Sociedades de imagens

Nos dias em que o vazamento de um vídeo íntimo registrando o ato sexual pode render até uma capa na revista Playboy, Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, de Eduardo Kishimoto, vem a calhar. A discussão sobre privacidade e suas violações não é nova. Ela aumenta a cada dia, conforme o acesso o crescimento do compartilhamento digital.

De celebridades a pessoas comuns, todos expressam algum tipo de preocupação com relação a registros íntimos, seja uma inocente foto da namorada nua, ou um vídeo inteiro contendo as piores (ou melhores) sacanagens que só quatro paredes conseguem guardar.

O curta de Kishimoto envereda por um caminho fértil e pouco explorado. A popularização de dispositivos produtores de imagens, sejam celulares, câmeras portáteis, tablets ou câmeras fotográficas profissionais, gerou um exército anônimo de fotógrafos e filmmakers. Um acidente de moto, alguém sendo abordado pela polícia, amigos numa festa etc. Nada escapa a esse olhar anônimo e constante.

Foi Kleber Mendonça Filho quem fez um filme muito interessante sobre esse fenômeno. Luz Industrial Mágica (2008) mostra os espectadores do Festival de Cannes munidos de seus dispositivos digitais prontos a capturar o pixel mais atraente do ator do momento. O último plano do filme de Kishimoto lembra o filme de Kleber Mendonça; apesar das diferenças, existe no rosto dos personagens nos dois filmes o mesmo fascínio produzido no momento do registro da imagem, seja foto ou vídeo.

No caso de Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada o vídeo surge como o perseguidor implacável de quem teve sua vida íntima divulgada e reproduzida aos milhares na internet. A garota protagonista parece se render enfim aos seus perseguidores, munidos das mais diversas câmeras, e passa a oferecer aquilo que eles querem: sua nudez despudorada.

O curta aborda um tema atual que ainda produzirá muitos debates acerca da liberdade daquele que captura a imagem e da liberdade daquele que é capturado. A opção pela gravação em diversos formatos e qualidades foi muito interessante. Estamos acostumados às imagens de qualidade baixa difundidas na internet; ver essas imagens projetadas na tela grande revela muito acerca da produção digital contemporânea.

A unidade menor, o pixel, explodindo em planos tremidos, fora de foco e mal enquadrados são parte cada vez mais constante do universo de vídeos que consumimos. Seja pelo compartilhamento de amigos, seja em canais de distribuição como YouTube ou Vimeo. Claro que muito ainda irá mudar com o avanço da banda larga no Brasil (assim esperamos), e esse processo está longe de terminar.

Vale se perguntar, e foi o filme de Kishimoto que me despertou para essa questão: o que acontece quando essa liberdade do registro é usada para o “mal”? O que vemos em Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada é um bando covarde que deixa a pobre garota sem escapatória, cercada por todos os lados por mãos que seguram algum dispositivo.

Ela não tem outra opção a não ser ceder ao triste espetáculo produzido por uma turba insaciável por registrar imagens. É como muitos que ao assistir um show passam mais tempo tentando gravar algo no celular do que gravando algo na memória.

Renato Batata

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada está na Mostra Brasil 10. Clique aqui para ver a programação do filme

Mistura de linguagens no trato à intimidade

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, de Eduardo Kishimoto, encerra a Mostra Brasil 10. Um sessão repleta de escracho, nudez e sexo.

Entre ver e ser visto, muitas câmeras revezam os olhares sobre Josie, a personagem central do filme. A câmera fotográfica de sua amiga, a câmera de vídeo do ex-namorado, a webcam da própria Josie, a tela de um site pornô, o celular de um cliente da loja onde trabalha ou da multidão da rua Santa Ifigênia, em São Paulo.

Rua não menos simbólica que o próprio quarto da personagem. Entre o privado e o público, o filme configura “fragmentos digitais da intimidade de Josie” (como define a sinopse), sejam eles registrados por ela mesma, por pessoas próximas ou por qualquer desconhecido.

Em uma confusão de câmeras e telas, um drama muito contemporâneo se passa. O site Vazou na Net publica o vídeo dela transando com o ex-namorado. Ele é repassado para outros tantos sites e visto por um cliente da loja, que a insulta. Por um espetáculo qualquer, uma multidão de celulares se configura, como um julgamento em praça pública, mas ninguém acude a menina.

Fazer um vídeo já justifica que ele seja divulgado? Qual o trato que se dá para a intimidade quando passamos a viver em rede? A partir das diversas relações que se pode estabelecer com uma câmera, formamos uma geração de jovens com virais (vídeos), presenciamos casos desde a página de Isadora Faber, Diário de Classe, até situações extremas como a da personagem Josie.

Experimental e habilidosa, no filme de Kishimoto, é a própria maneira de filmar o argumento.

Luiza Folegatti

Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada está na Mostra Brasil 10. Clique aqui para ver a programação do filme

Exemplos instigantes do audiovisual portenho

Já passa de uma década que o cinema argentino fortaleceu seu nome entre nós, servindo inclusive como um comparativo de qualidade. Roteiros fortes, temas diversificados e uma estrutura de produção aparentemente simples dão a tônica de boa parte do que vem de lá.

Na programação do festival, os curtas Noelia, dirigido por María Alché, e Pude ver um Puma (Pude ver un Puma), dirigido por Eduardo Williams, são exemplos instigantes do audiovisual portenho. Ambos trabalham com uma câmera frouxa, quase amadora, e vão construindo seu tema e intenção com retalhos editados que ganham força sempre que pensamos neles.

Noelia é estruturado por meio da personagem-título, registrando com uma câmera (na mão ou posta sobre algo) suas ações, com uma estética próxima à dos vídeos amadores postados na internet. Sua primeira tomada faz com que se pense assistir a um filme sobre a relação difícil entre mãe e filha, com as ações frias, e às vezes agressivas, de sua mãe camareira sendo captadas com cautela.

No entanto, os lugares mudam e vão surgindo várias “mães”. Cai-se em um jogo da personagem. O campo de visão limitado e a estranheza das ações fazem com que se tente sempre tomar uma posição sobre o que está acontecendo, questionando até a sanidade da moça. Mas, sempre que uma certeza parece se firmar, um elemento novo surge e faz rever o que pensamos.

Sem fechar a história, o curta apenas registra a estranheza – como bem representa o plano final, com o rosto da moça ensopado (por quê?) em primeiro plano, num lugar impossível de apreender, e por fim o escuro do apagar das luzes que serve de fundo para os créditos, sendo que a música é aparentemente tocada pela personagem.

Pude Ver Um Puma não é um filme fácil. Registra a esmo alguns grupos jovens que surgem caminhando sobre telhados e vão para ruas e espaços destroçados. Os diálogos são simples e entrecortados. Alguns planos são longos e a câmera não está fixa, o que aumenta o desconforto. Pontualmente, alguém cai ou há um acidente mudando o grupo na sequência seguinte.

O final inesperado reverte tudo, dando sentido a todas as ações anteriores. Temos aqui uma maneira engenhosa e barata de contar uma ficção científica apocalíptica e perturbadora, e que cresce cada vez que é lembrada.

Carlos Alberto Farias

Noelia e Pude ver um Puma estão na Mostra Latino-Americana 5.