando – por Nicole Namie

Ararat, por Rodrigo Saturnino

Corpo Celeste, por Hannah Sloboda

Fantasma Neon, por Larissa Sneige

Terremoto, por Felipe Karnakis

Yabá, por Gabriela Gonçalves

 

MOSTRA INTERNACIONAL 5 – Ainda Estou Aqui – por Gustavo Guilherme

Warsha, por Lohan Lage

 

MOSTRA LATINO-AMERICANA – por Gabriel Presto

Estrelas do Deserto (Chile), por Gustavo Furtuoso

Somos Pequenas (México), por Felipe Thomaz Fabris

 

Mostra PELAS MÃOS DE PASOLINI – por Alex Brito

Mostra O EFEITO QUEER INDÍGENA – por Enzo Rugeri

CORPO: TRINCHEIRA ABERTA ENTRE O EU E O CAOS – Mostra Brasil 3: Estranhas Relações

por Adriana Gaeta

O corpo na modernidade ocidental é a marca do indivíduo, sendo o traço mais visível do sujeito. Em um mundo onde as relações sociais, econômicas e de produção são volúveis, o corpo se torna o limite entre o eu e o outro. Os filmes da Mostra Brasil 3 investigam, cada um à sua maneira, os tensionamentos criados a partir dessa percepção. A relação entre corpos fora dos padrões normativos e a nossa sociedade capacitista; o corpo fetiche como a interface entre

duas pessoas que já se amaram; o envenenamento do solo, que também nos mata; e o corpo que se desconectou das forças da natureza são alguns dos aspectos levantados pelos cineastas da mostra.

Possa Poder, de Márcio Picoli e Victor Di Marco. Victor, que também atua no filme, tem em sua trajetória trabalhos que trazem como elemento narrativo a sua própria vivência enquanto pessoa com deficiência. Esse tema é conduzido através da trajetória de três personagens, Lucas, Luiza e Bia, em busca de uma oportunidade de trabalho. As recusas que recebem são tão excludentes quanto a própria cidade, que embora inclua elementos de todas as formas geométricas possíveis em sua arquitetura, rejeita a diversidade de corpos e individualidades.

É no transbordamento dos desejos, da água que escorre do copo, dos afetos e do cotidiano compartilhado através da irmandade desses corpos dissonantes que as personagens encontram forças para resistir e se tornarem visíveis. E a beleza do filme, sua força maior, é a humanidade desses corpos, expostos além dos estigmas de heróis ou vítimas.

Corpo Celeste, de André Sobral e Renata Paschoal, tem como protagonistas Letícia e Fernando, que se reencontram em uma sala de sexo virtual, onde Letícia trabalha como camgirl. É a partir desse não lugar, onde o tempo é literalmente dinheiro, e que passa tão rápido quanto a aparição de um cometa, que eles têm em dez minutos o desafio de curarem as feridas de dez anos de um relacionamento mal resolvido. A fotografia transforma os espectadores em clientes da camgirl. Conhecemos Letícia, ou melhor, Natasha Hot, esse corpo objeto, ora fragmentado, ora superdimensionado, através de closes, sempre a contento do fetiche de quem paga. Aos poucos, Letícia emerge das lembranças, e o que sobra é o corpo memória, inteiro e tridimensional.

Nonna, de Maria Augusta V. Nunes, aborda o uso de agrotóxicos em uma pequena comunidade rural e as consequências para os moradores. A Nonna é ao mesmo tempo a avó e a menina, passado e futuro, comprometidas, em sua integridade física, pelos venenos lançados nas plantas e animais. Já adulta, Ana volta para a casa de sua infância, e para dentro de si mesma, para se reconectar a sua ancestralidade.

Os últimos dias de duas amigas, de Rodrigo Lavorato, é, de todos os filmes apresentados, o mais ousado em sua linguagem. Duas amigas decidem ir a um retiro espiritual para morrerem juntas. Lá, se reconectam às forças do feminino e se transmutam em água, árvore e ar, durante um ritual noturno. Através do realismo fantástico, e com uma sequência impactante, valorizada pela montagem, os corpos das duas amigas se metamorfoseiam diante dos nossos olhos, assumindo a dimensão de veículo do subconsciente, do imaginário e do cosmos ao (re)viver seu caráter sagrado.

O humano e o corpo são indissociáveis nas representações coletivas;  os  componentes  da  carne  são  misturados  à natureza, ao cosmos e ao outro. Em sociedades que permanecem comunitárias, o corpo é a ligação da energia coletiva, e é através dele que cada pessoa é incluída no grupo. Por outro lado, em sociedades individualistas, o corpo é um elemento que interrompe, que marca os limites da pessoa, isto é, onde começa e acaba a presença do indivíduo. Cada um dos filmes nos leva a uma zona cinzenta, onde os corpos extrapolam o plano, onde os rostos encaram o espectador, rompendo a zona segura entre ele e a tela.

São filmes que nos obrigam a participar, a olhar para corpos que, assim como nós, procuram reafirmar sua identidade.

POR UM FUTURO AOS INVISÍVEIS – Mostra Brasil 4: Que Futuro É Esse?

por Gabriela Boni Zanatta

Se foi feito um cinema a ser exibido em 2022, é ele produto de uma necessidade absoluta: o transbordamento de um grito sufocado, uma pulsão que age contra todas as sórdidas, nefastas estratégias de um desgoverno ainda vigente. Mas os ares de agora trazem a sugestão de mudança. Os olhares se voltam ao futuro, e, quando se olha ao futuro, não se pode deixar de se indagar: que amanhã pode gerar um hoje como este?

No cinema da Mostra Brasil 4, “Que futuro é esse?”, a ficção científica é uma ferramenta narrativa ressignificada para se amalgamar à realidade política atual, tornando-se indissociáveis. No universo compartilhado por este conjunto de filmes, predomina uma visão de Brasil que se utiliza da fantasia para escancarar o absurdo concreto da realidade comum: a exclusão absoluta, a carência de direitos e de afetos.

O exercício estereotipado da ficção científica ensina a tratar do futuro como algo distante. Não é essa uma noção presente aqui; este futuro é um que já chegou. É um mundo inóspito, devastado, de um tal abandono que pode levar a crer que a tragédia que lhe acometeu se tornou já um acontecimento longínquo, algo pontual e passado ao qual algo da vida sobreviveu. Em Anantara, percebe-se que não: a aniquilação do mundo não é um evento breve, não é algo que ficou no passado e tampouco é total. Uma vez que é o homem que cria a aniquilação do mundo, ela segue seus moldes e torna-se enviesada e injusta. Em Anantara, campos de força protegem as cidades intactas da toxicidade e do perigo das regiões suburbanas, onde a devastação é a norma. Campos esses que são impenetráveis, mas transparentes, permitindo a vista do outro lado. Mesmo assim, os corpos descartados à sorte da devastação não são vistos.

Esses corpos, portanto, estão em perigo, como sugere o título de Eles não vêm em paz. Aqui, a violência extrema policial e a política de morte são tamanhas que não há perspectiva de um futuro além deste presente; são tamanhas que, muitas vezes, são suportáveis apenas se relatadas por meio de uma metáfora fantasiosa.

A luta até o momento é clara: é a da sobrevivência. Uma vez conquistada a vida, parte-se então para outros embates no movimento pela visibilidade. Lua, Mar, cujo título carrega os dois polos da loucura de Ismália, carrega também dois contrapontos dentro de uma mais complexa luta por afirmação: de um lado, a conquista dos direitos dentro da lógica do opressor; do outro, a negação absoluta da sua práxis. É válida a luta para ser visto de acordo com os padrões e as determinações regidas pelos olhos daquele que não vê? A protagonista advoga que sim. Afinal, o mais enfraquecedor ao movimento de resistência é a desintegração coletiva.

Já não há uma desintegração do grupo em foco em Fantasma Neon. Ao que parece, a luta da invisibilidade sempre volta à sobrevivência. Para contar a história de trabalhadores contemporâneos num regime análogo à escravidão, não se usa uma metáfora, mas um conjunto de peças performáticas. A realidade (das comidas por aplicativo) é indigesta. O protesto é realizado em música e em dança. Fantasma Neon é um transbordamento audiovisual, uma efetividade do devir da arte que entra em cena quando as palavras já não dão conta. Não dão conta da fome, da morte, da invisibilidade pintada de neon. Aqui, não existe futuro. O fim do filme é um canto interrompido por um silêncio oco, bruto e estúpido. Irresoluto, enquanto a realidade também o for.

A invisibilidade está nas ruas, nas favelas, nas peles, nas distopias – enfim, todas as histórias aqui são de distopias. O movimento final da mostra transporta a percepção das ruas para o ambiente doméstico, onde todas as mazelas sociais se traduzem nos íntimos detalhes. A invisibilidade está também no gênero e na vida comum.

O futuro aqui é uma esfera sutil: existe o futuro de ficção científica, o foguete, por certo. Mas o maior dos futuros é aquele com o qual a personagem de Sideral sonha. O peso da rotina doméstica, as atribuições arbitrárias mas obrigatórias de gênero provocam o sonho de um outro mundo. Em um ímpeto fora de quadro, a personagem se permite a indagação (com a retórica da indignação) que atravessa todos estes cinemas: “que futuro é esse?”. E ainda: “para quem é esse futuro?”. Porque, se o presente não pertence aos invisíveis, qual tempo pertencerá? E que tempo melhor que o de agora para reivindicar esse pertencimento?

RETRATO DO BRASIL NAS ENTRELINHAS – Mostra Brasil 8: Fantasiando

por Nicole Namie

Aos olhos daqueles que todos os dias vivem a dificuldade da realidade brasileira, surpreendem-se aqueles que olham para o mundo com a inocência e esperança que existe na fantasia.

Com formatos diferentes de se contar histórias, a Mostra Brasil 8: Fantasiando apresenta curtas com abordagens em assuntos importantes e necessários. Contagiando sutilmente, pela sua maneira de contar as histórias, até aqueles que diariamente escolhem fechar os olhos aos preconceitos e violências estruturais presentes na sociedade brasileira.

A fantasia, em sua essência, existe para além da criação de uma realidade paralela desassociada das vivências cotidianas dos indivíduos. Os cinco filmes apresentados mostram em suas entrelinhas o Brasil que todos querem esquecer, mas que através da sensibilidade ao retratar os fatos, poderão abrir os olhos dos que permanecem desacordados.

Através do realismo fantástico, Blackout, de Rodrigo Grota, trata do esquecimento não só pessoal, mas de uma sociedade que se perdeu pela chegada de um meteorito. A história vai muito além de uma realidade inexistente perdida numa distopia; o meteorito serve como causalidade de uma vivência bastante presente na vida dos brasileiros. Retrata todos aqueles que tiveram suas vidas perdidas e esquecidas. Yuri busca sua mãe assim como muitos procuraram por seus parentes perdidos nas mãos da ditadura militar. O filme fala àqueles que procuram pelas memórias dos brutalmente assassinados apenas por existir – e não se encaixar no que a hegemônica parcela da sociedade espera. Fala sobre o sentimento perdido e, por caminhos experimentais, traz o espectador para a ansiedade da procura com um final incerto.

Ela Mora Logo Ali, de Fabiano Tertuliano de Barros e Rafael Rogante, faz a crítica à falta de acessibilidade e exclusão extrema dos que não se encaixam nos padrões esperados pela sociedade. Neste curta, a fantasia permanece viva dentro da vendedora ambulante que se preenche na oportunidade de conhecer e contar histórias diferentes, através do contato com uma desconhecida num ônibus, esta lhe apresenta pela primeira vez uma narrativa contada a partir de um livro. Tomada pela emoção da história, a vendedora consegue transportar o seu filho para um mundo diferente do que eles vivem. Enquanto pessoa com deficiência, o filho se vê preso às limitações criadas por uma sociedade inclusiva e facilitada apenas aos que se encontram dentro da tipicidade imposta socialmente. O analfabetismo impossibilita ainda mais o acesso dessas pessoas ao que todos deveriam ter direito. O curta traz um retrato do descaso social de uma sociedade que prioriza apenas aqueles que ocupam uma posição de poder e privilégio. As relações construídas entre os personagens tiram suas vivências do esquecimento diário político e social.

A Menina atrás do Espelho, de Iure Moreno, constrói uma narrativa de busca e encontro dentro e fora de si. Gustavo e Helena se encontram e compartilham os seus mundos, que no fundo são um só. Uma vivência que parece ser apenas pessoal revela os monstros enfrentados por todes aqueles que não se encaixam dentro dos padrões heteronormativos da sociedade. A linguagem sensibilizada permite identificação e o encontro daqueles que se sentem representados, e a aproximação dos que não querem entender, ou não enxergam vivências distantes das suas.

Inspirado nas obras do americano Edward Hopper, Selfie de Alex Sernambi traz para a discussão a solidão feminina e o encontro de uma em muitas. Usualmente acomodada na calmaria das vivências do campo, uma fotógrafa se encontra e se perde ao entrar em contato com a velocidade da cidade grande. Ela vê a si mesma numa outra. Um retrato social importante sobre reconhecimento e união feminina, mas que infelizmente não retrata as paisagens urbanas brasileiras. O formato diferenciado chama a atenção, mas a falta de conectividade com a realidade diária de histórias e espaços do Brasil distancia a identificação e criação de sentimentos compartilhados pelo ambiente.

Tamo Junto, de Pedro Conti, coloca em debate e valoriza a vivência do povo brasileiro. A animação traz consigo a história do dia-a-dia pandêmico dentro das comunidades, que por si só precisou lutar para resistir. O formato contagiante consegue levar com leveza os espectadores para perto da subjetividade da união de todos. Diante de uma situação de emergência, o descaso do governo colocou a população frente à necessidade natural do ser humano de existir coletivamente. Infelizmente não foram todos que quiseram entender e aprender com a extremidade e perigo sanitário-social causado pela pandemia. O curta consegue transportar os espectadores de fora para uma realidade que muita gente não viu.

Todos os curtas são unidos pela fantasia, conectando-se pela forma e pontualidade em não se desligar do ponto histórico-crítico presente na sociedade brasileira. Eles conectam os espectadores sem grandes impactos, e com uma construção empática contagiante. As histórias fantasiosas não existem paralelas às questões reais. São através delas que podemos visualizar de fora e compreender melhor as nossas e as outras realidades.

A RESISTÊNCIA DO PERTENCER E A DESCOBERTA DA IDENTIDADE – Mostra Latino-Americana

por Gabriel Presto

Como discutido por Glauber Rocha em seu manifesto Uma Estética da Fome (1965), havia um forte desencontro entre a América Latina representada no cinema e a América Latina como ela é de fato. Da publicação do manifesto para cá, é satisfatório perceber, a partir dos filmes que compõem a mostra, que hoje somos levados a conhecer a cultura de povos excluídos, as paisagens de regiões remotas, a partir de um cinema feito pelo próprio povo que o representa.

Do México à Argentina, em variantes do espanhol ou em línguas nativas, o cotidiano de personagens impõe-se aos espectadores através de narrativas e alegorias sofisticadas, comprovando a potência da representação dessa população invisibilizada. Pessoas, culturas, línguas e espaços que vivem sob a constante ameaça do apagamento de sua identidade e autonomia.

Somos quem somos e nos reconhecemos individualmente como seres humanos a partir da relação com o outro. Na América Latina atormentada pelos fantasmas do colonialismo etnocida, essa relação pode ser crucial para a sobrevivência de seus povos e de sua memória. Como resultado, a busca pelo pertencimento surge como a substância do conforto e dos conflitos internos vividos pelos personagens que representam a diversidade da população latino-americana retratada nos filmes.

Em Invisíveis (Colômbia), a perspectiva da criança potencializa ainda mais o descobrimento de si enquanto parte de um todo. Em um contexto social e politicamente fragmentado, Azen, um menino de 9 anos, encara sua ancestralidade ao mesmo tempo em que a existência de seu povo é colocada em risco. Além da narrativa complexa retratada com planos bem estruturados que resultam num universo mágico e psicodélico, a identidade em construção do personagem indígena é encenada em sua língua nativa. O espanhol aparece em segundo plano, na voz do locutor da rádio que anuncia as mortes causadas pelo neocolonialismo.

A exuberância da natureza e das culturas segue como um aspecto marcante do continente. O profundo azul do céu e do mar no Caribe, em Yemaya, cumpre o mesmo papel do intenso verde da mata fechada na Colômbia e do amarelo árido na paisagem mexicana, em Somos Pequenas. A natureza é palco da vida em coletividade, dos corpos sociais que nela habitam e que são ainda mais ricos que suas cores.

Estrelas do Deserto (Chile) expõe a célebre paisagem do deserto do Atacama ao abordar o sentimento de abandono, resultado da decomposição do time de futebol formado por crianças de um pobre vilarejo. Pouco a pouco, o jovem Antay vê seus amigos partindo com a família por conta da seca. Assim como a terra e a comunidade, o time de futebol vai perdendo sua prosperidade a cada abandono. Na terra abandonada, não há espaço para a vida. E onde não há vida, não há memória.

Num mundo profundamente globalizado, continentes inteiros dificilmente se libertarão completamente das grandes cicatrizes deixadas pela colonização etnocida que ainda perdura. Como uma floresta em processo de desertificação – ou como um time de futebol que não pode jogar porque depende de um corpo coletivo para entrar em ação -, a memória e a autonomia de muitos grupos é constantemente devastada. A arte e seu princípio de liberdade tornam-se uma importante ferramenta para representação de universos particulares que estão longe de estarem isolados. Se eu é o outro, quando o outro morre eu morro também.

CONFLITOS HEREDITÁRIOSArarat, de Guto Gomes

por Rodrigo Saturnino

O que mais chama atenção na narrativa de Ararat é sua intimidade com o tema abordado. O filme conta a história de dois irmãos descendentes de armênios, herdeiros de uma confeitaria tradicional da cultura armênia. Estão encerrando os preparativos para o evento que relembra os 100 anos do genocídio do povo armênio, causado pelo império turco, quando um representante do evento vem até a confeitaria para tentar sabotar as entregas. O diretor Guto Gomes demonstra honestidade e um grande cuidado com o tema e a construção dos personagens de seu filme.

Pouco importa se o diretor é de descendência armênia; há um partido tomado pela narrativa que indica uma proximidade com essa cultura. É intrigante essa intimidade. Na história do curta, são os filhos, ou netos, do evento que protagonizam a luta centenária. Ou seja, o diretor usa do recurso da memória, com fotos de família penduradas nas paredes, os doces de receitas tradicionais e o filme caseiro que inicia o curta para construir sua ambientação.

A construção de tensão do filme é bem feita, mas pelo seu formato parece não haver muito espaço para dúvida. O representante do evento é logo apresentado como turco, sem deixar espaço para a especulação que elevaria a tensão do curta. Sabemos que há uma tentativa de sabotagem desde o início, quando Paulinho, o irmão mais novo, verbaliza suas suspeitas para seu irmão, Hagop. O final também deixa um pouco a desejar no que diz respeito a uma postura mais combativa e menos pacificadora. A revelação das anotações de Emin, o representante do evento, parece ser uma solução imatura.

Parece que os principais problemas narrativos do filme são causados pelo seu formato de curta-metragem. Isso é bom e ruim. Ruim por não contemplar todo o potencial que a história tinha, a sina de todo iniciante. Mas também é bom porque deixa no público uma vontade de ver mais. O que também ajuda na relação entre o filme e seu público é a escalação dos atores. Os dois protagonistas, Joaquim Muylaert e José Abujamra, são achados perfeitos para o filme. Ambos representam duas gerações distintas, algo que é possível perceber até pelos nomes: Paulinho, o mais novo, Hagop, o mais velho. E como todo bom filme, aqui há espaço para a contradição. O mais novo poderia ter sido o mais pacificador, enquanto o mais velho o mais tradicional e duro, mas há uma inversão de papéis que funciona muito bem na dinâmica dos dois. Hagop, por ser o mais velho e o mais responsável, tenta evitar o conflito, enquanto Paulinho carrega dentro de si uma raiva enorme.

Ararat é um filme de altos e baixos. Se por um lado a narrativa não contempla todo o seu potencial para tensão, por outro o curta tem um trabalho de direção, ambientação e atuação que dá uma credibilidade que o diferencia das outras produções vistas no festival, em especial nas produções de diretores iniciantes.

DESAJUSTE POÉTICO – Mostra Pelas Mãos de Pasolini

por Alex Brito

Um motor em movimento, centralizado no quadro. Esse motor é exibido poeticamente, ora em planos abertos, ora fechados. Em consonância ao que é visto, em voice over ouvimos Pier Paolo Pasolini narrar uma história, sobre o dia em que deu carona a um jovem de poucas palavras. Intencionando estabelecer um diálogo com o rapaz, Pasolini o questiona sobre seus interesses, descobrindo a paixão juvenil por motores. Nesse instante, as imagens do motor, até então enigmáticas, ganham um significado. Essa é a primeira cena de Il Ragazzo Motore, de Paola Fajola, curta que abre a sessão Pelas mãos de Pasolini, uma homenagem ao centenário do nascimento do realizador-poeta italiano.

O curta acerta ao associar elementos do documentário, como os registros dos jovens relatando suas experiências, a uma decupagem expressiva e uma montagem poética. Paola nos apresenta detalhes, como o toque das mãos no guidão da moto ou as reações dos jovens, capturadas por gestos e olhares. Porém, por não aprofundar o diálogo com nenhum dos entrevistados, Il Ragazzo Motore não atinge uma camada tão imersiva quanto o curta que o sucedeu, Stendalì (Ainda Soam), de Cecília Magini.

Stendalì, cujo roteiro tem colaboração de Pasolini, apresenta uma tradição fúnebre exercida por mulheres, que buscam homenagear seus entes queridos através do canto em coro. O curta tem escolhas estilísticas valiosas, que possibilitam uma experiência marcante. A montagem frenética atravessa diretamente a intensidade das vozes, os planos próximos das mulheres revelam suas emoções, marcadas pela angústia e pela perda. As posições da câmera ao longo da obra intensificam a nossa experiência, com destaque para o momento que imprime o ponto de vista do jovem falecido no caixão.

Além da imersão proporcionada pela junção imagem-som em Stendalì, o curta tece uma crítica à desigualdade social presente na Itália de seu tempo. Ele localiza essas mulheres em Salento, no sul do país, região marcada pelo abandono das lideranças governamentais, que priorizavam fomentar a industrialização no norte italiano. A obra provoca indagações, como: esse ritual fúnebre, além de uma tradição, seria um suporte diante do desamparo imposto pelo capitalismo?

A catarse suscitada por Stendalì ganha outra roupagem em Pierpaolo, de Ivan Claudio, única obra brasileira presente na sessão. O curta também se distingue pelo seu ano de lançamento, 2021, enquanto os demais foram lançados ao longo da década de 1960. Pierpaolo é uma obra intimista, que tece uma homenagem a Pasolini. Ela não se limita a uma estrutura clássica, possuindo um fio narrativo fragmentado e inserindo trechos com falas de Pasolini e imagens de arquivos. Ivan Claudio, que também assina roteiro e produção, inspira um olhar humano e poético em relação à trajetória do diretor, com destaque ao instante em que nos apresenta o local de nascimento de Pasolini.

Complementando essa abordagem mais intimista do filme anterior, O Cinema de Pasolini (notas para um Critofilme), de Maurizio Ponzi, é metalinguístico ao compartilhar a faceta artística do realizador-poeta a partir de um relato sobre o seu pensar cinematográfico. Ninetto Davoli, ator que esteve presente em muitos filmes do diretor italiano, ilustra com ações e gestualidades comentários pertinentes feitos por Pasolini, no que concerne à construção de personagem em camadas. Um ponto destacável do relato refere-se à comparação entre cinema de prosa e cinema de poesia, que ganha uma dimensão palpável ao ter como exemplos planos de um filme do diretor. Ponzi, que foi assistente de Pasolini, evidencia a proximidade dessa relação ao expor falas poéticas e descontraídas, que não passam desapercebidas ao público.

Fechando a sessão, temos um curta dirigido por Pier Paolo Pasolini, A Ricota, que assim como o seu antecessor, também reflete sobre o fazer cinematográfico. Tendo como ambientação um set de filmagem, um diretor marxista, vivido por Orson Welles, filma a Paixão de Cristo, um tema caro à burguesia católica italiana (que diegeticamente é retratada como financiadora do filme). Pasolini, que ao longo de sua carreira criticará em sua filmografia a hipocrisia cristã assentada em costumes, retrata em seu curta a ausência de humanidade naturalizada numa sociedade desigual. 

Essa posição é ilustrada nas situações vividas por Stracci, um figurante que atua como o ladrão bom, crucificado ao lado de Cristo. Na primeira aparição de Stracci, o vemos faminto e sendo zombado por seus colegas, situação recorrente. Sua humanização é destituída, condição reiterada ao se por em comparação a um cachorro no set, que tem mais respeito, além de comer a sua comida. Stracci é uma alegoria da população esquecida dessa Itália capitalista, que por meio de ações e subalternidades, busca ascender socialmente e, no mínimo, matar sua fome. De forma dramática, pecando com excesso de exposição, A Ricota exacerba a sua crítica com a morte de Stracci, “crucificado” em cena diante da burguesia que o oprimiu. Uma decisão narrativa ousada que serve de presságio à polêmica, mas virtuosa, filmografia de Pasolini.

QUERER, EXISTIR E AGIR! – Mostra O Efeito Queer Indígena

por Enzo Ruggeri

Quando damos nomes para determinados movimentos artísticos, assumimos que as obras pertencentes a eles possuem um fator em comum. No caso de um cinema dito como queer, são consideradas as representações ou narrativas que promovem uma ruptura com a normatividade nas questões de gênero e/ou sexualidade. Já em uma perspectiva cinematográfica classificada como indígena, está inclusa a assimilação e compreensão de uma expressão cultural, seja num resgate histórico em documentários, seja em ficções em que essas pessoas desempenham o protagonismo. E os dois juntos? Quais visões poderiam ser trabalhadas?

O desafio dessa sessão, na construção do Efeito Queer Indígena, foi criar uma seleção de filmes que conectam a memória e o existir dessas personagens dentro de ambos os contextos. Enquanto, na perspectiva cultural, essas pessoas lutam contra um processo de apagamento da sua própria identidade, no campo pessoal também precisam muitas vezes se manterem escondidas, pois existe uma conduta heteronormativa a ser seguida. Entretanto, essa visão separada é meramente analítica, afinal as personagens que protagonizam essas histórias não se dividem em dois: elas são indígenas e queers. Os pontos mais sensíveis, presentes em todas, são a busca e o orgulho da ancestralidade, que nas narrativas propostas funcionam como um mecanismo para florescer as sexualidades dos protagonistas.

Em geral, a proposta queer dentro do cinema está atrelada à estranheza como sensação para o espectador, devido ao seu caráter confrontador. Não se sente isso nesta sessão exatamente. Não digo, porém, que se ausenta de seu papel não-conformista, mas as representações de afetos estão normalmente cercadas pela própria expressão cultural, manifestada ora de forma simbólica como em Tuullik; ora físico, como o contraste entre a reserva e a cidade em Suave Noite; ou a moradia dos inuítes em Aviliaq: Entrelaçadas. Embora os filmes sejam disruptivos pela própria presença do existir e do manifestar, ainda assim há o trabalho do acolhimento, principalmente nas relações afetivas, tanto românticas quanto fraternais, contrastando muitas vezes com as parentais.

Os filmes abordam personagens que não estão passivas às suas condições, sendo o agir o combustível para o desencadeamento de todos os curtas. Jesse Jams, que leva em seu título o nome do seu protagonista, em sua montagem rítmica viciante, acompanha a jornada do músico trans indígena que está contemplando sua existência de maneira orgulhosa através da sua expressão musical do punk rock. De forma similar, Êmîcêtôcêt – Muitas Linhagens, o outro documentário da sessão, mostra o processo de um casal queer e interracial em seu processo de realizar a fertilização in vitro, e como é fundamental se atentar ao combate do apagamento indígena durante essa jornada. A cena do parto é uma das mais sensíveis da mostra, pois conecta a emancipação queer em dar a vida atrelada à manifestação da ancestralidade, com a criança representando o futuro da etnia.

Nas ficções, o conflito geracional é bem marcante. Em Tuullik, Tukummeq e Luna são levadas em uma bela representação não-narrativa que faz uma analogia da relação delas com o conto da lua e do corvo como um dispositivo discursivo para representar o nervosismo de ambas as partes ao conhecer a família uma da outra. Mostrando uma face mais violenta, em Fogo Selvagem, os jovens protagonistas literalmente fogem de seu pai opressivo, enquanto o mais velho acaba desenvolvendo uma relação sutil com outro menino, contemplados por planos que quase os fundem com a natureza, uma validação do próprio meio.

Já em Aviliaq: Entrelaçadas, se estabelece quase um paradoxo sobre a cultura inuíte, afinal as personagens buscam nela a justificativa para ficarem juntas, enquanto os pais de uma delas deliberadamente comandam a escolha de suas vidas também baseados nisso, operando como fator decisivo a heteronormatividade. Em Noite Suave, esse aspecto é colocado de forma dualista: a personagem pode explorar sua homossexualidade na reserva, colocada aqui como um lugar de refúgio, enquanto na cidade a normatividade a sufoca, mesmo que também haja uma troca com alguém indígena.

De forma geral, essas obras buscam emancipar a existência de suas personagens, em uma percepção singular do desdobrar de suas existências diversas. Assim, ilumina-se a vivência de pessoas LGBTQIA+ que são pertencentes à cultura dos povos originários, e que compartilham da luta contra a presença opressiva da normatividade. A mostra O Efeito Queer Indígena é um convite para provocar uma perspectiva diferente no espectador sobre o querer, existir e agir da dinâmica queer.

“NEM DE NEON ELES ENXERGAM A GENTE”Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli

por Larissa Snege

Fantasma Neon, vencedor do prêmio de melhor curta-metragem no Festival de Locarno (Suíça) e de cinco prêmios no Festival de Gramado, retrata uma temática urgente, com um olhar sensível e uma abordagem única. Conta com uma trilha sonora e coreografia que unem os principais ritmos urbanos do Brasil como o funk e o samba, atualizando o gênero musical para atender as demandas da obra, além de uma montagem inteligente e carregada de significados. O musical é introduzido perfeitamente por um número musical que explora a temática e revela a abordagem da obra, apresentando a bela voz de João (Dennis Pinheiro) e emoldurada por uma bela fotografia.

A história do protagonista João retrata a invisibilidade dos entregadores de aplicativo como seres humanos perante a sociedade: seus sonhos, desejos, dificuldades e até mesmo a fome que sentem ao entregar comida para tantas pessoas, enquanto ironicamente estão vestidos com uniformes bem chamativos.

A escolha de figurino dos personagens ressalta esse olhar que se limita à sua ocupação; em grande parte do filme, os entregadores estão com as mochilas que utilizam para fazer entrega nas costas, ou bem próximas ao seu corpo. Os momentos em que João retira de fato sua mochila é quando está dançando, e essa dança transborda o seu ser, que precisa se desprender dessa condição que limita sua expressão artística.

Outra questão apresentada pela narrativa da obra é como a arte e a cultura são potências importantíssimas tanto para a expressão da individualidade quanto para a mudança social. E como essas expressões, quando consumidas ou produzidas por grupos com pouco poder monetário e social como os entregadores, são marginalizadas e vistas como atos subversivos pela sociedade. O uso de saxofones apoiados em posições em que se apoiam armas é um símbolo forte e impactante disso, e a montagem favorece essa relação para transmitir a impressão dos trompetes estarem apontados para João enquanto ele dança.

A montagem de todo o filme é muito inteligente, mas há um destaque para a segunda cena, que coloca um depoimento em voz over enquanto imagens de diferentes entregadores passam em tela. Essa montagem transmite coletividade: o depoimento é individual, mas evidencia que essa realidade de dificuldade e destrato é vivida por todo o grupo de entregadores. Ainda nesta cena há o cuidado e a sensibilidade com as demais pautas sociais através do depoimento de uma entregadora mulher, que passa dificuldades intensificadas pelo seu gênero.

O espectador é diretamente provocado a olhar nos olhos dos entregadores em planos onde os personagens são filmados olhando diretamente para a lente da câmera. Esses planos promovem um papel ativo do espectador, gerando sensações e reflexões acerca da temática do filme. Uma provocação final é realizada na montagem que compara a morte por atropelamento de um entregador com um copo que cai na mesa durante uma refeição. Ela alerta para a vulnerabilidade que tantas pessoas passam para que outras possuam o conforto de receber diversos tipos de produto em casa. Uma desigualdade amarga vivida por centenas de fantasmas neon.

POÉTICA DAS TRAVESSIASTerremoto, de Gabriel Martins

por Felipe Karnakis

A potência que a memória tem no redesenhar dos caminhos, na construção de novas possibilidades, é um dos eixos do documentário Terremoto. O filme é dirigido por Gabriel Martins da Filmes de Plástico, produtora mineira já reconhecida por dar à luz narrativas locais que historicamente não aparecem nas telas. O curta traz com muita sensibilidade o dia a dia da família Augustin em meio a pandemia de covid. Eles são do Haiti e tiveram que deixar o país devido ao intenso terremoto de 2010. O enredo parte de uma história essencialmente trágica. Contudo, a maneira como a costura é feita não bate apenas na tecla do sofrimento. Gabriel parece mais preocupado em dar voz às memórias.

São diversas as sequências em que essa preocupação atravessa a narrativa, mas em especial chama atenção o momento em que Nayla, a primeira filha da família, aparece pendurando fotografias antigas. Coladas na parede, estas formam uma grande tela que compõe uma linha do tempo. Vemos os rostos dessa família que já nos foram apresentados, só que jovens, em ambientes distintos, lugares distantes. Essa tela de memórias recorta o filme, aparecendo entre os relatos e enredando as informações. De alguma maneira, esse fio condutor ressalta a importância que o documentário dá em humanizar os personagens. O recorte não é sobre um fato isolado, uma tragédia, mas sim a história desses indivíduos e suas particularidades.

Nesse sentido, a película desconstrói uma narrativa muito reproduzida em filmes sobre desastres naturais, que sobressaltam sempre a visualidade da necropolítica. Na contramão da morte pela morte, o curta discorre sobre vida, educação e futuro. O símbolo do nascimento da nova filha na família, e a primeira cena em que os irmãos constroem o berço da pequena, marcam a essência de recomeço que o enredo carrega.

Essa investigação de construção a partir da autoimagem, de registros fotográficos e da autoestima de famílias pretas lembra tematicamente outro filme, Travessia (2017) de Safira Moreira. O curta aborda a busca pela memória fotográfica das famílias negras, estabelecendo um aspecto crítico quanto ao registro e o racismo estrutural. Em ambos os filmes, ao final vemos a produção de imagens afetivas dessas famílias. Há uma notabilização de que o registro é sinônimo de história, e que demarcar esse formato é um compromisso de criar repertório para as próximas gerações.

A maneira como o filme traz em imagens essa temática contribui para uma espécie de imersão poética. A fotografia do curta tem um tom onírico, as imagens parecem flutuar. O ambiente escuro e luzes direcionadas, contrastando com o tom terroso das paredes de tijolo, contribuem para sentirmos uma aura de flashback. Ainda que mantenha o norte nas recordações, o enredo também finca os pés na atualidade.  É estabelecido um fluir desse caminho-rio das memórias e seu redesenhar no tempo, que desemboca no futuro. Esse aspecto fica evidente quando Niky, Nick e Neyla relatam sobre suas escolas e a importância da educação em suas vidas. Nesse trecho, fica evidente o impacto que a pandemia teve no ensino – por exemplo, na falta de estrutura para as aulas online de Niky ou Nayla, que têm apenas os irmãos para recorrer às dúvidas de suas tarefas. Ainda assim, o filme enaltece a esperança que essa juventude tem de construir e semear a mudança no futuro.