Sobre barbas, gotas de sangue e saudades

a navalha do avo-ed

Certa vez, um mágico das palavras disse – assim, como quem não quer nada – que as pessoas não morrem e que ficam encantadas. A Navalha do Avô é sobre esse “encantar-se” de Guimarães Rosa. Carregando consigo frescos Kikitos (melhor ator e roteiro em Gramado), o curta com roteiro assinado por Pedro Jorge e Francine Barbosa narra com sensibilidade e sem pieguice a relação entre avós e neto.

Sustentado pelas miudezas do cotidiano, nas pequenas impaciências com os mais velhos e, ao mesmo tempo, nos carinhos sem-fim, o curta diz muito com poucas palavras. O avô José, vivido pelo crítico, roteirista e escritor Jean-Claude Bernardet, está no cotidiano do neto Bruno não apenas quando a avançada idade e a sua saúde debilitada demandam atenção. O neto respira os avós, presentes até mesmo nos retratos rascunhados, feitos no papel pardo do pãozinho da padaria.

Sem grandes eventos, o espectador é conquistado pelo carisma do silencioso avô para conviver por alguns momentos com a família, seu passarinho e a sua navalha. A representativa (e doce) navalha do título. É por meio dela que conhecemos, de fato, a barbearia, já presente no lindo e dramático prólogo. As memórias dos companheiros de barba do avô tocam o jovem neto, que passa a cuidar do avô com ainda mais afeto. A passagem representada pela visita de Bruno à barbearia, quando assume o controle da navalha, é um marco do processo de mudança. O humor e uma pequena dose de terror dão o tom à sequência.

Por trás de um roteiro singelo, mas profundo; de atuações excelentes (destaque para o protagonista Kauê Telloli); uma montagem que privilegia o silêncio e as elipses e tantos outros aspectos técnicos de muita qualidade, está a competente e talentosa direção de Pedro Jorge. A Navalha do Avô é um destes curtas sobre a ausência daqueles que são tão presentes. Um filme que fica gravado na cabeça e no coração, principalmente naqueles que já tiveram algumas destas pessoas “encantadas” por perto.

Camila Fink

A Navalha do Avô está no Panorama Paulista 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

A cidade e seus personagens

os irmaos mai

Thais Fujinaga, diretora do belo curta-metragem L, que arrebatou mais de 50 prêmios e menções, volta às telas neste ano com mais um maduro filme e repete a parceria com o jovem ator Luis Mai King. O argumento de Os Imãos Mai, sobre um fragmento de um dia de dois garotos em busca de um presente de aniversário para a avó pode parecer simples. Se no seu curta anterior a realizadora desenvolveu com muita delicadeza o drama de Tetê e Hector – de aceitação da aparência, a partir da intimidade entre os dois amigos –, em Os Imãos Mai ela privilegia novamente as relações pessoais enquanto promove um profundo olhar sobre a metrópole.

Como num road movie, o trajeto é mais importante do que o destino. A partir das andanças nas ruas, quando de fato vivenciam a cidade, é que os meninos são transformados pelo acaso, pelas surpresas, pela convivência com os anônimos que cruzam o seus caminhos. São Paulo está lá tal como é: bela, agressiva, concreta e humana. Diferentes crenças, valores, relações de trabalho, posições políticas e sociais são apresentadas de diversas formas e colaboram para traduzir a capital paulista em imagens.

A cidade que desconstroi é a mesma que transforma e recria, promove mudanças e reflete o relacionamento dos irmãos chineses, ora conflituoso, ora de bem-querer. Nesse sentido, de maneira bem orgânica, os meninos respondem aos estímulos da cidade, que por sua vez, retruca com uma sinfonia de sons, empecilhos e acidentes. Uma tentativa de mandar fazer um presente, uma chuva fora de hora, vontades, raivas e desejos incontroláveis, tudo pode provocar novos sentimentos e reações. O que é inútil para alguns pode ser tudo para muitos outros.

Se o roteiro, também assinado por essa segura diretora, é excelente, o trabalho com som e trilha sonora também merecem destaque. Finalmente, a sequência final é uma síntese do curta. Enquanto os irmãos partilham de pontos de vista opostos e sentem a necessidade de interagir, mas guardam certo distanciamento, cada um em seu cantinho da varanda do prédio. No enquadramento, ao fundo, um caótico e fluido fluxo de carros, enfatizando mais uma vez, a relação dos meninos com a cidade.

Camila Fink

Os Imãos Mai está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Isto não é um filme de cowboy

À primeira vista, Cowboy, de Tarcisio Lara Puiati, é um registro de um personagem. Mas as aparências enganam e, aos poucos, aquilo que parecia ser verdadeiro é colocado em xeque. Em Homem-bomba (2009), por exemplo, sobre dois meninos que tentam sobreviver ao tráfico, o diretor abordava sutilmente a tênue fronteira entre o real e o não-real no desfecho. Em seu mais novo curta, o realizador mergulha de vez nesse universo.

No início, o espectador acompanha um personagem que se apresenta, em voz off, como um homem comum que, por vingança, torna-se matador profissional. Poucos minutos depois, ele conta outra versão da sua história. E depois outra. E outra. E assim por diante. Enquanto o texto narrado muda, as imagens do mesmo homem montado em sua bicicleta continuam em um plano-sequência.

O diretor confronta o espectador com essas diversas narrativas, sem deixar claro o que é ou não é real. O artifício é simples, mas a questão levantada pode ser ainda maior, na medida em que o curta pode ser compreendido como uma forma híbrida entre o documental e o ficcional.

Por um lado, as versões apresentadas pelo protagonista podem não ser necessariamente reais, mas ficções. Por outro, a história de Cowboy poderia, sim, ser verdadeira; ao ser recontada, explora-se a semelhança dela com a de outros tantos cowboys no mundo. Outra ainda: qualquer uma daquelas vidas poderia ser a dele.

Nesse sentido, o documentário deve somente expor as ações registradas com a tradicional presença do narrador? Deve alinhar-se com o que ficou conhecido como “cinema verdade”, a partir da concepção de Dziga Vertov de que a câmera capta a essência do real? Ou deve apenas sugerir visões de mundo, uma vez que é uma construção subjetiva de quem está por trás das lentes, como os filmes de Jean Rouch ou Eduardo Coutinho evidenciam?

À parte disso, Cowboy tem o mérito de mostrar um olhar sobre o norte do país. Finalmente, e para dar ainda mais sabor ao debate metalinguístico, há todo um mistério no lusco-fusco do entardecer parintinense e no título, que também aparenta ser aquilo que não é. Um filme de cowboy.

Camila Fink

Cowboy está na Mostra Brasil 7. Clique aqui para ver a programação do filme

Memória, chumbo e cinzas

O momento da história do país mais revisitado pelo cinema nacional é, sem dúvidas, o período que compreende a ditadura militar iniciada em 1964. Filmes documentais, ficcionais ou experimentais reconstituem, cada um à sua maneira, a violência do poder institucionalizado, a supressão de direitos civis e políticos e a luta de todos os que se colocaram na linha de frente, armados ou não, pela defesa da democracia e liberdade de expressão.

A vasta produção sobre o tema, no entanto, não impede que o cinema contemporâneo brasileiro continue a se debruçar sobre os chamados “anos de chumbo” com criatividade, originalidade e crítica. Um dos melhores exemplos é Ser Tão Cinzento, premiado no É Tudo Verdade e no Festival de Brasília. O diretor Henrique Dantas apropriou-se de diferentes linguagens para contar a história da perseguição política sofrida pelo cineasta Olney São Paulo.

A partir da projeção de Manhã Cinzenta (1969), uma das mais marcantes obras de Olney, nas paredes de uma construção em ruínas com elementos do cenário que remetem às torturas, quem não sabia a situação em que o realizador baiano Olney foi preso passa a conhecê-la.

E quem já sabia acompanha uma riquíssima série de depoimentos. Profissionais da equipe do filme e outros cineastas contam sobre as filmagens, falam das circustâncias em que Olney foi perseguido, preso e torturado, vindo a falecer em 1978. Orlando Senna, José Carlos Avellar e Luis Paulino dos Santos são apenas alguns dos entrevistados.

Da instalação que reproduz a obra de Olney, o espectador guarda algumas das mais belas imagens da única cópia que restou do filme, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dantas traça um panorama político e da própria história do cinema brasileiro.

Se Manhã Cinzenta já fazia a crítica ao contexto da época — ao falar de um país imaginário da América Latina em que os estudantes manifestam-se, são presos e interrogados por um robô –, o curta de Henrique Dantas alia o experimental ao documental para refletir, e não apenas sobre os abusos da ditadura; para relembrar e trazer à tona para o público a importância de pessoas muitas vezes esquecidas na nossa memória como Olney São Paulo, a quem Glauber Rocha chamava de “mártir do cinema brasileiro”.

Camila Fink

Ser Tão Cinzento está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme

Uma pérola multicolorida

O sertão nordestino faz, de alguma forma, parte de nós. Do morador que ali vive sob o sol ardente ao mais urbanoide dos brasileiros, nos sentimos um pouco parte daquela realidade. Talvez pelas diversas apropriações já feitas, seja pelas pinceladas dos Retirantes, com os Miguilins das letras, com as imagens de um sertão que vira mar e um mar que vira sertão, ou com as melodias das asas brancas.

Dia Estrelado, pérola de estreia de Nara Normande, reúne essas e outras referências em um corpo único e original. Não por seu enredo, mas pela tradução estética do tema em uma belíssima animação stop motion. O roteiro é simples: uma família em busca da sobrevivência em um lugar pobre e árido. Tão seco que uma gota d’água vira pedra. Contrastam com essa “não-vida” as cores fortes e a textura do expressionismo de Van Gogh. O céu do cenário foi inspirado na obra Noite Estrelada e reproduz as grossas e largas pinceladas do artista.

Feita com massa de modelar, bonecos de arame articulados e muita paciência — quatro anos de trabalho –, a animação dialoga com todas as artes, e leva para o cinema esse drama sem um tom piegas. A realizadora pernambucana acerta a mão na poesia e no realismo, presente no piscar de olhos dos personagens, nos detalhes dos cabelos e na única flor que ainda tenta sobreviver. Uma metáfora do sertanejo, “antes de tudo, um forte”.

A perfeição técnica dos movimentos e da fotografia, trabalhada em conjunto com as mudanças de tonalidades da massinha, produz um efeito naturalista. No entanto, a diretora também deixa espaço para o humor e o lúdico, preenchendo essas vidas secas com uma graciosidade e uma paleta de cores infinitas.

Camila Fink

Dia Estrelado está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme